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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Às quartas

"Todo mundo que pensa é infeliz."
(Sergei Dovlatov)

Às 2as é dia de organizar o tempo e recompô-lo. Às 4as é dia de limpar as estantes do pensamento. Uma forma de fazer que a felicidade cotidiana, miúda, imperceptível, não seja maculada por essa infelicidade de neurônios se comunicando, velozes, criando raciocínios ímpares e conclusões certeiras, que muitas vezes condenam nossa pequenina felicidade terrestre.
Eis-me então aqui: espanador e flanelas e a certeza de querer me antecipar aos neurônios e espanar a infelicidade do pensamento, pensando, pensando, concluindo, que tenta, assim, bloquear a alegria e a esperança. Não. Esperança é tudo! Alegria também.
Boa semana então aos pensamentos bons que ficam. Um brinde antropofágico: "Evoé, baco!"

terça-feira, 28 de junho de 2011

O tempo e as segundas-feiras

As segundas são dias de recuperação para mim. Preciso de um tempo para digerir o fim de semana. Na segunda, procuro uma organização estranha, que normalmente não tenho, num movimento em marcha a ré. Lavo o carro, compro frutas e legumes, compro algum item de supermercado que está faltando, levo as roupas na lavanderia, compro os itens de toucador que estão acabando -- cremes, xampu, hidratantes --; organizo mentalmente meu tempo da semana: que trabalhos tenho que entregar, quanto tempo levarei por dia em cada um deles, como encaixarei os compromissos no meio do trabalho (que em geral é muito).
Sou uma Sandra Brazil antiquada, mãe, dona de casa, secretária de mim mesma nessas segundas. Mas quando chega a meia-noite, adentro a terça, e uma cinderela esquisita e canhestra perde o pé e volta a ser a Sandra mezzo desorganizada, mezzo louca, imprevisível, sem horários, sem rotina preestabelecida. É como se houvesse uma fada-madrinha, que nas segundas ajuda a centrar meu universo familiar e doméstico. Quando ela vai embora, leva consigo uma bússola da organização e um pouco da convenção, além de retirar de mim as vestes cuidadas e esmeradas, o brilho da abóbora-carro, o centro no que se deve fazer. Volto à loucura. Posso voltar.
Ontem foi segunda, e me vi refazendo esse percurso esquisito. Mas a preocupação dessa vez era outra. Inconscientemente fui subindo e descendo as ladeiras íngremes de Perdizes. Fui ao banco e não gostei do que vi em minha conta corrente; pronto, corri pra apagar esse incêndio. Conta reestabelecida, fui em busca do que faltava na casa. Não era muita coisa dessa vez. Voltei pra casa e pensei que poderia enfim me sentar para trabalhar então, mais cedo do que o normal às segundas. Mas ao fechar a porta, na segunda volta da chave vi um relógio que estava sobre o bifê. Fazia semanas que ele estava lá, agonizante, mas eu não tinha tempo de acompanhar sua recuperação. Ele me olhava de soslaio, pedindo pra que eu tomasse conta do seu tempo, que expirava dia a dia. Ele precisava de uma bateria nova, apesar de ser um relógio quase novo. Mas eu nunca tinha tempo pra fazer isso. Pensei assim que o vi que precisava recortar um tempo no meu tempo pra recuperar o tempo daquele relógio. Queria ouvir de novo o tique-taque marcando meus dias e noites. O tempo recuperado naquele relógio faria que ele remoçasse, o tempo recuperado o tornaria vigoroso de novo, sinalizando o meu tempo dedicado aos outros e a mim. Peguei delicadamente o marca-tempo e o coloquei num necessaire em minha bolsa. Ao abaixar para pegar uma chave que caiu, vi sobre a mesa de centro, em meio às máscaras e peças de que gosto tanto, um tique-taquezinho pequenino: era o relógio que minha mãe me deu, presente do meu avô a ela quando tinha 10 anos. O relógio portanto tem 65 anos... Uma ornamento delicado e retrô, como eu gosto, sempre.
Abri o necessaire, e incluí aquele pequeno mimo no meu roteiro dessa 2a feira: eu iria recobrar o tempo das minhas coisas, tempo que ficou perdido naquele lapso de tempo.
Cheguei na relojoaria, uma loja de rua. Isso é um luxo hoje em São Paulo. As lojas de rua de minha infância não sobrevivem ao ar condicionado e às vagas de estacionamento dos shoppings. Mas eu sou de duma geração que comprava linha e botões e fitas de seda e novelos de lã para as mães nos bazares e lojas de armarinhos do bairro. Portanto, enquanto houver uma loja de rua em pé, estarei lá prestigiando sua luta contra a fúria do tempo e do progresso da metrópole.
Entrei na relojoaria e confesso que fiquei meio sem-graça de mostrar um relógio tão antigo a um jovem tão jovem, que me atendeu. Eu até perguntei: "Vocês consertam relógios de corda assim tão antigos". De relance, vi o relojoeiro no fundo da loja, e isso me aliviou. Ele deve ter minha idade, então, pensei, deve saber o que estou sentindo em relação a lojas de rua e relógios antigos de corda e em relação ao tempo.
O rapazinho perguntou meu nome duas vezes e me disse que sim, eles revisam e consertam relógios de corda. Aliás, depois que entrei vi que havia inúmeros relógios de mesa e carrilhão muito antigos no fundo da loja. perguntei: "É para vender". Não, são todos pra conserto. Eram belíssimos e iguais aos relógios que via nas casas da minha infância.
O relógio novo foi rapidamente recuperado e sua agonia terminou apenas com a troca da bateria. nele, o tempo voltaria a pulsar seu tique-taque monótono e cotidiano. O reloginho retrô precisará de alguns dias de internação: é preciso polir, abrir a caixa de funcionamento, trocar o mecanismo de corda. Só então, ele poderá dar as mãos para o tempo novamente e marcar silencioso e pequenino aquilo que se esvai rapidamente, a olhos vistos: o tempo.
Na sincronia dessa segunda-feira, me vi restaurando e cuidando de algo que, aos 48 anos, me é tão caro: os grãos de areia de uma ampulheta. Silencioso, ele me trouxe até aqui, e eu sequer percebi. Quando vi, a ampulheta já marcava quase metade do que tenho direito nesta vida. Olhei para ela e gostei do que vi: nos grãos de areia que me acompanharam até aqui foram registradas marcas que o tempo não vai apagar. São marcas sólidas, belas e inspiradoras para mim. Na segunda metade da ampulheta, elas serão como o farol que orienta os marinheiros, quero tê-las comigo. Olho para trás. Gostei do que vi.
E esta foi só uma segunda-feira...

