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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

domingo, 30 de outubro de 2011

Na quietude da minha cidade

É domingo. O corpo está meio combalido dos excessos da sexta e do sábado. Não só o corpo, mas os sentidos de modo geral.
Estar solteira "fresca" numa cidade cheia de novidades como São Paulo, a minha Sâo Paulo, é um oceano de possibibilidades, cruzamento de probabilidades e hipóteses e surpresas!
Por vezes também é o silêncio de certa solidão, típica da escolha de quem quer permanecer nesse estado. Estou gostando. Acho que nunca gostei tanto. A maturidade me trouxe uma leveza para viver esse estado civil de forma mais solta, despretensiosa, sem esperar nada e ao mesmo tempo sem ter muros de cidadela, que medieval não quero ser mais.
A vida é um rio, cheio de curvas, leitos morosos e preguiçosos de retidão, de repente, desníveis agitados, pororocas que chacoalham nossa mansidão. Basta seguir o curso. A água do rio nos levará. E há de se ter o que se merece, e os outros hão de nos ter, se nos merecerem. Assim é. Eu nunca vi falhar essa lei do Universo. Uma orquestração fina que aprendi a ouvir com o coração, não com a razão.
Mas é domingo, e o rio corre hoje devagar. Choveu e o céu ficou inglês, chumbo, como gosto. Como sempre, tenho trabalho a fazer, e me dedico a isso algumas horas, apesar da minha ressaquinha e sono atrasado. Fim de tarde, garoa fina. Olho aqui de cima de minha janela-cinema. Lá embaixo posso ver a quietude da minha cidade: poucos carros, quase ninguém nas ruas de meu bairro. As árvores do parque estão quietas, como numa prece, recebem a chuva em gotas preciosas e agradecem por mais este dia.
O horizonte negro. Na esquina, vejo o asfalto brilhar por causa da água da chuva, e as faixas de pedestres de um cruzamento formam o desenho de um boneco branco esmagado por um rolo compressor contra o asfalto. Seus braços feitos de tiras brancas gritam comandos: siga por aqui, por ali; venha para cá; para lá.
O farol vermelho espelha-se numa poça d'água, os carros param. Na quietude da cidade, posso ver nesta encruzilhada, não galinhas pretas, velas vermelhas, cachaças nem charutos baratos nem pretos velhos em roupas brancas a sussurrar mandingas. Vejo sim sinais semióticos a comandar no silêncio, a dominar a cena como imperadores despóticos. A faixa branca ordena, e os pedestres atravessam, com calma, num tempo que não lhes pertence, nem a mim. Tempo que desconhecemos e que, a qualquer curva do leito, pode nos surpreender. Como na doce quietude de um domingo.

sábado, 29 de outubro de 2011

Antropofágico, ma non troppo

Canibalismo atinge corpo e sentidos, impossível deter, impossível agora voltar atrás.
As cores sanguíneas, o atropelo brutal, as marcas roxas da barbárie e da intempérie e do terror. O grito e a fúria (Edward Münch nos olhos, nos sentidos).
Garras em vez de mãos, pinças no lugar de unhas, alicates simulando coxas e braços, a voz provoca uma espécie de dor, de ira de titãs, de clamor mudo na garganta, desesperado para sair, mas impelido por uma lâmina a ficar ali estagnado como uma água de sarjeta. Tudo é tortura, marcas, feridas a sangrar. Os dentes arrancam ainda o que sobra de carne sadia nessa pele que sadicamente deseja mais desse infortúnio cruel. Dói e sangra esse ato canibal. Mas se quer mais. Por quê?
A dor, a dor que desde Sade justifica o prazer. Prazer sórdido, incompreensível, cheio de marcas e cicatrizes. Feliz em seu autossacrifício.
Mas dentro do que resta da carne, dentro do que resta do sentimento, fica um ponto intangível por esse ritual: uma antropofilia delicada que não sangra, não falece. Está ali, a vigiar corações e mentes, cuidando da humanidade e do mundo.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O poeta Gil Pinheiro

Vejam o belo poema escrito por Gil Pinheiro em resposta à minha postagem de 24 de outubro, "Ambiguidade feminina":

o não por sim
o vai por vem
o ti por mim
o sim por fim

o quem me quer
por bem me quer

o oposto
pelo aposto
o gosto
de mulher

(Gil Pinheiro)

Archbald MacLeish, na tradução de Gil Pinheiro

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Roleta-russa ou uma espécie selvagem

