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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Os bondes de Santa Tereza

Quantas vezes tomei o bonde que vai do Centro do Rio ao bairro de Santa Tereza. Inocente, ficava naquela fila que mais parecia uma Babel: franceses, ingleses, alemães, italianos, poloneses, portugueses, espanhóis, japoneses, eu, o officeboy que corria com documentos para entregar -- este ficava na fila daqueles que queriam ir no estribo mesmo, pois tinham pressa.
O bonde que cruza sobre os arcos da Lapa e me dá arrepios, pois tenho acrofobia. Ainda assim, lá de dentro, estico o olho para ver a decadência misturada ao charme que a Lapa traz da época da sua malandragem... O medo de passar sobre os arcos e o bondinho virar lá de cima sempre me acompanhou, porque sou medrosa mesmo, por natureza. Quando o bondinho enfim chegava ao final dos arcos e seguia pelas ruas bucólicas do bairro, meu coração sossegava um pouco, inocente que sou...
O motorista (se é que podemos chamá-lo assim) fazia lá seu milagre a cada trajeto e eu chegava inteira lá no alto de Santa Tereza. Aí, era só caminhar e depois sentar-se num bar qualquer e tomar uma cerveja bem gelada, porque o Rio é muito quente para não se tomar uma loira...
Na volta, nunca peguei um bonde para descer. Voltava por outros meios.
Mas Santa Tereza tem para mim muitas lembranças. Ótimas. Gosto de passear na memória e reencontrar esse ponto guardado ali. Sempre ensolarado, o bonde chegando, a alegria de Santa Tereza tomando o corpo, a cerveja gelada gerando um confortozinho, umas horas boas, e depois descer para o Rio e ver o mar, a areia branca e o azul... é sempre bom ter o Rio plantado na memória.
Pois ultimamente, quando vou ao Rio não tenho mais ido a Santa Tereza, seja por falta de tempo, seja por trocar por outro passeio.
Ao ler os jornais, três notícias me deixaram também mais medrosa do que já era em relação ao bonde que nos leva ao bairro de ruas bucólicas e deliciosas. Há algum tempo, li que numa das ruas o bonde não aguentou subir, voltou em ré e causou pânico nos passageiros. Uma adolescente acabou pulando do bonde, com medo, e se acidentou fatalmente. Noutra vez, recentemente, um turista francês foi fotografar uma amiga bem no trajeto sobre os arcos da Lapa. Pisou no estribo, resultado, caiu lá de cima, pois se desequilibrou e havia uma buraco na rede de proteção... Agonizou no chão da Lapa, onde foi roubado por moradores de rua ainda em seus últimos instantes de vida, dá para acreditar? E agora o acidente terrível nesta semana, em que fica claro o descaso das autoridades em relação à manutenção dos históricos bondes que levam a Santa Tereza.
Há muito tempo os funcionários expõem a fragilidade do maquinário, sobretudo dos freios, eles temiam que algo grave acontecesse havia muito tempo. Não aconteceu sei lá por qual motivo: porque não tinha que acontecer; ou talvez pela boa vontade e perícia dos "motoristas" de bondinho, calejados de dirigir aquela engenhoca mal aparatada, mal mantida, com mecânica prá lá de mal feita; os religiosos diriam: foi porque Deus não quis...
Mas fiquei me lembrando das vezes em que chacoalhei lá em cima dos arcos e, medrosíssima que sou de altura, pensava pessimista que o bonde poderia virar e tombar e cair lá embaixo não fossem as ótimas manobras daquele homem que ganhava tão pouco ali na frente... Depois de feito o trajeto dos arcos, meu coração desassossegado de maluca pensava: e se esse bonde não tem freio? Só ficava tranquila quando descia na parada da verduraria, que, aliás, tem uma dona sem noção, que tem umas placas assim na fachada: "Proibido fotografar".
Meu deus, como proibir fotografar em Santa Tereza, sobretudo se a loja de verduras dessa senhora fora de senso fica bem em frente da parada do bonde?
Certa vez, eu desci do bonde e atravessei a rua. Sou uma sagitariana com ascendente em aquário, portanto, sou muito distraída. Não vi as placas de "Proibido fotografar" da dita senhora. Pisei na calçada e esperei quem me acompanhava, que ainda estava no bonde; eu infelizmente estava em frente da verduraria...
Quem estava comigo desceu do bonde e começou, como todos os turistas, claro, que se deslumbram com Santa Tereza, a fotografar o bairro em outras direções, mas não as verduras... afinal, quem vai a Santa Tereza para fotografar verduras?!
A senhora em questão, com um sotaque luso, começou a gritar: "É proibido fotografar! Vou processar você! É proibido fotografar!"
Eu achei que ela estava falando com outra pessoa, porque ninguém estava me fotografando, afinal... Por fim, ela veio à rua, houve um bate-boca horrível, e ela jura de pés juntos, até hoje, que fui fotografada em meio a seus tomates, couve-flores, acelgas, batatas, salsinhas, cebolinhas...
Abrimos as fotos: não havia uma só verdura ao meu redor! Nem havia foto minha em Santa Tereza! Muito menos envolta nos verdes daquela senhora estressadíssima.
Portanto, leitores do meu blogue, cuidado: ao pisarem em Santa Tereza, evitem ser fotografados entre tomates e hortelãs. Isso pode azedar seu dia...
Mas voltando aos bondes de Santa Tereza, eles agora estão por um tempo fora de circulação. Confesso que saber disso me fez sentir saudade de esticar meu olho lá de cima, ver o bar sórdido num canto da Lapa, da adrenalina sobre os arcos, de ficar na fila da Babel, depois, descer no alto de Santa Tereza, dar um passeio e só esperar pela loira gelada.
Agora, é esperar e já me imagino de novo, coração em desassossego, um olho fechado e outro aberto, lá de cima dos arcos, mirando aquele bar sórdido de esquina na Lapa. Tudo por uma breja lá em cima, em Santa Tereza...

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A chapa é quente

Eu deixei os jardins de Versalhes, uma sensação estranha. Tudo tão lindo, mas algo me revirava o estômago. Meu francês estranhamente estava na ponta da língua e afiado. Que estranho, tudo muito esquisito. A simetria daquele lugar começou a me dar engulhos.
De repente, como num filme, outra cena: eu estava de joelhos, as mãos presas, uma Marie-Antoinette sem ser, pensando em português, falando em francês. Surda, eu só via uma multidão, bocas bem abertas gritando sem som. A guilhotina tinia no alto, rasgando o vento com sua lâmina afiadíssima. Uma gota finíssima correu pela lateral do rosto. Era assim que se sentia um condenado então...
Esperei a lâmina descer e sabia que seria tudo muito rápido. Num átimo, pensei na minha filha, nos meus pais, no meu trabalho, na minha casa deliciosa, nos meus livros, no amor, nas viagens que ainda poderia fazer, em tudo que ainda poderia ter e viver. Por que eu estava ali? Por que me chamavam por outro nome? Por que eu não fazia nada em minha defesa? Submissa a um destino alheio, a mudez selara a minha morte.
Eu não podia me mexer, mas senti que a ordem fora dada, a guilhotina desceria sobre meu pescoço. Não! A multidão foi ao delírio, como nesses campeonatos de luta livre, eles queriam meu sangue. Fechei os olhos bem apertados. Eu pensei: que seja breve.