domingo, 26 de junho de 2011

Parada, do passado

"Caleidoscópio


Nesta tarde de domingo, diferentemente das outras, estou aqui rodeada por milhares de pessoas -- eu, que sou avessa a multidões.
Como antigamente, quando se fotografava uma viagem e se oferecia aos amigos e à família uma tarde de mostra pessoal de slides, eu lhes apresento meu próprio projetor, um carrossel um tanto dinamizado, psicodélico e multicolorido. Diferentemente também dessas tardes enfadonhas de projeções pessoais, aqui as imagens são mostras de diversidade e levam à loucura, ao delírio, ao riso e à catarse.
A aventura começou com uma mensagem no meu celular. Fernanda me chamando para a Parada Gay. Gosto da Parada, mas nunca tenho o movimento de ir, de tomar a atitude de sair de casa e caminhar por minhas próprias pernas aos eventos. Sempre ela, a minha musa, a me seduzir com suas mensagens. Aí, tomo vergonha, me monto e saio. Tudo graças a ela.
Já no caminho, minha câmera ocular vai fotografando muitos universos, e atenção senhoras e senhores, pois a partir de agora apresentarei slides dessa minha breve viagem.
Já no ônibus, uma fauna peculiar vai cantando no fundão: “o mundo é gay”, num tom desafinado coletivo e esganiçado. Olho nos olhos daqueles jovens: não há engajamento, não há vontade, eles estão praticamente todos “chapados”, loucos pra barbarizar, um garrafão de vinho duvidoso corre os bancos, eles gritam que a periferia também gosta da Parada e que vão “zoar” lá na Paulista.
Uma mulher a meu lado traz uma aliança de casada, tem os cabelos à chanel e alourados e sorri o tempo todo gostando daquela bagunça, mas uma preocupação perpassa o olhar. Ela me pergunta se o ônibus fará o mesmo itinerário que de outros dias e que está procurando uma prima que subiu com ela no comboio, mas de quem se perdeu. Pergunto como ela é e seu nome, e tento procurá-la também, em solidariedade a essa mulher, perdida que está em meio àquela tribo. No fundo do ônibus, apenas nós duas temos mais de 40 anos.
No trajeto, um gari de uns 60 anos posta-se cambaleante perto dos degraus da porta de saída; bêbado demais pra se segurar, vai caindo a cada solavanco. Dois garotos resolvem tirar uma do “tiozinho” e começam a fazer perguntas a ele. Estava bêbado, mas de trouxa não tinha nada. Disse aos meninos: “tão tirando uma aqui do tio, né?”, e riu com seus dentes falsos brilhando. Todos riram no fundo do ônibus, inclusive eu. Ele aproveita seu carisma e começa a cantar sambas antigos de Lupicínio Rodrigues, tropeçando nas letras, mas caprichando no compasso. As meninas riem e se juntam ao seu redor. Ele vê que conseguiu chamar a atenção, finalmente, não só pela gozação dos meninos, mas por seu jeito de brasileiro “manda bem”. Mas, repito, bêbado e cambaleante, começou a ficar inconveniente e falou a uma menina que estava do meu lado: “Vou ficar com você”. Ela riu, e falou “sai fora, tiozinho!”. Mas antes mesmo de ela terminar a frase, ele me viu de relance e abotoou: “Não, eu vou ficar com essa coroa”... Houve um silêncio no fundo do ônibus, o primeiro e único daquela viagem até a Paulista. Pensei que meninos e meninas tirariam uma de minha situação, mas eles foram solidários na sua mudez, não disseram uma palavra, e isso desencorajou o gari. Eu estava sorrindo de tudo aquilo, mas imediatamente balancei a cabeça e me virei para um casal de namorados à minha esquerda, pedindo ajuda com os olhos. Eles se aproximaram, como se eu fosse da família e me receberam para me proteger daquele xaveco tosco.