Joguei todas as fichas. Apostei alto. Cassino pobre, qualquer lugar, Paraguai, nada de Monte Carlo, anos 50.
Mas uma mulher, é uma mulher, como diria Goddard. E mulheres querem risco, emoção. Entorpecem por um esgar felino, ou o vislumbre de botas lambuzadas de terra.
Deixei para trás os livros franceses, a conversa intelectualizada, esta tradução de fulano é boa, esta não, o vinho bem escolhido, os restaurantes rebuscados, o olhar maduro e bem apanhado. Me atirei no lodo do desconhecido e da loucura. Fui jogada sobre capôs e prensada em paredes, em ruas e becos. Só pelo gosto da aventura. Toquei os paraísos artificiais. Troquei Monte Carlo, Mônaco, por um boteco à beira de qualquer estradeca paragueta, chinfrim e lambuzado de gordura e pó. Calor, ventilador tosco girando um vento quente e abafado, roupa colando no corpo, tequilas engolidas de uma vez, cervejas de quinta, copos batendo na mesa. Sexo, sexo, sexo, de primeira! ´Luxúria, luxúria, 13 dias, 13 noites. Atropelo, loucura, torpor, torpor, loucura, luxúria, torpor, tontura e corrosão dos sentidos... Minha reputação arranhada, rasgada, um trapo. Aquela poeira de estrada, Jack Kerouac. Fui fundo, desci o mais baixo possível. Acelerei. Mas não sou mais uma menina... Ah! Não importa! Desço o Baixo Augusta correndo. Troquei o dia pela noite. O telefone grita na madrugada, me chama a qualquer hora, e numa vertigem, eu atendo ao chamado selvagem selvagem selvagem! Invadida e corrompida no corpo e nos sentidos e na razão, fui perdendo a nitidez. Como se um revólver com apenas uma bala me mirasse, o tempo todo, adrenalina a mil, e eu quisesse mais, mais, mais, mais... Penetrada por uma ideia fixa, um prazer insólito, obcecado, obsessivo, sórdido. Sade, Baudelaire... A loucura como uma espécie de vício, ópio, de fanatismo, de prazer dividido.
Num estado de torpor e entrega absoluta.... quando havia já chegado ao fundo do fundo do fundo, quando estava comprometendo não só meu francês, mas meu português, quando estava já enlouquecida de prazer e de aventura e de languidez e de entrega arrebatada, a roleta girando girando girando girando, negro 17, e eu perdendo perdendo perdendo toda minha consciência e bom senso e minha condição de mulher, "no más" (assim se fala nos cassinos paraguaios, quando se encerra o jogo da roleta), o sinal vermelho soou em mim: beng! Afasto o revólver da mira da cabeça, pego a estrada poeirenta de volta. Ao telefone, com dificuldade digito os números que me arrastarão para longe desse sorvedouro. É só um basta. Não quero mais.
Afinal, uma mulher é uma mulher. É preciso voltar aos bons vinhos bens escolhidos e aos perfumes delicados. A calma e o prazer do conhecido, sem o torpor da loucura. Mulher é sim uma espécie selvagem, um bicho indomável quando tromba com um corcel e se delicia em chafurdar nessa lama obscura do prazer. Mas, por favor, sem o assombro de roletas-russas.
Une femme est une femme... Sábio Goddard.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Ambiguidade feminina

Cromossomo Y,
preste muita atenção
no que vou dizer:
um sim pode ser
um não.
Não enlouqueça
ainda.

Mas um recuo delicado
é sempre
um charme discreto
que quer dizer
um sim certeiro,
mas postergado
para amanhã
ou depois.
Paciência de monge
e encurralará
a presa.

E um não feminino...
Ah esse não feminino...
dito assim suspirado
com as mãozinhas a empurrar
creia:
é sempre um sim
de olhos coquetes,
unhas ferinas de Theda Bara
e falsa estola de vison --

tudo isso disfarçado
de uma falsa inocência
mourisca.

Uma dádiva

Quando ela nasceu
eu não sabia nada.
Só reconhecia uma coisa:
ela foi um presente
dos deuses,
assim como preconiza seu nome.
Continuo não sabendo
de nada.
Mas ganhei com ela
a noção das medidas
da vida
e da magia do tempo --

sua altura, seu peso,
o comprimento
de seus passos
de gazela,
o bater de seu coração
generoso,
a velocidade do sangue
que corre em suas artérias
quando sei que está mentindo
para mim.
O castanho intenso de seus olhos,
a espessura finíssima do fio
de seus cabelos,
o enfoque de seu olhar
quando se preocupa com o mundo,
e esse corpo longilíneo
de bailarina
de que eu gosto tanto...
tanto...
e que eu poderia
ter para sempre
em meus braços,

como quando ela nasceu...

domingo, 23 de outubro de 2011

Como num filme

Fechei os olhos
e mergulhei fundo
naquele abraço.
Veio então uma pergunta:

como uma Louise Brooks
respondi muda e semiótica
como no cinema
dos Lumière.
Surpreso,
se afastou como uma câmera,
enquadrou com as duas mãos
e me olhou
como um diretor
estupefato com sua atriz.

Você não sabe, baby:

neste mundo,
somos todos
fingidores,
"ladrões de bicicletas",
sonhos
e emoções.

sábado, 22 de outubro de 2011

Quando é preciso perder para encontrar

(Para minha companheira)

No reencontro,
é possível compor
os pequenos milagres
do sentimento:
tudo está ali
preservado,
as feridas secaram,
as ressacas
recuaram,
os sentimentos
intactos e frescos,
como frutas num pomar
logo de manhã.
O amor,
orvalhado
e fortalecido.

Emociona,
como o arco-íris
depois da chuva.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

O poder feminino

Quando vislumbrei
de perto, tão perto o
Everest,
não tive medo.
Pensei:
quero escalar.
Cume,
esforço,
cordas,
garras,
unhas,
dentes,
arfar,
neve branca branca
branca branca
prata prata
prata
névoa que se dispersa
no final de tudo
em células com flagelo
que correm como loucas,
únicas,
competindo entre si,
e morrem minutos depois
abandonadas num canto qualquer.

Boa mulher que sou,
finco profundo minha bandeira
naquele belo
atraente
apetitoso
e desejado
cume.