O som do Nokia tocou no criado-mudo... Atordoada, atendi.
-- Bom dia, é do consultório da doutora X. É dona Sandra?
-- Sim, sou eu... (Mas eu não era Maria Antonieta? Meu pescoço não estava por um fio?)
-- Queria confirmar sua consulta para amanhã, às 10h30...

Salva pela chatice da confirmação da consulta médica, me levantei disposta com aquele telefonema. Afinal, não ser um personagem da história francesa havia me livrado de uma bela "chapa quente" naquela manhã.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Um pedido

Os dias não têm sido "como uma onda no mar". Há fases na vida, sobretudo de uma mulher, em que os problemas parecem um zigoto: eles vão se divididindo, à sua revelia, e se juntando contra você, para testar sua capacidade e paciência de monge. Digo "de uma mulher", porque ontem ouvi de um amigo algo assim: vocês mulheres enfrentam, escondem a fragilidade e encaram.
Fiquei pensando nisso depois que nos despedimos.
Os homens que conheço, a maioria pelo menos, quando enfrentam algum revés, tiram a pele do cotovelo em algum balcão de bar, e em geral descascam o ouvido mais próximo desavisado se estiverem de caco cheio... "Ela me deixou, ela me traiu, perdi tudo que tenho etc. etc."
Alguns, já vi isso acontecer, voltam para a casa da mãe... E ali permanecem eternamente, sem sequer tentar solucionar seu problema. Já vi isso acontecer.
Já as mulheres que conheço, em geral, vergam, mas não quebram. Até pedem um abrigo para os pais num momento de "ressaca", mas quando vejo, alguns meses mais tarde, já estão de casa nova, emprego novo, cabelo novo, mais magras e de namorado mais jovem!
Não, não estou querendo destruir a imagem masculina. Ao contrário. Não vivo sem vocês, meus queridos exemplares Y. O que seria de mim sem sua presença, como eu poderia escrever, sem amá-los, sem ter sua doce companhia ao longo da vida... Do casamento feliz, da separação infeliz (porque todas as separações têm um quê de infelicidade, não me digam que não!), das relações estáveis e longas que tive durante a vida e do amor que marcou sua presença. Só os homens poderiam proporcionar isso. Dito isso, entendam que a figura masculina não está sendo destruída. Ao contrário.
Bem, há um zigoto se dividindo, em 2, 4, 6, 8, numa progressão que não consigo acompanhar. Mas, como meu amigo disse, sou mulher. Escondo minha fragilidade, e ignoro o zigotinho que tenta me vergar.
Meu amigo me disse: ela gostou dos seus textos. E pronto! Foi o suficiente para o zigoto interromper seu crescimento desenfreado.
Gosto muito de saber que as mulheres gostam de meus textos. Que o que escrevo chega no sentimento feminino. Digo isso, porque costumo escrever com muito sentimento, mas também com muitos recursos de raciocínio. Dou laçadas nas palavras. Elaboro uma arquitetura obscura e estranha que brinca de mostrar e esconder. Aí, de repente, como em um jogo de enganar mostro tudo, mas mostro tão escancaradamente, que imagino que o leitor fique na dúvida se realmente mostro, ou se estou brincando de esconder em uma mentira. É, às vezes é ficção para não me mostrar, mas às vezes é verdade, para não morrer engasgada com aquela palavra.
E eu escrevo não pela vaidade de escrever, escrevo para chegar no íntimo das pessoas, tocar aquele terreno escondido, soterrado pela dureza cotidiana. Na verdade, eu quero emocionar quem transita pelas minhas palavras, não pela vaidade de emocionar, mas para que possamos desprender nossa dureza. Pois eu que sou dura, pois tive que ser, pois tive que esconder minha fragilidade para enfrentar a vida, me escorei nas palavras para deitar minha emoção e meu sentimento nelas. Como uma noiva deita delicadamente seu vestido branco numa caixa para que ele fique impecável até o dia da consagração.
Portanto, deitem-se comigo sobre elas, as palavras, e se emocionem comigo. Quero, a cada dia, mostrar mais e mais minha fragilidade, ela que sobreviveu a tudo e pôde despejar todo esse sentimento que minhas mãos querem mostrar agora.

Boas intenções

Não é o fim
de tudo,
me disseram.
Mas que parece
um Titanic
batendo de frente
num iceberg,
isso parece.
Bisturi
raspando
no osso.

Me desculpem,
mas só eu sei.

(Sandra Brazil, 2.8.2001)

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Elogio da memória

O funil da ampulheta apressa,
retardando-a,
a queda da areia.
Nisso imita o jogo maravilhoso
de certos momentos
que se vão embora
quando mais queríamos que ficassem.

(José Paulo Paes)

Madrugada

Do fundo de meu quarto, do fundo
de meu corpo
clandestino
ouço (não vejo) ouço
crescer no osso e no músculo da noite
a noite

a noite ocidental obscenamente acesa
sobre meu país dividido em classes

(Ferreira Gullar, in Toda poesia, 1991)

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Dormente

Janelões, portais,
ruas de pedra.
Colinas desenham
o azul sem fim

máxima combustão
nesta felicidade.

Um novo tom
invade esta varanda:
-- novas cores --

ressurgem
nas entranhas.

(Sandra Brazil)

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Ferreira Gullar

"Eu não quero ter razão, eu quero é ser feliz."
(Sangue latino, entrevista com Ferreira Gullar)

http://www.youtube.com/watch?v=jRc3momVFb4

Garimpo

Às vezes
seria preferível
não ter memória
nem lembranças.
Não lembrar
é passar ao largo.
Mas o que seria
de nós
sem esses garimpos?

