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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

El dia que me quieras

Na minha infância, sem acesso a mídias digitais, facebook, toda espécie de redes sociais, jogos eletrônicos, como filha única me restava inventar a vida: as brincadeiras, os dias, as noites, os fins de semana, os dias de chuva. Os pais naquele tempo não ficavam o tempo todo pensando que estávamos sem atividade e precisavam criar coisas para fazermos. Éramos nós que cuidávamos nós mesmos de nossa lição de casa, da organização dos brinquedos (afinal, não eram inúmeros como hoje), do nosso lazer quando não havia dinheiro no fim do mês para passear -- improvisando, por exemplo. Me lembro de furarmos uma lata de óleo e colocar os arames das rodas de um carrinho quebrado do meu irmão. A lata se transformou num carrinho e, amarrada a um barbante, era arrastada pra lá e pra cá. Essa era a novidade do mês! Isso trazia alegria e felicidade, satisfação por termos conseguido solucionar nós mesmos alguma frustração momentânea: falta de dinheiro para comprar um novo brinquedo naquele momento, não ter o que fazer, um fim de semana de tempo ruim...
Caso nada disso fosse possível, havia os livros (poucos) que ganhávamos. Como não era possível comprar inúmeros, líamos e relíamos aqueles clássicos, ou meu pai relia a mesma histórias desses livros à noite pra nós. E a cada nova leitura do mesmo texto eu descobria (sozinha!) que um livro, a cada vez, tem novo significado, é só ouvir com a imaginação.
Pois, assim, sem internet, sem facebook, sem google, a observação infantil podia ser explorada naturalmente. Muito cedo aprendi a observar minha mãe, fosse no preparo das refeições, fosse quando estava na máquina de costura fazendo sempre alguma roupa muito especial para nós surgida de um retalho qualquer. Ela era detalhista, perfeccionista, dedicada, tenaz, destemida, e... inconformada quando algo não saía como ela previra.
Também aprendi a observar meu pai. Ele era calmo, paciente, silencioso, autocrítico e autoexigente ao extremo em seu trabalho, gostava de brincar de São José e fazia manobras de carpinteiro serrando tábuas, fazendo uma casa de um cachorro que jamais chegou -- mas a casa, pra eu não ficar triste, foi transformada em uma casinha de bonecas bem pequena. Ele também serrava tábuas para as costuras de minha mãe: sobre elas, ela punha o tecido, papel carbono e passava uma carretilha para marcar as costuras. Meu pai, às vezes, cantava tangos, não sei bem por quê, boleros também. Era raro, já que ele era e é tímido. E uma das cenas de que me lembro era ele imitando Carlos Gardel em "El dia que me quieras". Eu ficava do lado, quietinha, pra nada dar errado e ele não interromper, afinal, aquilo era raro dada sua timidez.
Eu cresci, saí de casa, me afastei como todo filho que tem que cortar o cordão umbilical para amadurecer. Mas, como a vida é assim, um dia eu voltei e vi que, apesar dos cabelos grisalhos, eram as mãos da minha filha que estavam nas deles agora, e num átimo eu entendi que tem certas coisas que são um mistério que a própria vida se incumbe de solucionar. E ela ganhou os mimos todos que eu ganhei deles: as roupas mais lindas feitas pela avó perfeccionista, os quitutes feitos por demanda, um luxo! O cuidado do avô onipresente, que nos foi de uma ajuda incrível em alguns momentos. Do avô ela aprendeu certas coisas que parecem até minhas: certas tradições não se perdem numa família.
Ao longo da vida, eu sempre ficava nostálgica e cheia de memórias ao ouvir "El dia que me quieras". Nunca aprofundei para saber o que isso significava, já que outras canções da minha infância não trazem esse sentimento. Resolvi então aceitar que a vida tem certos mistérios, e que, em alguns deles, é preciso apenas sentir. Desnecessário saber a razão.

sábado, 29 de novembro de 2014

Diálogo de naus 3

Anônimo (ele)
Faz tempo...

Anônimo (ela)
Minirrosas se expressam em botões. Brotar. Será isso alguma mensagem cifrada das estrelas? Florescer. Será um ponto no bordado da esperança? A vida segue. Aí está a beleza de tudo.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Diálogo de naus 2

P.S.: ainda sorvo vinho de má qualidade, Lana Turner, e você?