Bandeira cor-de-rosa
cor de carne
símbolo de quem
conquistou
sabe o que quer
e sabe muito bem
onde está.

sábado, 15 de outubro de 2011

Sua marca

Foram anos. Durante muitos anos ele a vira frequentar os mesmos lugares que ele. A distância, observava seu jeito distraído, de pessoa que fica pensando e que está ali com um objetivo e não tem muito tempo a perder olhando ao redor. Em geral, ela vinha acompanhada, na maior parte das vezes de namorados, raras vezes vinha sozinha.
Com o passar do tempo, foram tantas as vezes que a viu, que ele afeiçou-se àqueles olhos conhecidos. Muitas vezes, ele tentava se aproximar, mas por ela estar sempre acompanhada isso tornava difícil qualquer approach. Durante uma fase, percebeu que ela passou a frequentar os lugares sozinha, e que parecia um tanto triste, melancólica. Imaginou que acabara de terminar um romance. Passou a observar mais de perto aqueles olhos escuros e melancólicos que iam longe. Tentou algumas vezes cruzar com mais firmeza o olhar com o dela, mas ela era meio distraída mesmo, como fazer, meu deus?? Difícil!
Ele passou a dar voltas ao redor, aí, quando ela se sentia com a atenção tomada, ele encarava seu olhar, então ela começou a perceber sua presença.
A partir disso, inúmeras vezes vezes eles cruzaram olhares, mas ele nunca teve a coragem de abordá-la e perguntar seu nome, o que fazia, que tipo de filme gostava, qual livro gostava de ler, qual era sua viagem preferida... nunca. Foram anos nesse embaço.
Ela, por sua vez, percebeu tudo, mas achou que talvez não fosse a hora. Deixou a vida correr como correm as águas do rio. Um dia, essa história desembocaria no mar.
Pois passou o tempo, e durante 3 anos não se viram mais. Ele a esqueceu, ela o esqueceu. Ela estava muito ocupada tecendo um grande amor; ele estava muito ocupado impregnando da loucura seus dias.
Pois o grande amor dela passou desta melhor, e ela passou a mostrar seu rosto de novo na multidão. Ele continuava nos mesmos lugares.
Eis que numa noite de estrelas e garoa seus olhares se cruzaram sob o firmamento. Ela estava ocupada, mas ele resolveu esperar. Como se fosse outra pessoa, e não aquele homem tímido e claudicante e inseguro do passado, no fim de tudo ele se aproximou, perguntou enfim: seu nome, o que ela fazia, de que tipo de filme ela gostava, que tipo de livro ela lia, que tipo de viagens ela gostava de fazer. Ela disse tudo que podia sobre si. E se lembrou das vezes anteriores em que se encontraram, mas que ele não havia se aproximado dela, ela não havia entendido por quê.
Saíram dali. Garoava agora. Beijaram-se com a fúria dos titãs recuperando o tempo. E as mãos percorreram tudo, para além do possível. Ele a jogou sobre o capô de um carro. Ela trançou as pernas atrás de seus quadris. De saia, ficou fácil rasgar a calcinha frágil de renda que ela vestia. Na rua, tudo tem de ser rápido. Penetrou-a com a força do sentimento de todo aquele tempo suspenso do passado, como para compensar todos aqueles anos de olhares trocados sem consequências imediatas.
Ejaculou rápido, um carro vinha ao longe com seus faróis assustadores, podia ser um meganha... Receio: tentou sair de dentro dela, mas ela, com a força das coxas que só as mulheres têm, o deteve um pouco ainda dentro de si. Beijou sem pressa sua boca deliciosa, suave, de dentes delicados, brancos e bonitos. Alisou os cabelos em desalinho, mirou-lhe os olhos, como se fosse a última vez. Desfez a pressão de suas coxas.
Ela saiu sem calcinha, entrou num bar, se arranjou. Para fechar, um conhaque, que ninguém é de ferro nesta vida de sexo sobre capôs numa metrópole cheia de faróis e perigos e meganhas e bandidos.
Entre beijos de quem não quer se despedir, despediram-se, ficaram de se ver.
Mas entre receios e faróis, ele deixara nela sua marca: 9 meses depois nasceu Vitória, metáfora da coragem de seu pai.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Achados e perdidos

Vasculhando uma caderneta de textos de trabalho, em que às vezes também escrevo meus textos pessoais, encontrei este texto, dobrado e esquecido. Achei por bem postá-lo, apesar de seus dois anos quase de idade.

Departamento: Achados e Perdidos.
Contexto: discussão de casal; a porta bate; somente algumas horas depois ocorre o reencontro. Eles leem o texto juntos e choram.


Montevidéu, 29/12/2009

Minha mãe além de dona de casa, para engrossar o orçamento, era costureira nas poucas horas vagas. Dessas de mão cheia. Mulheres de vários lugares vinham a nossa casa para encomendar saias, blusas, casaquinhos, vestidos de gala (era assim que se chavavam na época), roupinhas de criança e até biquínis.
Ela media, anotava os números na caderneta, recortava os moldes em papel pardo ou rosa. Depois os alfinetava no tecido e passava uma carretilha com carbono para marcar onde seriam as costuras.
Só então ela se sentava e aí eu ouvia por horas seguidas o pedalar na máquina de costura Anker.
Foi desde cedo que percebi que da dificuldade nasce a beleza. Para levantar aquele dinheiro de engorda de orçamento parco de funcionário público do meu pai, ela se desdobrava ali, e das mãos dela saíam peças lindas, que iam reverberando entre as mulheres... Muito caprichosa, parecia alta-costura o que ela produzia ali naquele seu cantinho. Entre aqueles tecidos e carretilhas, pude aprender muitas coisas vendo com meus olhos de criança observadora.
Há muitos tecidos grossos, resistentes. Outros são finos, delicados. Ao menor esforço se esgarçam. Por vezes, é possível cerzir, dar pontos, fazer um bordado sobre para esconder o que se perdeu. Outras vezes o tecido fica inutilizável e temos que aceitar isso como um fato.
No coração de quem ama, acontece o mesmo. Às vezes é possível recuperar o tecido de uma dor. Em outras, encaramos que ali haverá sempre uma cicatriz. A vida é assim.
Como minha mãe, eu costuro também. Não tecidos, mas textos. Vou alinhavando letras, palavras, orações, frases, parágrafos... tento dar nexo e estética a esse corpo feito de ideias.
Agora, neste exato momento em Montevidéu, sinto que a vida é breve e devemos atrelar nosso carro à alegria, à esperança, aos sonhos e à possibilidade de futuro.
Tentarei costurar o que tenho nas mãos. Cerzir; se for necessário, bordar para tornar bonito onde se rompeu. Mas sinto que nada pode esconder o tecido esgarçado que fica ali para sempre no coração.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

e.e. cummings, na tradução de Gil Pinheiro

à atemporalidade e ao tempo igual,
o amor não tem início nem final:
se nada andar nadar nem respirar
o amor serão o vento a terra e o mar