Desci com a juventude de manos e manas no primeiro ponto da alameda Santos. Ali nos degraus, uma menina que o gari havia ‘bolinado’ resolveu endurecer e lhe deu uns tapas. Juntou um pequeno grupo na porta e pensei que iriam espancá-lo, mas o gari amarelou e pude descer antes que alguma tragédia acontecesse àquele homem velho demais para a idade, cansado e infeliz.
Fui encontrar minhas amigas na Paulista. Lá estavam elas: lindas, douradas pelo sol de outono daquela tarde. A Parada já corria solta fazia tempo, mas ali estava calmo e tranquilo pra se assistir. Havia vários isopores ao redor, cheios de cerveja, água e refrí. O rapaz do isopor ao nosso lado pedia as garrafas d’água e latinhas e fazia uma sacola com elas. Certamente, além da renda do dia, venderia os recicláveis e tiraria mais algum no dia seguinte. Pensei se ele sabia o que era “diversidade”, se gostava da parada gay, se militava pela liberdade de opção sexual, se tinha filhos, se era gay ou heterossexual, se havia chegado ao ensino médio. Espanei esses pensamentos da minha mente. Vale tudo na Parada Gay.
Fiquei apenas uma hora ali, mas vários personagens passaram por esse caminho dourado e seu arco-íris implícito. Os mais diversos e ecléticos possíveis. Muitos usavam anteninhas na cabeça, meninas e meninos, jovens e mais velhos, ou chifrinhos de diabo. Outros usavam uma espécie de estola de plumas, pequenas e grandes ao redor do pescoço para dar um tom de brilho a essa tarde de alegria e liberdade. Uma noiva enorme, com cerca de dois metros de altura, carregada na maquiagem, tirou fotos com os passantes. Também outro personagem, com plumas rosa-choque, ficou muito tempo ali, as pessoas pedindo para tirar fotos com ele (ela). Os carros iam passando, as músicas as mais variadas, e me lembro de ter dançado quando passou o carro com música dos anos 70. O carro de música eletrônica também estava bem animado e trazia homens fortes, definidos, musculosos, vestidos de boxeur. Um luxo.
Homens lindos e de sorriso muito branco transitavam, senhores que são de si e de sua beleza. Uma vaidade, para mim, muito maior que a feminina em nós, mulheres XX. As mulheres também eram bem bonitas naquele pedaço da Paulista em que estávamos, e uma delas veio perfurando a multidão. Era jovem, uns 28 anos. Discreta, chamou minha atenção por isso. Veio me olhando com olhos delicados e interessados. No início, não entendi, achei que era uma conhecida, mas não. Ela veio lânguida, deslizando em meio à turba, determinada como um felino. Insistiu no olhar que ninguém percebia, apenas eu. Fiquei pensando por que ela me desejaria. E logo eu teria a resposta. Ela passou à minha direita de mãos dadas com uma mulher da minha idade. (Sim, ela também gosta de mulheres mais velhas.) Estávamos tirando fotos umas das outras, eu e as meninas, nos divertindo, e numa das fotos meu olhar está voltado para o lado, numa cena que só eu e ela saberemos, para sempre.
Num momento, vejo lantejoulas muito brilhantes passando por mim, era uma réplica de Chacrinha, que era abraçado, fotografado, beijado e ovacionado pelas pessoas. Resolvi, instigada por Mariana, fotografar. Corremos nós duas atrás dele. E eu que sou tímida e reticente, medrosa de uma negativa, vi um sorriso escancarar da boca desse Chacrinha absurdo e ele abriu os braços e se ofereceu para minha objetiva. Me arrependi de não ter pedido que tirasse uma foto com Mariana, que estava especialmente bonita nesse dia, com sua peruca turquesa e estolinha da mesma cor. Mas eternizei o olhar dela no meu celular, fios turquesa voando na tarde na Paulista, emoldurando o belo sorriso.
Para Patrícia, a tarde foi especialmente aconchegante: ela estava bruscamente linda, com seu rosto e cabelos divinos, e soube da existência de três admiradores secretos; um deles, Diana a caçadora, eternizei na minha angular -- “as presas, num feliz entregar-se”.