Anônimo:
sorvo o sumo que me assoma a alma

Anônimo:
mnemosine mãe memória de todas as musas

P.S.: Calma, navego o Lete. Alcanço o horizonte sem macular a lembrança: não toco nas águas. Tenho sede, mas não bebo. Tempo depois, alcanço o Mnemósine, meus pés plantados em seu leito, faço uma concha com as mãos, molho os lábios com a água doce da recordação e bebo. O esquecimento já não faz mais parte de mim.

Sobre a lenha e os corações

Ao encontrar o galho de uma árvore que a chuva forte derrubou, observe. Aquilo não está esquecido. Se eu o levar para casa, ele se transformará no calor que aquece o frio do meu inverno numa lareira. Se eu simplesmente ignorá-lo, não se engane: a natureza o transformará, mostrando que tudo na vida tem sua função e serventia.
O Universo é sábio: transforma tudo. Nada se perde. Tudo se resgata.
Até os sentimentos.

sábado, 8 de novembro de 2014

Diálogo de naus

P.S.: ainda sorvo vinho de má qualidade, Lana Turner, e você?

Anônimo
sorvo o sumo que me assoma a alma

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

"Por que não ficaria um pouco de mim?"

"(...) Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Mas se de tudo fica um pouco
Por que não ficaria
um pouco de mim?
(...)"

(Trecho de "Resíduo", de Carlos Drummond de Andrade)

domingo, 31 de agosto de 2014

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

"O desejo
é a mais cruel
das estações."
(Maria Rita Kehl. In Processos Primários)

terça-feira, 19 de agosto de 2014

As gemas

O inventário de uma vida sempre dói. No osso, no pulso, na lembrança. Colher as borboletas que fomos afoga a tarde e enverniza o ocaso. Amanhecer não é para os fracos -- profere a multidão de esporas.
Adormeci pensando em cruzar a fronteira, sem a mínima esperança. Desperto no mesmo perpétuo sem rumo, como ontem, antes de ontem. A carapaça rompe e sangro, e as gemas ressurgem, incrustadas cintilando. Opacas, translúcidas, mínimas, enormes como o rio Nilo. Azul-profundo, amarelo sui generis, cor de terra selvagem. A saudade, aprendi com Emily D., soa a pedras preciosas. Minhas lágrimas vertem olhos-de-tigre, ametistas, citrilos, turquesas...

Um continente ancestral

Minhas sobrancelhas espessas e escuras formam um continente sobre meus olhos mouros e melancólicos, que esperam um navegador que jamais voltará. Todos os meus ancestrais que me legaram esse olhar que busca o infinito foram lançados às profundezas do mar, ou afogaram se em combates sangrentos. África, África, mouros, romanos, todos clamam seu lugar em mim.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

"Outra vida"

Há alguns anos li o romance do Rodrigo Lacerda, "Outra vida". Uso o título em minhas conversas com amigos e chegados. Sempre digo: quero 'outra vida', como no romance do Rodrigo.
Outra vida, mas que comporte tudo que tenho de bom nesta. Como querer cruzar um rio com bagagem nas mãos. Será possível? Estar na outra margem carregando a terra trilhada de todos os caminhos.
Sim. Quero outra vida.
Mas o que fazer com esta que tenho diante de mim?

domingo, 20 de julho de 2014

Dentro da noite

Os pensamentos nebulosos.
A estrada escura sob a luz dos faróis.
Mergulhou na noite negra, fria e sombria.
A coragem do desejo acelerou rumo ao conhecido.
O segredo da vontade fez calar.
Dentro da escuridão os pensamentos encaracolaram como vagas sutis. Figuras complexas se desenharam. Uma coreografia de não-sim apoderou-se.
A vontade, uma língua bifurcada de serpente.
O passado, o futuro.
Um vento gelado, uma chama a machucar.
O prazer ambíguo e paradoxal dos que acendem seus pensamentos em uma noite de pesada neblina.