(amantes sofrem?cada divindade
lhes veste a pele com mortal vaidade:
amantes são felizes?seu querer
cria universos ao menor prazer)

amor é a voz por trás do que se cala,
esperança que o medo não cancela:
força tão forte que nem força abala:
verdade antes do sol e além da estrela

– amantes amam?ora, o tolo e o esperto
que preguem céu e inferno, tudo certo

e.e. cummings
(tradução: Gil Pinheiro)


being to timelessness as it's to time,
love did no more begin than love will end:
where nothing is to breathe to stroll to swim
love is the air the ocean and the land

(do lovers suffer?all divinities
proudly descending put on deathful flesh:
are lovers glad?only their smallest joy's
a universe emerging from a wish)

love is the voice under all silences,
the hope which has no opposite in fear:
the strength so strong mere force is feebleness:
the truth more first than sun more last than star

–do lovers love?why then to heaven with hell.
whatever sages say and fools, all's well

e.e. cummings

Cronicamente desrespeitoso, terrível e inviável

Respeito e gosto do trabalho de Sergio Bianchi. Me lembro do tempo em que ele teve dificuldade de dar continuidade a seu trabalho, anos 90 (?), fiquei angustiada ao ver suas entrevistas na TV e nos jornais. Ele dizia que estava vendendo seus móveis art déco para sobreviver.
Alguém talentoso, cheio de ideias e que não consegue dar andamento a seu trabalho num país que não respeita seus artistas e seu cinema (como era na época), vê seu trabalho bloqueado por tecnocratas e uma faixa de público que não valoriza a vanguarda, como era o caso de Bianchi naquele momento.
Um dia, início dos anos 90, fui com 3 amigos ao MIS (Museu da Imagem e do Som) assistir a um filme numa mostra. Faltava tempo para a sessão, então fomos tomar um café ali mesmo. Numa mesa ao lado, nosso ídolo: Sergio Bianchi, acompanhado de algumas pessoas. Meus amigos eram, além de muito interessantes, muito bonitos, na mais tenra idade, cerca de 22-23 anos. Eu era a mais velha do grupo, tinha 28, quase 29, talvez por isso eles gostassem de minha companhia. Falávamos de política, e de sonhos, do PT no poder, de como o mundo seria melhor e mais justo, de nossas expectativas na vida, de nossos amores, desamores, sonhos pessoais. Falávamos de arte, filmes, livros, línguas, literatura. Em minutos, trocávamos de assunto. Era muito assunto para pouco tempo. Não tínhamos tempo a perder. Assim é a juventude. Eles faziam ciências sociais na USP e eu vinha das letras e acabara de entrar no mestrado em sociolinguística da mesma faculdade. Conclusão: o mundo era apenas um portal.
Eu tinha uma filha de 4 anos, que deixara delicadamente dormindo com a babá. Num hiato da conversa, me lembrava dela, e no meio daquela minha juventude efervescente, recém-separada de um casamento longo, às vezes me dava vontade de correr para casa e apenas ser mãe de Isadora, e olhar seu sono tranquilo e não perdê-la, não perder sua infância. Mas os apelos da juventude em mim eram maiores, e eu tinha que correr.
Sergio Bianchi estava numa mesa ao lado com um grupo da ECA. Ele passou a observar nossa mesa com atenção, e, para nossa surpresa, ele me observava muito diretamente. Os meninos me disseram entredentes: "Tuntum, ele está olhando você". Eu disse:"vocês estão loucos!" Cinco minutos e Sergio estava na nossa mesa, conversando, contando casos, coisas pessoais, onde morava, das dificuldades do cinema, do seu cinema naqueles tempos difíceis. Das negociações que andava fazendo para sobreviver. Essa parte foi triste pra mim...
Apesar de tudo, daquela fala melancólica às vezes, havia aquela dignidade daquele homem grande, traços europeus, perfil nórdico, gestos que me lembravam Oscar Wilde. Não havia nada de trágico, havia certo humor, uma ironia fina na narrativa de sua leve tragédia pessoal daquele momento...
De repente, ele começou a contar um desencanto amoroso recente, os olhos ficaram tristes, aqueles olhos lindos, claros, inteligentes, até então brilhantes e moleques, foram longe e pareciam um mar recuado. Ele parou, fez um gesto oscarwildiano, chique, longo, delicado, tragou o cigarro profundamente, soltou a fumaça como um lorde, olhou para meus amigos e aí me mirou nos olhos, não vou esquecer. Ele disse: "por que, me digam, por que não me apaixono por uma mulher? Uma mulher assim como você? Eu estava te olhando da outra mesa e pensei comigo: 'se eu me apaixonasse por uma mulher, como aquela da mesa ao lado, talvez eu fosse mais feliz...'"
Nós éramos muito jovens, e entendemos aquilo como uma piada, ou um sei lá o quê. Caímos no riso, e Sergio saiu daquela profunda depressão momentânea e riu também. E falou: "é... infelizmente você não tem o que eu gosto..." E gargalhamos juntos. Foi uma festa. Sergio retomou seus olhos de menino-Oscar Wilde pronto para ser selvagem. Adoramos sua companhia. Um dos momentos mais engraçados e cheios de histórias que já tive. Um cineasta, um grande contador de histórias...
Assisti a seu filme Cronicamente inviável algumas vezes. Aquela sensação de gastura.

