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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Sobre cristais e porcelanas

Na minha cristaleira mora um mundo. Ela é como o Elefante de Drummond, que vai sendo construído de partes e fragmentos.
Quando me separei de meu marido, eu tinha uma filha pequena e muito chão para ganhar. Viver. Instalada num novo apartamento alugado, a vida anunciava as boas coisas e a difíceis.
Um dia, deixei minha pequena na escola e desci a pé por Santa Cecília. Andando meio sem rumo, como naquela época eu faria muitas vezes, vi um porão e uma porta bem pequena. Ali havia de tudo: móveis, porcelanas, não era bem um antiquário, mas fazia as vezes de.
Entrei e a primeira coisa que vi foi aquela que seria minha cristaleira para sempre. Pés longos e longilíneos, ela me chamava. Eram três portas, cada uma com 3 prateleiras; o fundo era feito de espelhos. Não resisti. Estava quebrada financeiramente, mas aquela cristaleira era um prenúncio de que eu poderia recomeçar em grande estilo. Assinei três cheques e vupt, ela foi entregue no dia seguinte.
Muitos anos se passaram desde esse dia. Minha filha cresceu, eu envelheci, minha cidade mudou demais, e eu não entendo muito bem no que o mundo se transformou. Tudo do avesso, eu sinto assim. Mas a velha e boa cristaleira de pés Luís XV permanece ali, eterna, imponente e delicada, estável em seus pés altos e porte elegante. Ela conta a minha história, da minha família, dos meus amores, das minhas aquisições.
Olho a porta do centro, de cara resgato a lembrança deliciosa de minha infância: 5 copinhos americanos coloridos e filetados a ouro -- eu os via sempre na cristaleita de minha avó Hermínia, eles ficavam dependurados em um suporte de madeira que encimava um rosto de um homem engraçado, com chapéu colorido e nariz vermelho como de um palhaço. Quando minha avó morreu, herdei muitas coisas dela, o relógio despertador, o rádio Pioneer onde ela ouvia as radionovelas e notícias junto comigo na sua cama. Minha irmã ficou com as taças de champanhe o lencço português de bisavó Carolina, puro luxo.
A lembrança me traz saudade daquela mulher muito bonita, de olhos de um verde acinzentado, e que me ensinou inúmeros palavrões e brincadeiras portuguesas ("Mão mole, mão mole, mão mole, pobrezinho na porta pedindo uma pedrinha de SAL!" Aí ela jogava minha mão contra o meu rosto, e eu gargalhava, aquela gargalhada de criança, bem solta e feliz.).
Olho mais para a direita e vejo a licoreira que minha tia Cida me deu, foi do casamento dela. É de vidro rosa transparente, copinhos bojudos, um mimo que me deixou muito feliz. Acho que as pessoas confiam muito em mim. Inúmeras vezes me deram peças de família, coisas de enxoval dos anos 30, objetos ganhos de casamento. Fico feliz de poder de confiarem a mim isso tudo.
À esquerda, está a licoreira azul que minha mãe ganhou de casamenro e jamais usou... Lembro direitinho: ela me disse, "olha, vou te dar minha licoreira do casamento, mas toma muito cuidado, tem muiiitos anos que venho guardando!". E daquele jeito que só ela tem, me passou a caixa e saiu para calar.
Na porta da esquerda está toda minha vida: eu trouxe uma xícara da Irlanda junto com 2 pratinhos ingleses. Também ali mora meu casamento e a família que tive junto com ele -- minhas cunhadas sempre me deram muitos presentes, e um deles é um cristal alemão belíssimo, que só uso em ocasiões muuuuuuito especiais; também está ali, guardada com o maior carinho, a xícara de porcelana japonesa que a tia de meu ex-marido me deu junto com outras, me falando assim: "vou dar essas xícaras pra você, pois sei que tem o maior cuidado". Eu quase não acreditei, no fundo da xícara, quando direcionado contra a luz, surge o rosto de uma japonesa. É um luxo!
Acima, quietinhas, estão 4 xícaras cubanas que ganhei de uma família de lá. Elas têm uma palmeira pintada, como se estivesse ao vento. Tenho o maior cuidado com elas. Abaixo, fica a xícara de Limoges que comprei a preço de ouro, mas nunca me arrependi. Ela é de porcelana, mas parece uma taça finíssima, tamanha beleza, elegância e refinamento de seus materiais; tem rosas pequeniníssimas pintadas a mão nas bordas e no pires. Um objeto de desejo.
Há um açucareiro japonês pintado a mão, belíssimo, que foi de minha avó, mas como ela não ligava muito pra essas coisas, ela quebrou a tampa e jamais providenciou outra. Ele deve ter cerca de 80 anos, pois ela ganhou de casamento, em 1930. Quando vou lavar as peças, tomo o maior cuidado com ele. Ele me lembra as tardes com chá preto e palavrões e brincadeiras de `mão mole' que ela fazia comigo.
Na porta da direita, há um reino que não tem preço: são as xícaras que minha mãe vai me dando ao longo da vida. Ela sabe que gosto, então, vai a feiras de antiguidade e me traz: chinesas, brasileiras, todas velhíssimas, do jeito que eu gosto. Abaixo delas, está o tesouro do qual nunca me desfarei; são inúmeras peças de massinha, florzinhas de argila, um sol feito de gesso e pintado com purpurina, sobre um papel-cartão bem pequeno ela com suas mãozinhas de artista foi tecendo várias flores de massinha, minúsculas, e compôs um jardim. Adoro olhar para ele e imaginar todo sentimento que havia nela quando ela me fez esse presente tão delicado. Ela jamais vai saber que esse jardim é meu refúgio; quando tudo está muito ruim, vou à cristaleira e olho o pequeno jardim delicado e amoroso, então, parece que a vida faz todo sentido, e um filme veloz povoa minha mente: a praia, Camburi, um aroma de Sundown, shampoo e cabelos molçhados me arrebata e ela tem 5 anos e duas mãozinhas que vivem me surpreendendo -- abraçando por trás, sentando no meu colo, pedindo pra dormir comigo porque está com medo, os almoços de domingo. Saio dali refeita.
Há também ali dois bibelôs muito antigos, um da minha mãe, e outro que era de minha avó -- é um cavalo bem pequeno e um pequeno cavaleiro-criança que segura sua guia, tudo pintado e filetado a ouro, que o tempo, claro, já desgastou.
Mas voltemos à porta do meio.
Há duas taças de licor finíssimas de cristal que pertenceram à família de meu ex-marido, e a tia dele também me deu. Havia três, mas eu, descuidada, um dia quebrei uma delas. Agora elas não saem mais dali para passear, só ficam ornando o lugar. Há uma taça de cristal roxa, com desenhos de flor que foi de minha avó e me foi dada por minha mãe. Ela reina ali no centro de tudo, pois me custa acreditar que aquela fazendeira silenciosa, dura e cheia de energia que criou 9 filhos, pudesse ter coisas tão delicadas em sua cristaleira. Mas a vida é surpreendente, disso eu já sei.
Há três chaveirinhos de vidro que acendem luzes furta-cor. Ganhei da minha mãe: um sagitário e um escorpião. E mais um de nossa senhora aparecida que minha tia me deu com todo o carinho e que guardo como se fosse uma relíquia. Em volta dele dependurei a bandeira da festa do divino que minha mãe me deu. Adoro ver aquela pomba na flâmula vermelha.
Mas o highlight desta cristaleira é um presente que jamais, jamais esquecerei: minha filha trouxe nas mãos três flores feitas de açúcar, são cor-de-rosa e têm o suporte verdinho. Ela viajou um mês com aquelas rosinhas nas mãos para não quebrar, para que chegassem a mim inteiras e lindas, como são, e como ela é. No seu aniversário de 18 anos fiz questão de tirá-las da cristaleira e deitá-las sobre um bolo branco. Nos parabéns, me deu vontade de chorar, pensando na nossa história, a minha e a dela, em que cabe uma herança tão doce. Tão delicada, como ela é.
Vejo e sinto que minha vida toda está ali. Mas ainda há de haver muitas histórias nesse abrir e fechar de portas de vidro. A cada jantar, baixo toda a porcela que nela vive, e tenho o maior prazer de usar essas peças que foram de alguém um dia, mas que me legaram por eu, talvez, merecer.
Há coisas do passado, mas também há os objetos e sentimentos do presente. No alto da porta do centro, vejo duas peças inglesas de prata muito pequenas, pés de leão pequeníssimos. Dentro delas deita-se uma minúscula colherinha em forma de concha em prata. Num passado bem remoto, elas podem ter participado de festas, banquetes, lanches naqueles jardins ingleses, ou simplesmente jaziam ali num jantar silencioso de uma família do século XIX. Quando fui presenteada, me emocionei muito por a mim ser destinado algo tão fino, sofisticado, delicado. Mas como sempre, engoli fundo a emoção para que a água salgada não estravazasse seus limites e expusesse a porcelana frágil velada sob minha dureza.
Mas pensando em todas essas histórias, essas duas pecinhas raras e lindas e adoráveis transpuseram um Atlântico com destino certeiro: a cristaleira da rua monte alegre. Nesse gesto certamente habitam muito sentimento e a certeza de que eu as guardarei comigo como se fossem joias, para sempre.