Peneira nas mãos,
vamos escolhendo
as melhores ilusões.
Juntas, elas compõem
o mosaico
que chamamos vida.
(Sandra Brazil, em 2.8.2011)

sábado, 20 de agosto de 2011

Este sábado inglês

Não é possível que neste sábado deliciosamente inglês, em que terei a oportunidade depois de tanto tempo de abrir um ou dois textos meus num sarau entre amigos, que não eu consiga pagar meu cartão de crédito!
Eu, boa pagadora que sou, que aprendi com meu pai e com minha mãe a pagar em dia minhas contas, jamais dever a ninguém e nunca me apropriar daquilo que não é meu...
Não é possível que neste sábado em que me sinto tão bem por dentro, aquele ânimo renovado pelo dia chuvoso e cinza lá fora, eu não consiga pagar pelo Bankfone uma mera fatura de cartão de crédito...
Não quero abater meu ânimo jovial de sagitariana poliana. Quero me enganar que na Inglaterra as coisas funcionam, ou funcionaram um dia, e que me sinto numa terra do tamborim quando pago tão caro pelo serviço de um banco que se diz o maior conglomerado da América Latina, e sequer conseque manter três ligações minhas apenas para eu pagar por telefone um cartão, já que, explico, também não consigo pagar pela internet, por problemas técnicos do site...
Sim, o banco em questão é o mesmo do texto Logomarca, que postei também aqui no blogue há alguns dias...
Tudo é sincrônico, tudo é decadente, tudo me lembra Invasões bárbaras, o filme. As corporações não têm rosto, não tem RG, não têm identidade. Não temos na verdade a quem reclamar, por mais ombusman que tenhamos. Temos alguns pobres manés contratados para dar a cara a bater, fazendo as vezes de muros medievais. Você não tem ideia do que há lá dentro, de quem é o dono daquilo tudo. Você só sabe que é uma "entidade" trilhardária que lhe oferece o pior serviço, mas cobra caro por ele.
Bem, depois de três tentativas e linha interrompida, desisto. Vou pagar com juros, não vou ligar para o ombusdman, não vou reclamar, cansei.
Quero paz.
Vou escolher, nesse delicioso dia inglês, uma crônica, um poema em prosa e um poema para ler no sarau entre amigos. Vou ver: se estiver muito longo, houver muitas pessoas para ler, escolho apenas um dos três.
Hoje quero ler apenas coisas boas, nada de pessimismo nem de dor nem de tristeza nem de luto nem de amargura. Nada baudelairiano.
Nesse dia que me lembra Charles Dickens (Ah! Boa dica e lembrança para iniciar a leitura do livro do próprio que ganhei durante a viagem que fiz a Londres há três anos. Pouco dinheiro, economia, mas as livrarias lá são generosas com os desendinheirados como nós. Os livros são muito baratos e leves para carregar de volta na mala). Aproveito e pego o livro que está na gaveta e ponho na minha cabeceira. Infelizmente vejo que está sem dedicatória. Fosse há 40 anos, jamais alguém presentearia um livro sem dedicatória. Detesto esses tempos modernos nesse aspecto.
Bem, a vidraça está toda respingada da chuva. Gosto disso. Simbolicamente, é como se lavasse não só vidro da janela, mas todas as coisas que não nos fazem bem. Os respingos chamam minha atenção, que acaba indo mais longe. Lá no horizonte onde consigo chegar com o olhar, o céu está dividido em duas porções à inglesa: embaixo um cinza claro transparente, em cima uma massa compacta chumbo. Parece que paira sobre a cidade um pudim gigantesco na cor cinza-escuro.
Isso me lembra, claro, os romances ingleses. Repetindo meu comentário de ontem, os romances ingleses lembram minhas leituras de adolescente: Charles Dickens e tantos outros autores. Imagino as mocinhas segurando a ponta do longo vestido de época, ingênuas e apaixonadas, e correndo pelos campos, pelas charnecas. Aqueles moços de casacos até o joelho e uma gravata meio ridícula para nós, formais até o topo, vinham tomar chá com as donzelas, e uma senhora fazia tricô enquanto eles tentavam burlar a vigilância vitoriana... Eu devorava o livro em três dias, e voltava à biblioteca para pegar outro. Mas um dia, encontrei Cem anos de solidão, de Grabriel García Marquez, aquele realismo fantático, que eu não sabia o que era aos 14 anos, me desvirtuou do caminho das doces heroínas românticas. Quando vi, estava lendo Zero, Inácio Loyola Brandão, que tinha sido proibido no Brasil e lançado na Alemanha. Daí em diante, pra se ter uma ideia, eu falsifiquei minha carteirinha de escola e fui assistir com uma amiga de escola O ovo da serpente, do Bergman, e daí foi um pulo para Império dos sentidos, o filme japonês que até hoje é cultuado (e que diante de tudo que vemos hoje e dos asquerosos reality shows, se tornou inocente).
Bem, tudo isso não era premeditado, eu nem sabia direito para onde estava indo, ninguém em casa incentivava essas minhas maluquices de adolescente. Acho que era uma coisa da minha geração mesmo; nós tínhamos sede de conhecer. E lá íamos nós. Era isso.
Voltando ao dia inglês deste sábado, se esfriar mais, vou adorar, pois o cinza escuro vai se sobrepor a este cinza tranparente, e o dia londrino ficará perfeito.
Bom, preciso urgentemente fazer minha sessão semanal feminina de vanitas vanitatis. Também preciso comprar uma camiseta. Vou sair correndo porque o dia é curto. Afinal hoje é sábado. E um sábado não é um dia como outro qualquer para uma sagitariana que acorda num dia inglês como esse e retoma sua leitura de Charles Dickens...

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A ampulheta e de novo os dias ingleses

Sexta-feira. Dia cinza e um friozinho me faz pôr um casaquinho leve de manhã para trabalhar.
Aqui da janela do meu local predileto, minha moça do tempo, meu olhar para o futuro, privilégio de poucos nesta cidade que fecha a vitrine e o céu de seus moradores, a pequena felicidade preenche de areia morna a minha ampulheta cor de laranja.
Viro o pequeno objeto. A areia desliza e muda minha sorte, enfim. Enfim, a virada. Areia nova, novos tempos, frescor, nova era, tempos novos estão de volta. Eu disse antes: a intuição havia sido beliscada no meu miolo. Eu sabia.
E esta manhã cinza, londrina como eu gosto, coroa esta minha pequena felicidade. Que não quero grande, nem muitas. A idade me ensinou que, como na Farsa de Inês Pereira, do grande Gil Vicente, "mais quero asno que me carregue, do que cavalo que me derrube". Explico. Vi essa peça quando tinha 17 anos, eis que estou com 48. Por que me lembro disso agora... É que a grande felicidade pode ser como um corcel poderoso e belíssimo, que, a grande galope, nos deixe pelo caminho. Isso já me aconteceu por vezes na vida. Já a felicidade que come pela borda, de mansinho, e nos seduz na velocidade 1, parece que tem mais chance de seguir em frente e permanecer, sem nos surpreender, sem que nós nos assustemos também e saiamos correndo. Foi isso que Gil Vicente me ensinou aos 17 anos anos, só que demorei uns 30 anos para aprender. Fazer o quê? C'est la vie. Antes tarde do que nunca.
Pois bem, este dia cinza, inglês, em que só falta o fog que pontuou minha adolescência na leitura das histórias das irmãs Bronte cheias de charnecas, amores não correspondidos, dramas, casas escuras, manhãs cinzentas, alegra agora minha sexta-feira, me perdoem aqueles iriam para a praia hoje... Posso ser egoísta um diazinho só?...
Eu, que estou programando minha sexta, sábado e domingo, prefiro este cinza (não que eu dispense o sol e céu azul, não, eu também adoro o calor, sou eclética nos meus gostos). Mas, por favor, também há luz nesses dias cinzentos. Porque a luz, na verdade, não está nos dias, está dentro de nós.
A ampulheta aqui a meu lado que o diga. A areia vai seguindo seu rumo, mudando meu destino, porque as ampulhetas têm esse poder místico.
Sempre que se quiser mudar algo na vida, pegue uma ampulheta, vire e a ampare forte sobre uma bancada. Mas é preciso acreditar, fortemente, que o conteúdo daquela areia é o conteúdo do tempo, regido pelo poderoso deus Cronos.
Enquanto a areia vai escoando, devagar, e você vê o tempo literalmente passando, é possível pensar que Cronos tem o poder de vir em seu socorro. Como os mais velhos dizem: o tempo é o melhor remédio para todas as dores e para tudo. Esse é o poder da ampulheta, ela é capaz de virar tudo: uma briga de namorados, de marido e mulher, combater uma doença, aceitar a dor da morte.
Eu tenho essa paciência de acreditar no remédio do tempo, não para tudo, mas para algumas coisas. Eu aqui e minha ampulheta que reserva uncle Cronos para mim já vimos viradas que nem novela é capaz de mirabolar... É... Portanto, nada é impossível para uma ampulheta.
Quando digo essa frase mágica, algumas imagens me vêm à mente, fatos que me aconteceram que só Cronos mesmo poderia trazer em sua bandeja de surpresas na esteira da areia milagrosa. Por isso, tenho sempre uma ampulheta comigo. Nada de amuletos, fitas, patuás. A ampulheta é a materialidade mais rica das surpresas do tempo.
Ah esse senhor dos destinos e das reparações. Ah esses dias ingleses...