Há uma obra em pleno andamento ao lado do meu prédio, um grande empreendimento imobiliário. Todos os dias eles tentam adiantar o cronograma iniciando o trabalho às 7h da manhã e concluindo às 20h. Todos os dias da semana, exceto domingo.
Acordo às 7h com o barulho da escavadeira na parede de meu apartamento. Minha cabeça dói logo cedo. A poeira sobe e tudo fica rubro na minha janela. Penso que será pior quando o prédio subir (não terei mais: pôr de sol, montanhas, Pico do Jaraguá, céu azul, céu, nada... Só terei um vizinho que pagou 1,8 milhão de reais por um apê, escovando os dentes e tomando banho diante de mim...).
A escavadeira grita e não cessa, um só minuto, o dia todo. A cidade me fica insuportável. Quero fugir. O cantinho delicioso da minha casa, que montei com toda delicadeza, meu escritório, se tornou algo inviável, cronicamente inviável. Os desmandos do capital, do dinheiro, de gente que nem sabe o que é respeito, leis, horários, barulho, desgaste. Os desmandos de quem tem o poder.
Por isso a lembrança do elegante Sergio Bianchi, seus gestos delicados e finos. Seus móveis art déco. Sua resistência aos desmandos da ignorância. (Ouço agora, além da escavadeira, algo mais contudente batendo fundo na terra... e repetitivo. Quero correr.)
Todo meu respeito ao cineasta de Cronicamente inviável, Sergio Bianchi.

Sobre a obra de Sergio Bianchi, encontrei um apanhado no blogue de Rubens Ewald Filho (* mas confesso que vou procurar outras referências para incluir aqui também de outros críticos... :-( ):
http://noticias.r7.com/blogs/rubens-ewald-filho/2010/02/21/os-filmes-de-sergio-bianchi/

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Desta vez, sem nocautes

Bicho da seda
deixou,
prevenido,
um fio
leve
colado em mim.

Apesar
da minha fuga,
quando dei por mim,
Ariadne
me conduzia
no caminho de volta.

Bicho da seda.
Clever
em suas manobras
de origami.

Não há outdoor
pós-moderno
que nocauteie por
muito tempo
seus truques
milenares.

Não para mim.
Uma mulher
que acredita
na tradição,
nos rituais
e nas raízes do tempo.

domingo, 9 de outubro de 2011

Os conselhos do mestre Cartola

O Sol Nascerá

A sorrir
Eu pretendo levar a vida
Pois chorando
Eu vi a mocidade
Perdida

Fim da tempestade
O sol nascerá
Fim desta saudade
Hei de ter outro alguém para amar

A sorrir
Eu pretendo levar a vida
Pois chorando
Eu vi a mocidade

(Letra e música de Cartola)

Acesse o youtube:
http://www.youtube.com/watch?v=_bBid7i34XI

sábado, 8 de outubro de 2011

Eih! Misses DJ!