domingo, 4 de julho de 2010

Paraísos artificiais

Eles se constroem
com álcool,
imaginação
e algumas drogas.
A possibilidade
cresce
num caldo
vigoroso.
Fosse uma banana
amassada,
encerrada num laboratório,
em vez de
drosófilas melanogáster,
procriaríamos
e multiplicaríamos.

É cedo.
A rua quase
deserta.
Raros automóveis
diminuem a marcha
num trajeto
desconfiado.
-- A felicidade mora mesmo aqui?
Em que número?
56,
97,
293?

Querem se apropriar
do pequeno
filão
preso no labirinto.
A saída
e o núcleo.
Ansiosa,
abocanho
o tesouro,
antídoto para o
minotauro feroz.
Em um segundo
a criatura mítica
pode desfazer o encanto.
Nossa alegria.
Minha.
Sua.
De posse do sagrado,
corro certeira
em busca de ar,
ar.
Suando frio
evito a óbvia armadilha.

Instalado no Universo,
como quem vive um dia de cada vez,
você tamborila os dedos
numa mesa de madeira.
Suave, pensa na sua condição
masculina e repleta
de meandros sutis.
Agora, a sua antítese
chega com
o remédio
para nossas dores.
A minha.
A sua.

Minhas mãos
quentes, latejantes,
borrifam
o leite mítico.
Esculpem
a batalha
cotidiana.

Recomeçar.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Chanel n. 5

Vogais,
semivogais,
consoantes.
Palavras mínimas,
frases minimalistas.
Delas extraio
o sagrado unguento,
seiva elaborada
que percorre
o lenho --
elixir
que unge
todos
os
sentidos.