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Uma explicação

Como pode gerar dúvida, queria explicar. Todos os textos que não têm crédito foram escritos por mim -- as crônicas, os contos, os poemas... Sempre que transcrevo, credito o texto, é o caso de Emily Dickinson e outros escritores.
Portanto, poemas não creditados são todos meus. Quer dizer, eu os escrevi, aí eles criaram asas e foram pro mundo...

Ainda este céu

Ainda tenho,
sim,
ainda é minha
a vista do céu azul
que miro longe.
Só algumas perturbações:
helicópteros,
aviões,
efeito estufa
a incomodar a visão.
De resto,
o céu acorda azul azul
feito uma criança
e me entrega
o pôr de sol
lindo, vermelho e dourado,
com que me presenteia
agora.

Sandra Brazil, de posse ainda da janela que o arranha-céu milionário seu vizinho ainda não obscureceu.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Uma de minhas poetas preferidas, deliciem-se: Emily Dickinson

Primeiro Ato é achar,
Perder é o segundo Ato,
Terceiro, a Viagem em busca
Do “Velocino Dourado”

Quarto, não há Descoberta —
Quinta, nem Tripulação —
Por fim, não há Velocino —
Falso — também — Jasão.

(Emily Dickinson. Tradução: Paulo Henriques Britto)
Os poemas completos da norte-americana Emily Dickinson (1.775 textos) estão disponíveis em: http://www.americanpoems.com/poets/emilydickinson/
O desejo
é a mais cruel
das estações.

(Maria Rita Kehl)

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Sem explicação

Um sinal belisca
o miolo da intuição
como em outras vezes.
O canto do galo.
O pio da coruja.
O farfalhar de penas.
Só o caboclo sabe do que estou falando.
A castanheira olha lá de cima,
do alto de sua beleza diz:
você da cidade não sabe de nada.
A natureza trará um presente.
A benzedeira percorre com arruda molhada
nosso destino.
A intuição faz plimplim
e avisa:
o desejo
chega amanhã,
às 16h55.


(Sandra Brazil, em agosto de 2011)