Comecei minha sexta-feira exatamente às 6 horas da manhã. Levantei rápido, fiz meu espresso com torradas clássicos, e me pus a trabalhar, o dia seria bem cheio...
Às 14h40, estou "montada" para a jornada que se estenderá sem cessar até a madrugada, já sei. Vou para a terapia, o respiro da semana, o "dia do arremesso" dos humanos. A gente se arremessa nos braços do conforto da reflexão e da autocrítica.
Às 16h30, reunião com a Raquel Matsushita, que além de grande amiga é a melhor designer que conheço. Bom, 17h30. Tenho que sair correndo do estúdio, deixar o carro em casa e pegar um táxi para o cinema, não vai dar pra trocar os sapatos lindos, mas que fizeram duas grandes bolhas no pé esquerdo. São 17h45, estou mancando, paro numa farmácia, compro gaze e esparadrapo, pois meu dia ainda terá muitas horas pela frente, não posso me render a essas duas bolhinhas... Pego o táxi, chego ao cinema e me encontro com quem combinei. Tudo certo, o argentino Conto chinês é muito sensível, como eu esperava. Não é ótimo como o patrício O segredo de seus olhos, mas é muito bom. O curativo com as gazes deu certo, não estou mais mancando, mas as bolhas aumentaram de tamanho...
Como sou uma sagitariana otimista, penso: bem, agora só restam o jantar e a sobremesa e mais algumas horas entre esperar a Marcinha (porque ela sempre se atrasa, mas a amo mesmo assim) e a balada a que vou com ela depois das 1h da manhã). Pouca coisa!...
Jantar foi fácil, sentada, caminhar até o apartamento foi o mais difícil, as bolhas estão agora gritando: somos órfas!
A parte da sobremesa é fácil. Agora preciso esperar Marcinha me ligar no celular. Meia-noite... meia-noite e meia... meia-noite e quarenta e cinco... uma hora...
-- Ei! Misses DJ! Já acabei tudo por aqui, preciso deixar o moço dormir, como fazemos?
-- Oi, Tuntum, já estou saindo, vou descarregar no Parlapatões, chego em 20 minutos lá.
Dei um desconto e chego atrasada quase meia hora, vou ao banheiro do Parlapas e Marcinha chega. Tudo certo!
Enfim, nos encaminhamos para a festa em que ela será uma das DJs da noite. Uh-uh! Vou prestigiar. Mas só porque a amo muito. Porque somos amigas há 22 anos. Nossas filhas são amigas. Ela de certa forma passou ao rol das mulheres "comprometidas" por causa digamos do meu traseiro.. (E ela sabe que me deve isso! :-)) ) E porque há laços que o tempo e as máculas não rompem. Este é o nosso caso. Não fosse isso, eu pegaria minhas bolhas órfãs e as levaria pra casa (está difícil caminhar, imagine dançar, ou alguém pisar nesse meu pé compromeitdo! Só o amor e amizade de tantos anos para superar essa dor...
Desde aquela noite em Visconde de Mauá, eu garçonete, ela, habituée e cachaceira das boas, nunca mais nos desgrudamos, exceto por algumas fases, mas nunca por muito tempo. Apesar de sermos tão diferentes, nos completamos, como a música do Chico: "O nosso amor é tão bom, o horário é que nunca combina..."
Mas quem disse que no amor temos que ser iguais? Ao contrário, nos completamos nessas nossas pequenas diferenças: ela é extrovertida e faceira, eu sou fechada e amoitada; ela é franca e direta, italiana, eu dou voltas pelas bordas para dizer o que penso e tento escolher as palavras, meio à inglesa (o que é péssimo para meu estômago); ela não mede consequências e se atira, eu sou lógica e racional, meço antes de fazer para não atingir nada; ela adora as coisas simples e boas da vida, não complica, eu adoro devorar livros difíceis, filmes complicados e complexificar o que já é difícil e procurar situações bem difíceis pra resolver -- por isso ela me apelidou, além do tradicional Tuntum, de Maria Callas, que era uma personalidade complexa, como todos sabem... Eu não sei de verdade o que dou a ela, e o que ela viu em mim para se apaixonar, mas eu sei o que ela me dá: alegria, jovialidade, espontaneidade e muita fome de viver. A seu lado parece que respiro, por isso minha paixão por ela.
Então, quando ela estava lá em cima ontem, linda, poderosa, Afrodite, nesse momento tão delicado de nossa reaproximação, algo me beliscou, e num filme me lembrei de nossa história, cheia de meandros, impasses, passagens. Da nossa alegria juntas, de nossas filhas crescendo juntas, das nossas confidências de amores e desamores, do sopro de vida e de esperança que uma relação como esta tem e leva ao longo da vida. De nosso lugar no mundo. Este mundo, que mais do que coisas, deve ser feito de relações sinceras como esta. De sentimentos profundos, como este que tenho por você, Misses DJ.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Penso, logo, fico bem triste, às vezes

"Todo mundo que pensa é infeliz."
(Sergei Dovlatov)

Sobre outdoors, nocautes e bichos da seda

Sábio, um bicho da seda
me enrosca com seus fios
delicados e
suaves.
Carimba labirintos
e minotauros,
Ariadnes,
sabe o que faz.
Vai me conhecendo
no sentido bíblico.

Gosto:
novidade,
textura,
suavidade,
com a força
do cromossomo Y.
Enfim,
um tempo
diverso.
Vou me enroscando.

Sons sibilares, miados,
cricris de floresta,
rastejar de feras.
É tudo novo
e deliciosamente
úmido,
como depois da chuva.

Pronto!
Preparo meu bote
de tigre,
cravo minhas garras
sobre a presa.


O abismo insólito
onde se atiram juntos
homem e mulher
(ou Y e Y, ou X e X)
está a um passo.
Mas um clarão
interrompe
meu jumping.
Recuo
minhas garras.
Todo meu ser
é um grande outdoor
urbanoide --
sua marca
seus vestígios.


Então me apresso
e fujo,
como aquele homem
que quer devorar
o anúncio
de lingerie
longe das vistas
da amada.

Quero distância,
corro, táxi,
me atiro,
e na solidão sentir
as feridas ressentidas
diante daquela celebração.
As feridas se abriram.

O bicho da seda,
fios delicados nas mãos,
ficou sem entender:
como sua sabedoria
milenar
não produziu
seus efeitos nesta mulher...

É simples:
o outdoor nocauteou
seu doce veneno.

Eu, numa onda flower power, e anarquista, thanks Lord!

Desde que voltei de San Francisco em junho, ando meio flower power...
Ando me lembrando das músicas de quando tinha 5 anos e via pela TV ou pelos jornais e revistas aquelas massas de jovens, cabelos longos, jeans, um olhar pacífico de quem mudará o mundo pela explicação e pela filosofia. Hordas de juventude caminhando em busca de sentido, de sexo, de liberdade, da experiência com as drogas, ácido, tudo que fosse possível vivenciar, viagens as mais profundas.
Eu via tudo aquilo e achava lindo, sem saber o que era. As batas brancas com flores desenhadas, os cabelos longos até a cintura, despenteados, gritando: queremos liberdade. Woodstock... Eu pensava: quando crescer, quero ser assim.
Paralelamente eu via nas manchetes do meu país a cavalaria, os jovens em confronto, uma tensão nesses rostos diante da autoridade. Via sem saber ler que os estudantes haviam jogado bolinhas de gude num confronto contra os militares, arma mais infantil contra uma guerra duríssima. Os cavalos caíram sobre as circunferências.
Meu pai chegou do trabalho pálido, antes do habitual, e nos contou que teve que se enconder na catedral da Sé porque o Fórum tinha sido evacuado pela polícia. Viu os estudantes arrombando a porta da catedral para fugir dos policiais, brutos e ávidos por vingança por conta do ridículo das bolinhas de gude. Muitos dos estudantes corriam, meu pai viu, mas não deixavam de ajoelhar e fazer o sinal da cruz ao entrar na igreja... Hoje acho isso muito engraçado. Seriam esses os não marxistas? Ou seriam marxistas filhos de católicos praticantes? Numa reunião posterior os sobreviventes teriam sido punidos por esse ato?
Mas voltei de San Francisco, depois de ver a Golden Gate, com aquela música "If you're going to San Francisco, you be sure to wear white flowers in your hair..." repetindo em minha mente, que só alguém mais velho ou da minha idade consegue se lembrar...
Quem quiser abrir o porão da memória, acesse: http://www.youtube.com/watch?v=g_HhwinPw-M&feature=player_embedded
Me deu saudade dos meus 5 anos, da minha admiração pelos flower power, da atenção que tinha ao ver o meu pai contar a história da cavalaria X estudantes, em que estudantes venceram com inocentes bolinhas de gude o poder inglório das forças armadas! Me lembro de ter rido, gargalhado, imaginando os cavalos a cair uns sobre os outros com soldados sobre eles, porque desde de criança já era anarquista, thanks Lord!