Ju tem a beleza das musas dos retratos. Estava a milhão, mas, sempre atenta, não deixou de dizer numa fala mezzo dura ao garoto atrás de nós: “Você vai matar seu amigo!”. Um menino de uns 20 anos teve uma convulsão na calçada, a dois metros de nós. De sua boca vertia algo vermelho, que a princípio pensei ser sangue. Na verdade, era um vinho barato vendido ali na Paulista. Não demos muita importância, mas ela, descendo o mármore da sua beleza clara, de olhos lindos e dentes e sorriso muito brancos, chegou junto e colaborou pra que o garoto convulsivo não morresse asfixiado – já que o amigo-mala, em vez de socorrê-lo, jogava mais vinho em seu rosto. Ela também dançou e fotografei seus movimentos em câmera lenta: linda, jovem e escrachada. Ela é tudo.
E não pude deixar de fotografar Fernanda nessa tarde dourada e gay, feliz e divertida, cheia de liberdade. Ela rodopiou na calçada e pude captar sete giras a seu redor. Homens e mulheres não conseguiram se conter a seus encantos. No fundo, nessa foto, todos estão a seus pés. Nos clicamos juntas, e aí eternizamos nossa amizade.
Eu mesma me senti bela e poderosa Afrodite nesse planalto de onde vejo o mundo. Diversa, livre e feliz com o que tenho ou com o que posso escolher e ter.
Resolvi que era o momento de me retirar então, pois as coisas findas são aquelas que ficam, disse o poeta. Me despedi das poderosas com pesar, mas encarei o adeus como a mulher forte que tento ser. Cruzei um quarteirão de semidecadência. Gente vomitava pelos cantos aquele vinho ordinário; os isopores estavam meio vazios já, tamanha a voracidade da multidão. Alguns, de tão avariados, estavam deitados no asfalto, correndo o risco de ser pisoteados. E eu, como sempre, preocupada com o mundo e as pessoas.
Mas o celular tocou e me chamou de volta para o meu universo. Era o presente mais delicado: a bela Isadora, a dádiva de Ísis, me chamava para estar a seu lado. Como sempre, corri a seu chamado.
Nessa tarde dourada de outono, abaixo do arco-íris, tenho muitos motivos para comemorar."

Hoje é dia de Parada. Não há o sol dourado de 2008, quando escrevi este texto, mas há a velha e boa garoa da minha infância paulistana. Me apronto pra enfrentar a Parada de hoje: sem dúvida encontrarei conhecidos.

Domingo de garoa

"Eu nao digo que tenha muito.
Mas tenho ainda a procura intensa e
uma esperanca violenta."

Clarice Lispector