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Recordar é viver

Ontem foi Dia dos Pais. Resolvi fazer algo que queria fazia tempo. O restaurante Presidente, famoso por seu bacalhau desde meados do século passado, fica pertíssimo da casa dos meus pais. Mas nunca fomos, não sei bem por quê. Fomos ontem lá comemorar o domingão.
Meu pai que anda meio desanimado de tudo, ficou animado com a caipirinha, cerveja e depois com aquele bacalhau, cuja ciência desembarcou aqui no Brasil nos idos de 1950.
O escritor Walcyr Carrasco (sim, e autor de novelas também) escreve um texto que abre o site do restaurante, e conta brevemente a história do estabelecimento. Era um restaurante comum, servia a cada dia um prato diferente, mas o bacalhau fez tanto sucesso, que os sócios resolveram mudar de sede e só servir bacalhau. O nome do restaurante mudou para Presidente, que era uma homenagem ao presidente bossa-nova da época, o Juscelino Kubitscheck. Acabou ficando Presidente, que é seu nome até hoje.
Eles reformaram recentemente, mas é aquela coisa antiga de portugueses, que eu adoro, confesso: boa comida, encaixotada num lugar com mesas simples, com toalhas limpas, garçons de ternos limpos, nada de luxo, muito azulejo... infelizmente não os azulejos portugueses. Mas como diz o próprio Walcyr em seu texto no site, aquela antiga ideia que havia de cozinha em São Paulo: boa comida sem essa ideia atual de luxo, e a conta astronômica em que se paga a grife (chef + arquiteto).
A conta no Presidente é cara, pois estamos falando de bacalhau. Mas fosse num restaurante estrelado, dobraria, no mínimo.
Sei que meu pai, o homenageado do dia, ficou bem contente, como eu não via fazia muito tempo. Ele encontrou um garçom conhecido de outro restaurante, fazia alguns anos que bão se viam. O garçom lhe fez uma boa festa, e acho que isso lhe fez um bem melhor ainda: uma pessoa aos 78 anos de vida fica feliz ao ser reconhecida na rua, num bar, num restaurante. Num mundo que valoriza só jovens e endinheirados, imagino que meu pai tenha ficado feliz de aquele garçom ter feito questão de ter lhe dado o endereço de sua lanchonete na Vila Maria (ele agora é um proprietário nos dias da semana) e convidado para ir visitar seu "estabelecimento". Ele prometeu fazer a mesma batidinha de limão que meu pai vive elogiando, sempre, dizendo não ter outra igual.
Bem, terminado o almoço, eu ia para casa trabalhar, estava atrasada com um trabalho. Mas minha mãe ofereceu café e bolo. Eu nunca nego um café, muito menos bolo, que só minha mãe sabe fazer. Fomos para a casa deles, ali pertinho.
Mas acho que o bacalhau, a caipirinha, a cervejinha fizeram tão bem a meu pai em seu dia, que ele desatou o nó das lembranças, algo que ele vem perdendo. Ele, que anda tão desmemoriado, perdendo pelo caminho aquilo que mais preza: o fio da sua vida. Ele foi falando, daquele jeito que só ele sabe; começou devagarzinho, de mansinho, contando uma coisinha aqui, outra ali. Minha mãe sentou-se de frente pra ele. Dava um toque aqui e outro ali nas lembranças.
Eu estava com a bolsa no colo, pronta pra ir embora. Mas estava tão bom estar ali, ouvir aquelas histórias da minha família contadas de mansinho. Ele tem andado tão mudo, tão calado no último ano. Esta era uma boa chance de ouvir e de deixar ele dizer. Fiquei, muda. Eram umas duas e meia da tarde.
Ele ia lá pra dentro e foi trazendo fotos, recortes. Trouxe documentos do meu avô. Da minha avó. Coisas que eu jamais havia visto. Carteiras de trabalho de ambos, carteirinhas de hospital!
Soube melhor da primeira visita de meu pai a meu avô no Rio de Janeiro. A primeira vez que se viram depois de 28 anos de ausência de meu avô. Um encontro de estranhos, meu pai disse, mas com um detalhe: meu avô, sentado numa praça do Rio, puxou a calça até a altura do joelho. Meu pai olhou e reconheceu o seu próprio no dele. Foi estranho para ele, pois depois de tantos anos sem ver o pai, foi como uma espécie de teste de DNA para ele. Ele me falou: a única coisa que me dizia que aquele homem era meu pai, depois de tantos anos que havia nos deixado crianças ainda, era aquele joelho igual ao meu... Me deu uma apontada de sofrimento. Eu, que tive um pai tão presente na minha vida, me levando e me buscando em todas as festas, pagando minhas mesadas, preocupado como nossa febre, como nosso seguro-saúde. Ele inventou um modelo de pai para ser um superpai para nós, apesar da falta que o seu próprio lhe fez. Um prêmio para ele!
Também contou algo que eu não sabia: ele lia para minha bisavó Carolina A voz de Potugal, um jornal que entregavam na casa deles, na zserra de Araraquara, uma rua tranquila de terra, que hoje é a infernal Radial Leste. Ele conta que ela vibrava com as conquistas portuguesas, novos presidentes, histórias de aldeias. Depois de tantos anos no Brasil, ela não esquecera a sua terra. Ela, que jamais fez uma viagem sequer de visita a seus parentes do Porto.
Vi a foto de meu avô em sua carteira de trabalho. Ele aparentava mais idade do que realmente tinha. Minha avó, como sempre, muito bontita e vaidosa, inclusive nas fotos. Mas talvez sua excessiva vaidade tenha feito seu próprio sofrimento, seu próprio destino, não sei. Eu sei que adorava minha avó, ela me ensinava coisas erradas e pedia pra eu não contar nem repetir: palavrões portugueses, cantigas portuguesas, brincadeiras com um palavrão no final e com susto... eu não repetia, mas até hoje me lembro bem que foi ela que me ensinou, por exemplo, "vaca amarela, (...) na panela, quem falar primeiro...". Eu guardava tudinho na memória, mas não contava nem pras amiguinhas, porque elas podiam contar pra mãe e aí...
Quando dei por mim, eram 19h30. Eu estava com as fotos do casarão português da rua serra de Araraquara nas mãos, e que seria de minha avó depois. Tantas histórias eu vi e ouvi ali, naquela casa. Mas agora eu precisava ir.
Olhei para o meu pai, ele tinha vestido a polo que eu havia presenteado para ver se servia. Ficara bem nele, apesar de ser bem moderna.
Eu disse em um texto anterior que a felicidade tem um dosador-referência. Ontem eu fiquei bem feliz. Ver meu pai animado, desfiando memórias, querendo reviver encheu meu dosador de alegria. Esses dias de pais, mães, em geral são bem chatos, eu costumo achar (eu que sou mãe), mas ontem, foi um dia especial.
Tem um filme com Al Pacino que se chama Um dia para não esquecer. Acho que podemos recortar a tarde e o almoço de ontem e colocá-lo no título: Um dia para não esquecer.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

A felicidade não se compra

Um crônica aleggro, ma non troppo, mas com final feliz

Encontro. Apaixonado, integrado e sintônico, ambos prontos para viver um grande amor. Na literatura − ela tem certeza −, isso se chamaria alumbramento − sopro criador, revelação, inspiração, estado de quem se deslumbra, maravilhamento. O grande Encontro, aquele que todos aguardam durante a vida e apenas alguns eleitos têm a sorte, a fortuna de encontrar. Eles conseguiram.
Como num dia de pesca, Iemanjá adorou seus presentes, enviou uma boa maré, e a rede enlaçou seus destinos − o dele, o dela. As canções a partir de então têm outros tons, a arte apresenta-se em outras cores e nova e receptiva estética, a paisagem da urbe até faz algum sentido de belo e encantador apesar de toda desordem. As árvores estão mais verdes, o caminho para o trabalho é menos aterrador; o trânsito – há trânsito por estes dias?... O caos ao redor acaba sendo filtrado por este grande sentimento que invade, e fim, Djavan diria (e ela nem gosta de Djavan). O futuro parece uma pipa no céu, colorida, possível, leve, flutuante. Cada vez mais se dá linha, e ela sobe, sobe, ganha o céu, as nuvens, o ar mais rarefeito e levíssimo. Seu colorido vai atingir algo lá na frente, levando o pensamento a tudo que é possível nesse Universo, agora, a dois. Um círculo de giz imaginário os circunscreve e define como casal apaixonado e que se ama. E eles vão conduzindo seus sonhos e suas esperanças agarrados nessa pipa que sobrevoa, futura, colorida, leve, linda, despretensiosa, imaginária.
No fundo, apesar de todo desamor e de toda ausência e de toda falta afetiva que se vive neste mundo pós-moderno, somos todos caçadores de pipas no amor. Na verdade, estamos em busca de um grande amor, o nosso par, o grande sentimento, o grande destino a que estamos arremessados na alquimia do tempo.
Mas nem tudo são flores nesta vida a dois. Por vezes, Iemanjá devolve feroz e irascível os presentes que lhes são oferecidos, a tempestade revolve então as águas e as ondas fazem estragos nos barcos de pesca. Maré ruim...
Então, dentro do círculo de giz, tudo parece bem. O amor nunca voou alto, nunca alcançou nuvens tão delicadas, nunca viu a Terra tão longe de seus pés. A cada dia, o amor acolchoa mais e mais o sentimento, e é algo tão confortante ouvir a voz; no encontro, o coração dispara, alegre. Ah... e as pequenas surpresas, os presentes, as fotos lindas que vão construindo visualmente a nossa pequena história cotidiana. Mas a maré ruim faz a terra tremer − pedregulho que invade nosso suave acolchoado amoroso. Ela tem a síndrome do esquilo, e pensa às vezes em fugir como aqueles pequeninos no Central Park. Ele é ponderado e tem uma rede de caçar borboletas, como um Jacques Tati meio atrapalhado, e, em plena fuga, ele vem calmo e a resgata rapidamente para seus braços.
Claro, ele também carrega a neurose nossa de cada dia, mas ela entende que de perto ninguém é normal, e assim como ela é um esquilo, pode também ser mansa e complacente como uma ovelha, e esperar que tudo se resolva, cada dia de uma vez.
Essa narrativa me levou ao filme de Frank Capra, A felicidade não se compra. Podemos imaginar a vida de muitas formas se nos destacarmos dela e a virmos lá de cima, como se estivéssemos atados àquela pipa imaginária que mencionei. Se ela tivesse porventura partido, ou se ele tivesse partido, o que teria sido da vida de ambos? Ou se eles não tivessem sequer se encontrado? Ou se ele não tivesse tido coragem de abordá-la pela primeira vez com uma frase que deixava clara sua intenção e sua disposição? E se ela não tivesse tivesse respondido diretamente a seu chamado? E se agora, diante de tantos problemas vindos de fora, e somente de fora − pois dentro do círculo imaginário que criaram são felizes e arrebatados, entregues e apaixonados −, eles tivessem fraquejado e quebrado o grande vínculo que os sustenta, e que é tão claro: eles foram feitos um para o outro...
Lembrando Frank Capra, o cinema me ensinou mais esta lição. De que é preciso em alguns momentos de crise nos agarrarmos à nossa pipa imaginária. Estar lá em cima, flanar, sempre que houver algo que nos pressiona de fora, olhar o que queremos com calma, não nos abalar com a dor momentânea que nos impele parece para a destruição daquilo que mais queremos e desejamos. É preciso às vezes subir aos céus e morrer metaforicamente por alguns instantes para poder vislumbrar a importância da vida. Tudo o que queremos, o que podemos perder e o quanto aqueles que amamos podem perder nessa linha tênue que divide o impulso e a sensatez. Grande James Stweart... A felicidade, assim como a boa maré, não se compra, nem com presentes para Iemanjá. Mas se conquista, devagar.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Alfama, ginginha e saudades da Maria