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A vida como ela é

Passam os dias, as semanas, os meses. Vou desaprendendo os pontos da memória que aprendi com você.
As cenas que faziam falta já não fazem tanto, e me vejo doendo por ser tão cínica a ponto de me repreender: como posso esquecer e não sentir falta das pequenas coisas que me rodeavam como círculo de giz e faziam a minha vida mais doce, mais clara e jovem? Um ponto de felicidade no Universo, um ponto de orgasmo-felicidade uterina, coisa de mulher-felina que quer mais, mais, muito mais da vida.
Atiro uma pedra no oceano e quero que ela volte para mim. Um presente, um som, um jato sonoro, como colocar uma concha no ouvido. Sons marinhos. Bichos estranhos, cracas, escamas. Ferrugem e baús. A minha memória já me escapa, e me dói a ideia de ser enguia, escorregadia, lisa, fugidia, e aos poucos não ser mais sua, não ser mais sua, não ser mais sua, não ser mais sua, não ser mais sua, não ser mais, não ser... estranha dor de quem quer superar, mas quer manter. Ambiguidade humana e de mulher.
A lógica da minha mente me empurra para a frente, sempre. Mas o calor do meu coração dá um passo para trás. Lesmas no jardim, albatroz em pleno ar. Sou rasgada por essas duas imagens dicotômicas. Sylvia Plath, Baudelaire, me corrompem imagens distorcidas, diversas.
Como a vida não é o que sempre queremos, o telefone toca.. ring ring. Corro. Meu coração dispara, acelera, pula e salta feito criança. Tenho 18 anos e um sentimento de marés. Alô! -- Ainda não é você. Será um dia?
O tempo passa como uma barcaça lenta e o sentimento de maré virou brisa serena. O telefone toca. Ring... ring... ring... ring.... ring.... vou devagar atender. Digo um alô preguiçoso... Do outro lado da linha ouço as palavras mágicas que despertam a fera, a felina. O tigre em mim abocanha com fé e presas e fome a felicidade-uterina. Não há mais tempo a perder. Meu coração dispara, não tenho mais 18 anos, mas tudo oxigena em mim. Surfo nas marés que formam ondas altas. Recupero a memória dos anos e de tudo em segundos.
Assim é a vida. As ondas vêm apenas quando querem, a seu bel prazer. Há que se ter paciência de monge e esperar.

("Palavra de lesma numa lâmina de grama?" -- em um poema de S. Plath)
("Suas asas de gigante impedem-no de andar" - no poema "Albatroz", de Charles Baudelaire)

Patuá

Ainda sou a mesma.

Costurada
dentro de outra.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Entre mim, John Wayne e John Donne

Muitos já me disseram que sou "durona".
Ao dizerem isso de mim, me imagino John Wayne, um saloon, velho oeste, eu invadindo o espaço, abrindo aquelas portas vaivém sem cerimônia, as mocinhas cancan gritando em frisson, peço um bourbon, tomo de uma vez, e o copo corre sobre o balcão. De um tiro só o bandido jaz atrás de mim, silêncio no recinto, e tudo foi feito mirando pelo espelho...
Não sabem essas doces e inocentes criaturas que a dureza tem seu preço, que para sustentar a água de uma represa é preciso erigir muito concreto. Pois então, o meu concreto aparente represa um doce sentimento, talvez uma inocência e uma vontade de mostrar, mas um recuo e um cadeado medieval que represa tudo e reserva apenas "àqueles a que tal graça se concede", como diria o poeta John Donne, o dom e graça de receber e apreciar todo meu sentimento e sensibilidade... Afinal, não se mostra aquilo que se tem de melhor a qualquer um, ou não se fica nua diante daquele que não merece o vislumbre... Não é assim?
Talvez a minha dureza por vezes e em certas situações seja mesmo excessiva; isso se resolve em terapia, espero. Mas talvez minha sensibilidade seja uma pérola, ou como a carne delicada de certos bichinhos do mar, que nascem com uma dura carapaça para protegê-la. Daí eu escondê-la sob um rochedo. Tento protegê-la sempre, a qualquer custo. Porque dói, e demora a cicatrizar. E como as pérolas que se riscam e maculam e "morrem" facilmente, trago riscos e máculas difíceis de tratar nesse meu esmalte fino e delicado. Por isso o cuidado de pérola. Por isso a carapaça de bicho do mar.
Mas aviso aos navegantes: a qualquer sinal de sol brilhante, mar calmo e azul, segurança na embarcação, o ser sai lânguido de debaixo do rochedo e se mostra, transparente, e a dureza fica toda crua para trás. Bem lá atrás, naquele rochedo. Nada de John Wayne, saloons, gritos, tiros, bandidos... Só Sandra e a delicadeza e a sensibilidade e a poesia que se puder ter e mostrar, a quem se puder conceder, como diria o sábio, magnífico, sagaz, irônico e erótico John Donne (que lhes concedo, com prazer, a seguir).

