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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Por um segundo

Há conexão na tristeza. Ele pôde sentir pela janela do apartamento.

A mudança. A separação. Tudo. Depois de 6 anos com a namorada naquela casa deliciosa, ele estava enfim ali. Solteiro. Num apartamento enorme, decorado. Vida nova. Tudo o que um homem casado talvez sonhasse.
Sua nova rotina foi tomando conta. De manhã, café na varanda, ler o jornal virtualmente. Depois, apressado, descia. Trânsito, trabalho, amigos, encontros, casa, insônia às vezes. Às vezes sono.
Mas havia algo que o tempo não deixava passar. Uma sensação estranha. Não era solidão. Não. Mas uma sensação impossível de descrever ou mesmo dividir com palavras, fosse com um amigo, ou com uma das mulheres que andava se encontrando. Aquilo era só dele. Ele sabia. Se dividisse, talvez o chamassem de egoísta, afinal, ele tinha tudo. Estava em seu melhor momento. Mas...
Saiu em férias. Mergulhou, fotografou corais e peixes exóticos, bem acompanhado. Ainda assim, voltou com aquela sensação, que não podia ser dividida.
Sua vida era agitada, vivia mais fora do que no apartamento. Quando estava ali, tudo se resumia a seu quarto, à sala e à varando nas manhãs. Mas, um dia, era um feriado, ele se lembrou que havia montado um escritório, não precisava ficar com as engenhocas no colo na cama ou no sofá da sala. Dirigiu-se ao outro extremo, sentou-se diante da bancada. Conversava nas redes sociais... Aquilo que não preenchia, mas fingia-se que preenchia.

Ele percebeu que nunca havia olhado por aquele ângulo da casa. Era possível ver as janelas do apartamento vizinho. Bem próximo. No décimo segundo andar, como o seu, a janela do andar vizinho abaixo do dele tinha tido precauções à indiscrição alheia: havia rolôs vazados, o sol entrava, mas jamais um janela indiscreta. Depois de um tempo, ele estava distraído, mas viu um movimento. Os rolôs foram levantados. Era uma mulher. Numa metrópole, a distância afetiva entre as pessoas é enorme, mas elas são obrigadas, por falta de espaço, a estabelecerem a proximidade física, e se defenderem como pode.
Ele continuou seu chat. Mas passou a observá-la. Ela estava aérea, pensativa, se deslocando pela casa. Dali ele podia ver algumas janelas do ambiente dela: a cozinha de azulejos hidráulicos; um pedaço do closet; um canto com bancada e estantes e quadros, gavetas, caixas organizadoras -- um pequeno escritório. Ela parecia preguiçosa, como se tivesse acabado acordar. Como ele estava acima, ele podia ver tudo o que ela fazia, todos os movimentos: o modo como caminhava e pisava descalça o chão frio de hidráulicos. O homewear despojado que ela usava, que ele vira muitas vezes a namorada usar parecidos. Ele a viu tomar café da manhã rapidamente: torrada com requeijão, e café. Depois, ela lavou o pequeno prato, pires e xícara. Sumiu por um tempinho. Surgiu de camiseta e jeans e cabelos presos com grampos grandes coloridos. Sentou-se diante da bancada e abriu o laptop. Parecia trabalhar, muito séria e digitando rápido no teclado. Depois de um tempo de janela indiscreta, ela baixou um pouco o rolô, a claridade devia estar incomodando. Mas era possível ainda ver seu rosto, as mãos no teclado. Ufa!
Mas, de repente, algo mudou na expressão dela. Ela se mexeu na cadeira. Tirou as mãos do teclado e mudou a posição do rosto para ver algo melhor na tela... Um e-mail talvez? Uma foto recebida? Um texto? Ela entristeceu.
Ele passou a se interessar mais pelo roteiro dela. E as ventosas do olhar grudaram na janela daquela desconhecida.
Ela ficou quieta por algum tempo, olhando de vários ângulos, clicando, como se estivesse vendo fotos recebidas do passado. Depois, ela assumiu um rosto de decisão, e digitou algo, seus olhos se movimentaram em relação à tela. Por um momento a tristeza deu lugar à ansiedade. Mas, em seguida, ela apertou uma tecla. Foi aí que ela chorou. Pôs as duas mãos sobre os lábios, e era como se uma represa tivesse sido aberta. Ela jogou então a cabeça para trás e cobriu o rosto, e agora não era mais tristeza, era sofrimento. Alguém naquele momento tinha se comunicado com ela, e havia remexido as cinzas. O fogo atiçado estava doendo. Era visível.
E foi então que algo dentro dele foi degelando, algo que ele nem sabia o que era. Ele nunca tinha chorado desde que ela o havia pedido para ir embora da casa. Nunca havia sequer repassado aquele dia triste de outono. O sol se pondo lá fora, e ela pondo aquelas palavras finais
Por um bom tempo ela chorou sentada com as mãos sobre o rosto. Quando cessou, ela se levantou, resoluta, e voltou de rosto lavado. Continuou seu trabalho, agora com o semblante de quem estava muito cansada.
Ele também se sentia cansado, porque dentro dele uma represa fazia estragos agora, de um jeito diferente de como fizera nela. Mas ele pôde compreender. Por um segundo, ele esteve conectado àquela mulher, e ela, uma desconhecida, pôde entender a sua dor.



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