Na segunda vez que estive em Lisboa visitei o bairro de Alfama pela primeira vez. Eu não estava bem, minha sinusite deu as caras no frio europeu e com aqueles carpetes nos hotéis...
Eu tinha febre e tossia muito, aquela tosse seca de sinusite. Os taxistas me ofereciam para parar em farmácias e comprar alguma pastilha, aí eu explicava que não adiantava, estava tomando antibótico e tinha que esperar passar o processo infeccioso mesmo, aí a tosse passaria.
Nesse dia da visita a Alfama, eu estava péssima, meus olhos estavam de farol baixo, a febre estava alta apesar do antibiótico e do antialérgico e anti-inflamatório. Antes, eu havia ido ao museu do azulejo, que é lindo, mas a visita tinha sido sofrida, apesar do brilho dos murais belíssimos... O museu do azulejo em Lisboa é um passeio ótimo, pena meu estado, pois a cada lance de escadas me lembro de uma sucessão convulsiva de tosse. Mas sobrevivi e adorei ver aquela beleza toda.
Depois, foi a vez de Alfama. Aquelas ruas tortuosas, em forma de labirinto. parece que você não vai sair em lugar nenhum. Mas de repente, pronto, você depara com um cantinho belíssimo, antiquíssimo, aquelas casas históricas. Tudo é medieval ali, além dos labirintos de suas ruas. Além da minha febre, que me fazia já sentir calafrios e andar em círculos por si só, a própria geografia do bairro ia me arrastando mais e mais para o destino minotáurico.
Bem, escureceu de repente. Era uma rua bem estreita. O sol não chegava ali.
Havia uma portinha numa esquina. Era uma espécie de boteco, mas não cabiam duas pessoas lá dentro sentadas, só se fosse em pé. Entramos. Foi pedida uma ginginha, um aperitivo português feito a base de cereja. Eu não pude experimentar, foi uma pena, eu que gosto de experimentar tudo. Mas a febre me consumia nas profundas, eu me sentia mal, e uma dose de álcool não me faria nada bem, pensei. Fiquei só observando.
Havia um balcão pequeníssimo. Do lado de cá uma mesica de nada e um banquinho. Comecei a ver tudo meio escuro. "Vou me sentar", pensei... Puxei o banquinho. A ginginha foi sendo sorvida a pequenos goles, como faz o bom bebedor. E a conversa deu seu start com a mulher que se postava ali detrás do balcão e tinha olhos bem grandes e escuros. Seu nome: Maria. Maria, como meu segundo nome, boa neta de portugueses que sou, não poderia ficar sem o nome da mãe de Jesus.
Pois a ginginha foi descendo lenta. E a conversa com a Maria também foi rolando solta. Maria foi contando que desde menina acompanhava a avó na cozinha de um restaurante. Dali foi um passo para, mocinha, ser a cozinheira de um restaurante de Alfama. Ela contou que as pessoas chegavam lá cerca de 22h e diziam: "A Maria ainda está aí... Só vamos comer se ela ainda estiver na cozinha". Pois ela que estava pronta para ir embora, punha de novo o avental, aquecia o fogão, e só pelo prazer de cozinhar e atender seus fregueses começava tudo de novo... Foram anos assim segundo ela.
Maria contou que aprendeu com a avó a escolher os melhores ingredientes. Ela disse, com aquele sotaque português que não sei imitar: "as cebolas, só compro as portuguesas, são as mais caras, mas as espanholas, por exemplo, parecem feitas de plástico, elas desfolham quando vamos fritar".
Eu, meio tonta no banquinho, fui registrando as histórias da Maria, e mais uma ginginha escorreu no copo. O copo foi esvaziando de novo, e a Maria foi nos contando agora suas histórias familiares. O bebedor de ginginha, atento, pois é um ótimo escutador de histórias de balcão.
Ela enfim havia se cansado e deixado o restaurante. Abrira então aquela bodeguinha onde servia os turistas que visitavam Alfama. Ali não dava para servir comida, porque era muito pequeno, apenas bebidas e alguns salgados. Eu perguntei: que tipos de salgado. Aí ela me mostrou um salgado típico, as pataniscas. Pedi um, quem sabe um pouco de sal me faria sentir melhor daquela zonzeira. Dei o primeiro nhac, era realmente uma delícia, feito de bacalhau e massa e frito. Ofereci a meu companheiro de viagem. Nhac. Também gostou.
Maria então nos contou que agora, para poder exercer sua arte da cozinha, convidava os familiares e amigos no fim de semana e servia suas deliciosas receitas, aprendidas com a avó.
Maria devia ter minha idade, ou até ser mais nova, mas já tinha filhos adultos e netos. É uma portuguesa muito bonita de cabelos e olhos escuros. Mas parece cansada e infeliz. Em apenas um momento, mencionou o marido que estava no andar de cima; percebi os olhos de Maria ao mencioná-lo, foram de um sofrimento acumulado profundo. Meu namorado então me abraçou com um carinho canceriano, percebeu que eu estava cansada e abatida no meu estado físico. Ele sorriu e falou a palavra mágica: San-San. Apesar das deliciosas histórias naquele cantinho de Alfama, naquele recorte no tempo, precisávamos ir, era preciso encontrar um restaurante de verdade e almoçar de verdade.
Nos despedimos de Maria, mas a vontade era ficar ali, na ginginha, nas pataniscas, de pé, no banquinho, ouvindo até de noite suas histórias um tanto melancólicas mas sedutoras -- afinal, ela é portuguesa! Mas essa foi uma das coisas de minhas viagens das quais jamais esqueci.
Tantas coisas acontecem. Conhecemos lugares, restaurantes, bares, pessoas interessantes, coisas incríveis...
Ora, pois! Eu tenho muita saudade daquela tarde em que eu descobri o que é uma ginginha, uma patanisca, mas, sobretudo, me ficam na memória as histórias e as saudades dos olhos escuros e marcantes de Maria.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Arpoador e Dois Irmãos