"Elegia: indo para o leito

Vem, Dama, vem que eu desafio a paz;
Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.
Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado,
Feito para deter o olhar ousado.
Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.
Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu anjo, és como o Céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
O que o meu Anjo branco põe não é
O cabelo mas sim a carne em pé.
Deixa que minha mão errante adentre.
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra a vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha Mina preciosa, meu império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo.
Nudez total! Todo o prazer provém
De um corpo (como a alma sem corpo) sem
Vestes. As jóias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atalanta:
O olho do tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.
Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente

A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.
Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante."

(John Donne, tradução de Péricles Cavalcanti e Augusto de Campos)

In a sentimental mood com Ella Fitzgerald: Paradise

http://www.youtube.com/watch?v=ayb6CFQQ5Ko&feature=related

domingo, 2 de outubro de 2011

Meia-noite em Paris, em companhia francesa

Eu disse: "Vamos assistir ao filme do Woody Allen, Meia-noite em Paris. É lindo, você então que morou em Paris vai adorar... aquelas cenas de uma Paris belle époque, os escritores, os artistas, os pintores, um tempo adorável... aquele céu escuro pontuado de luzes e o rio Sena e as pontes. Vamos! Eu prefiro que ir ao Jazz."
Houve certa resistência, percebi, mas uma mulher sempre acaba conseguindo o que quer, usando os mais contundentes artifícios -- e se possível até os mais baixos, se ela quiser muito.
Eu já tinha ido neste ano assistir ao filme do Woody, e tinha adorado. Aquele cenário de sonho de uma Paris encantada, parada lá atrás na época do Bateau Lavoire, onde moravam os pintores e artistas, dos escritores americanos que viviam em Paris, de Dalí, Picasso, Josephine Baker, dos surrealistas e das belas mulheres, artistas ou não que viveram ali.
Eu insisti, porque sabia que alguém que vivera em Paris tantos anos, e que "vivera" Paris de verdade, e que gosta tanto de literatura e livros e arte não passaria incólume por um filme assim. Marcamos e nos encontramos lá. Como combinamos um horário muito antes da sessão de cinema, acabamos indo tomar algo antes, porque seria péssimo esperar duas horas no apertado anexo do Espaço Unibanco.
Um mojito sempre me deixa mais solta, e acabei contando minhas aventuras em Cuba, coisa que jamais conto a ninguém! E também a invasão do meu quarto em Nova Délhi (eu dormindo sem roupa, porque fazia muito calor. Uma confusão do hotel trouxe de madrugada um casal de malas e cuia para o meu quarto. Eu acordei, sem roupa, e o casal de Singapura estava lá, em frente da minha cama. Luz acesa, o funcionário do hotel com a chave na mão e a outra mão no interruptor, o olhar congelado em mim. O marido congelado também e a mulher chocada, empurrando para fora marido, malas, funcionário, e eu em vão tentando me cobrir com um frágil lençol e perguntando aos berros o que estava acontecendo!!... patético.) Sou muito fechada e discreta, amoitada mesmo, como dizem, mas um mojito tem poderes mágicos e afrodisíacos em mim... Portanto, o mundo se tornou mais lindo e aquele rum com soda e folhas de hortelã me deixaram com os sentidos mais antenados e aguçados para ver novamente, e agora sim de verdade, Meia-noite em Paris. Assim... como se fosse um preâmbulo para tudo que viria.
Pois às 20h, quando me sentei na poltrona, eu já era outra Sandra, não a mesma comportada e delicada que assistira ao filme meses antes. Os canais estavam abertos, estava solta, nada de tensão, e eu queria entrar dentro da tela e "ser" a selvagem Josephine Baker... O humor woodalliano me tocou mais forte desta vez e eu ri, despretensiosa. A literatura me emocionou mais, pudera, eu estava sentada ao lado de quem sabe e gosta, isso faz a diferança. Queria ler de novo: Suave é a noite, de Fitzgerald. Por quem os sinos dobram, de Hemingway, ouvir Cole Porter e Josephine Baker mais vezes, olhar mais meus livros da obra de Matisse...
E, como eu previra, Meia-noite em Paris atingiu diretamente os sentidos e sentimentos do passaporte francês à minha esquerda (eu sabia!). É impossível alguém sensível e repleto de conhecimento não se emocionar ao flanar novamente naquelas cenas às margens do Sena, na companhia de Scott Fitzgerald, Dalí, Gertrud Stein, Picasso, Cole Porter e toda uma prole criativa de uma época bela e de ebulição cultural -- na verdade, a beleza de um passado ao qual não pertencemos e não temos mais acesso, exceto por relatos e livros e obras. E é impossível não de reapaixonar por Paris, a cidade-luz. Sempre.
Moral da história: quando uma mulher quiser mudar seu roteiro, simplesmente aceite, não titubeie. Ela definitivamente sabe o que está fazendo. Que o diga Amélia, da ópera Amélia vai ao baile, do italiano Gian Carlo Menotti. (Quando uma mulher quer ir ao baile, ela simplemente vai, não importam os meios. Não ouse tentar dissuadi-la)

sábado, 1 de outubro de 2011

Lições de vida: Erico Verissimo

"(...) Só a vida ensina a viver. É preciso a gente ver primeiro tudo o que a vida tem de mau e de sórdido para depois podermos descobrir o que ela tem de belo e de bom, de profundamente bom. (...)"

(Erico Verissimo. In Olhai os lírios do campo.)