Faz muito calor, nem parece que há alguns dias eu postava "O dia mais frio do ano".
Minha filha chega de viagem, almoçamos juntas, novidades em dia, a vida volta ao normal.
Volto ao escritório depois do almoço para retomar aquela rotina duríssima. Mas tenho aproveitado bastante minha janela do futuro e da esperança, afinal, breve vou perdê-la para meu vizinho de 1,8 milhão de reais, que será construído entre mim e o parque. Portanto, como boa sagitariana-nostálgica, sou melancólica por antecipação, vou aproveitando os extertores de minha janela que vê tudo até o Jaraguá, há 15 anos, desde que me mudei para cá...
Vejo o parque e suas árvores, as montanhas ao redor de São Paulo, o azul do céu bem longe, edifícios, e muito mais, que só os meus olhos veem.
Pois vendo este céu azul lindo, sol amarelo e muito calor, lembrei de um julho distante, um inverno que passei no Rio de Janeiro.
O Rio sempre esteve no meu roteiro. Sempre fui fã. Os cariocas podem não gostar de mim, mas gosto muito da geografia que lhes pertence... Pois sempre no verão, lá íamos eu e Isadora passar uns dias quentíssimos nas areias escaldantes, comer bem naqueles restaurantes que só o Rio tem, escondidinhos e charmosos, visitar uns lugares superbonitos. Depois, para completar as férias de verão, escolhíamos outro lugar e zarpávamos as duas, aventura! Certa vez, depois do Rio, fomos Cuba. Decidimos em cima da hora.
Bem, voltando a meu inverno. Eu resolvi tirar férias no inverno e não sabia bem para onde ir, eis que me vi então no Rio. O Rio no frio pode ser um mico. Mas naquele inverno fazia um veranito delicioso por lá, nem acreditei quando cheguei.
Lembro das caminhadas pelo calçadão, todos os dias, depois a cerveja Devassa, que eu adoro! Mais tarde, o descanso, que ninguém é de ferro numas férias assim. Livrarias por Ipanema não faltam, e passear por elas é uma delícia, pois depois delas se pode ir direto ver o mar bater nas areias branquíssmas da praia. É uma sensação de liberdade extrema, que não se tem em São Paulo, depois de se ir a uma livraria fechada e escura.
Fazendo o trajeto a pé Ipanema-Copacabana, estraguei nas pedras portuguesas do calçadão minha sandália chiquérrima da Miss Sixty, que só pude comprar porque estava numa megablaster liquidação... estranho, nem liguei. Pois a lua ia tão alta e cheia, espelhava na água do mar tão forte, que eu só pude me ater àquilo e nada mais, me esquecendo de cuidar do resto. A lua do Rio é a lua mais bonita do mundo, creiam! E a lua que vi naquele inverno, espelhando em Copacabana, jamais verei, estou certa disso. São aquelas coisas que a gente sabe que são únicas, tem que fotografar na mente. E só.
E houve os programas mico, que de mico não tiveram nada, pois foram regados a sol, cerveja, alegria e férias, férias de tudo, inclusive de mim, que vinha cansada de muitas coisas. Ali parece que eu descansei de mim, e a felicidade pôde tomar de novo seu lugar. Férias.
Houve também as noites de glória, que todas as férias têm, mas também as noites micadas, que todas as férias têm também. As dicotomias servem para isso: a gente acaba valorizando o que é bom de forma mais lúcida e ponderada.
Foi uma semana, mas me pareceu um mês. Todos os dias, caminhada no calçadão, e os Dois Irmãos, do Chico, vigiando minha alegria lá de cima, cuidando com zelo. A cada dia, eles estão ali para nossa apreciação. Uma beleza extrema. Aí caminha-se até o Arpoador, e a felicidade chega no pico: como o Rio pode ser tão bonito assim... O Arpoador e suas histórias de pescador... Guardarei para sempre as minhas...
Quando se chega a Copacabana, vê-se a decadência, mas até isso tem certo charme no Rio. E o Leblon então...
Bem, eu tenho que trabalhar, não fosse isso ficaria aqui desenhando os prazeres e as belezas do Rio. E logo voltarei, estou já pensando nisso.
Mas, para concluir, preciso dizer que aquelas minhas férias no Rio, naquele inverno, na verdade era alto verão. O Arpoador guardou suas promessas e os Dois Irmãos continuam zelando, permanecem guardando aquela estação-surpresa.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

O dia mais frio do ano

Acordo cedo. Mais cedo que o normal. Tenho horário na minha médica. Rotina. Mas faz muito frio. Quando sou despertada pelo toque, gostaria que ainda fosse 4h da manhã. Ainda faltariam 4 horas para eu me levantar... Muito sono. Muito frio.
Aperto o soneca, e peço mais 5 minutos de trégua.
Levanto da cama com esforço hercúleo. Escovo os dentes com água quente, ainda assim sinto frio. Lavo o rosto, nem assim desperto. Vou sonâmbula para a cozinha e inicio o ritual do café. Máquina de expresso ligada, forno elétrico com a fatia de pão. Enquanto isso, olho pela janela. Um sol de clima temperado está no céu azulíssimo. Isso significa: muito frio.
Café tomado, lavo a louça na água fria. Isso é para bárbaros. E me lembro que ainda quero conhecer a terra dos vikings. Penso em viagens e meu humor melhora, mesmo de manhã! Este ano ainda não será possível. Pontilhei muito o mapa nos últimos dois anos, usando minhas milhas do cartão de crédito. Ainda assim, os gastos sempre são grandes, então, preciso economizar para conhecer meus parceiros nórdicos. E tem que ser no verão, porque de frio já estou por aqui!
Me animo para o banho, e tenho que me apressar, já estou um pouco atrasada. A água quentinha do chuveiro me faz lembrar que sou privilegiada neste planeta. Depois de ter lido o livro Planeta favela, descobri que muita gente no mundo não tem sequer banheiro, quanto mais água quentinha para sua higiene diária. Para um breve relaxamento então, aí seria um luxo... Preciso correr!
O trânsito está ótimo, nem acredito, e faço um caminho que toma metade do tempo para chegar até o consultório. Levo meus exames, estou um pouco apreensiva. É rotina, e ela é minha médica há muitos anos, além de eu ter estado lá há pouco tempo na última consulta.
Chego, difícil estacionar. Mas encontro um abrigo.
Sou recebida por alguém que cuida de mim há tempos, isso me dá certo alívio. "Não há notícia ruim que ela não tenha dado um jeito até hoje", penso.
Ela vê e observa com calma os exames, anota e me devolve. Está tudo muito bem! Não poderia estar melhor, ela me diz.
Alguém me disse um dia: a felicidade depende de referência. Agora eu entendo. Para alguns a felicidade tem proporções gigantescas a se buscar, grandes, para outros, medianas, pequenas, depende muito do contexto em que você está vivendo.
Pois bem. Essa pequena notícia iluminou o meu dia. É uma bobagem, nunca liguei para resultados bons de exames médicos. Mas diante dos meus últimos meses, que não têm sido agradáveis, me sinto o iceberg atingido pelo Titanic. São tantas as más notícias, umas seguidas das outras sem trégua, sem dó, sem cessar, que minha série vermelha estar em dia é uma alegria, e meus exames femininos me dizerem que estou inteira são uma bênção.
Saindo do consultório, me lembrei que tinha já muito trabalho me esperando. Mas resolvi, por conta das boas notícias, depois de tantas más, que deveria comemorar minha boa forma. Sentei-me num café e observei a cidade correr e ofegar diante de mim. A meu lado, um casal alemão estava em férias, fazendo planos de visitas a cidades e museus. Me lembrei das minhas próprias, em cafés em que planejava também meu dia a visitar tantos lugares que estão nas minhas fotos e na minha memória.
Num dia frio como esse, nada como um referencial para dosar nossa felicidade.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Logomarca

Ando pelas ruas nesse fim de tarde bem frio. Gosto de caminhar e gosto do inverno. Uma sensação boa me toma.
Ao dobrar uma esquina, um mendigo dorme o sono dos anjos, tranquilo, incólume, como se não corresse riscos numa cidade brutal.
Olho para cima, o logotipo de um banco desfralda a cor laranja, gritando seus poderes sombrios sobre nós.
O cobertor que aquece o mendigo é também de um laranja vivo, logomarca do grito dos que não têm voz nem vez.

Escrita

Eu não escrevo.
Descarrego numa
lurdinha
toda minha munição --
palavras.
Quem sobreviver
verá.
Aquilo que inicia
muito profundo
pode terminar
muito profundamente
também.

Um presente,
um diamante,
uma pérola.

É pau.
É pedra.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Mensagem

Não quis sair pra almoçar hoje. Trabalhei até mais tarde em meu escritório. Era tarde já quando preparei uma sopa de almoço tardio. Fazia muito frio lá fora e garoava. Não tive ânimo de me preparar pra descer e enfrentar o frio pra ir a um restaurante natureba, como faço todos os dias.
Procurei uma meia garrafa de vinho tinto. Não tinha. Preciso ir ao súper. Fiz umas torradas então, pra não me sentir tão em falta.
Acabado o almoço, lavei a louça. Preparei meu expresso habitual antes de me atirar novamente no trabalho. Fui à janela que chamo de "janela do futuro e da esperança", porque consigo ainda ter vista para o verde e fundo ao longe da cidade. Distraída, fui tomando meu café, perdida em muitos pensamentos. Tantas coisas têm me acontecido. Em tantos âmbitos da minha vida, ao mesmo tempo. Tanto que, eu que nunca fui de me abrir sobre meus problemas, ou de pedir opinião à pessoas, vez por outra me pego pensando: como será que fulano resolveria esse meu problema, como será que aquele solucionaria essa situação tão difícil, como essa pessoa é tão tranquila mesmo tendo tantos problemas... e por aí vai.
Vivo na verdade uma crise que me espeta de todos os lados. Eu costumo enfrentar problemas da vida com muita coragem, mas apenas os mais "chão". Os emocionais, considero mais difícieis de solucionar. Então, quando me espetam, eu tento me encolher, aí, eles me machucam pra valer pra dizer: estou aqui, enfrente-me.
Eu havia pedido no dia anterior: quero sete frases boas, como sete ondas que se pulam na praia para começar um ano bom, para tingir de azul esse céu cinza que vejo diante de mim. Sete frases foram ditas. Amanheceu, mas meu ano bom parece que demorará a chegar.
Pois pensando em tudo isso, numa voragem mental e emocional que vem me tomando nos últimos tempos, estava distraída com meu café à janela do futuro e da esperança, sem pensar nela assim, com esses adjetivos tão positivos e bonitos. De repente, sinto duas asinhas em calcanhares querendo chamar minha atenção. Pensei: acho que é Hermes. Sim. Ele trazia um recado dos deuses do Olimpo para mim.
Abri o bilhetinho: "Sandra Brazil, como essa garoa varre devagar os telhados e o verde das árvores que você do alto, desmancha de mansinho as nuvens cinza do céu, tudo passará devagar. Ao contrário de uma tempestade que devasta e devora e não deixa pedra sobre pedra, essa garoa levará todos os problemas lentamente. De repente, toda a dor será consumida. Um dia você acordará e se lembrará apenas das coisas boas que lhe pertencem".
Olhei as árvores aqui do alto, as folhas molhadas verdíssimas e amareladas, vi as nuvens se desmanchando devagarinho e se transformando em gotas, os telhados enfim limpos da poeira do tempo.
Hermes já havia batido em retirada. Dobrei o bilhetinho com cuidado, guardei-o e dei duas voltas na chave. Agradeci aos deuses o recado enviado em tão bom momento. Eu havia entendido a mensagem.

e.e. cummings

na estrênua brevidade
Vida:
realejos e abril
treva, amigos
eu me lanço rindo.
Nas tintas fio-de-cabelo
da aurora amarela,
no ocaso colorido de mulheres

eu sorrisando
deslizo. Eu
na grande viagem escarlate
nado, dizendomente;

(Você sabe?) o
sim, o mundo
é provavelmente feito
de rosas & alô:


(de atélogos e cinzas)

(Tradução de Augusto de Campos)

* Edward Estlin Cummings (1894-1962), e. e. cummings, como o poeta assinava e publicava, foi poeta, pintor, ensaísta e dramaturgo norte-americano. Foi considerado um dos inovadores da linguagem da poesia e da literatura no século XX.