sábado, 21 de junho de 2014

Por um artigo definido

Ela estava lá. Chegava sempre às quintas. O garçom já a conhecia e sabia o que era seu pedido, sempre: uma taça de vermelho, que era sorvida longamente, a goles miúdos, entre uma observação e outra, entre ler o jornal (fosse impresso, fosse nas engenhocas que ela trazia na bolsa) ou uma revista ou um livro. Sempre havia água acompanhando depois de uma meia hora.
Ela então interrompia a leitura, tirava os óculos e olhava ao redor. Nesses momentos, ela entrava numa espécie de transe, o garçom percebeu depois de tanto tempo que a conhecia, e não deveria ser interrompida. E tinta um tique engraçado nesse estar distante: o olhar ia longe, ela não estava ali, mas estava ali, e mexia com a mão esquerda no cabelo, construindo os dedos pequenas ondas nas pontas do oceano marrom. De repente -- era sempre assim: de repente --, ela voltava do transe, desajeitava os cabelos com a mão direita e o chamava: "um segundo vermelho, por favor". Era assim que ela pedia. Sempre. Então, ele esperava um pouco, como um súdito, e percebia na expressão dela que ela precisava comer algo. Sempre algo leve, muito leve. E sempre o mesmo pedido. Depois, terminada a segunda taça, a leitura, a água, a leve ceia, ela pedia um espresso bem curto. Arrumava tudo na bolsa, conversava com ele enquanto pagava a conta, perguntava da faculdade que ele fazia, como estava indo, se ele havia conseguido aquela bolsa de estudos, como estava a bebê, tinha foto? Ele sempre esperava ansioso por aquele momento. Ele se lembra do quanto ela ficara feliz quando ele dissera que estudaria literatura inglesa. Ela ofereceu livros e ajuda, caso ele precisasse. E o rosto dela nunca mais saiu de sua órbita. E todas as quintas, ela estava lá, irradiando algo que carregava algo nele.
Nesse dia, estava tudo como dantes: ela chegou perfumada, lançou um sorriso de quem está de bem com a vida, retirou o notebook da bolsa e digitou por algum tempo. Ele trouxe a primeira taça. Ela agradeceu. Pediu água. O súdito fiel àquela mulher atendia a todos em meio ao movimento sem tirar os olhos do desejo dela. Quando ela gostaria da segunda taça? Quando ela gostaria de comer alguma coisa bem leve?
Ele se distraiu por um segundo, e dois homens se sentaram à direita dela no balcão. Pediram licença, e ela não tirou os olhos da tela enquanto digitava, apenas disse "por favor, à vontade". Os cromossomos Y pediram sua bebida, e passaram do futebol ao ícone nacional: as gostosas. Falaram de tudo: economia, política, chegaram a quase se indispor por uma questão do mensalão, mas logo o próximo copo apaziguou os ânimos. Amigos não brigam nem por futebol nem por política (só por mulher...).
Ela então fechou o notebook. O garçom sabia: era o momento da segunda taça. Ofereceu algo para comer, ela respondeu no ato: "o de sempre". Ela tirou um livro da bolsa, e passou a ler, os amigos ali, já na quarta rodada. E ela tranquila, fazendo o que sempre fez. O garçom adorava aquilo: saber que ela seria sempre a mesma... Dava-lhe um conforto naquele mar de caos e gente doida...
Mas os amigos começaram a falar mais alto; etílicos, passaram a fazer confidências, dessas que os homens fazem ao redor de mesas de sinuca ou balcões de bar. Ela então não conseguiu mais ler, passou apenas a sorver o frutado que estava diante dela. Não era possível ouvir tudo o que eles diziam, porque o lugar estava muito barulhento. Mas em determinado momento, chegou até ela essa confissão, quase como numa súplica:
-- Cara, sabe... eu conheci uma mulher. Quer dizer... ela não é uma mulher, é a mulher.
O outro foi tomado por uma espécie de terror, e mandou de imediato:
-- Velho, cai fora! De uma mulher você se livra... mas da mulher você jamais esquece...
O primeiro ficou constrangido, tomou um gole longo da bebida, e resolveu fechar as portas do confessionário.
-- Você acha que vai dar Croácia?
Ela ficou lânguida e sorriu, um sorriso diferente de todos os que ele já havia visto no rosto dela. E, então, o transe, os dedos transformando em ondas um mar revolto que ela tinha sobre os ombros, mas dessa vez ela fez diferente. Espreguiçou os braços e os alongou bem no alto, além da cabeça. O garçom não sabia: café ou não? Ficou perdido por esse novo gesto.
Ela retirou o notebook da bolsa e passou a escreveu, entre momentos de transe.
Ele chegou perto, perguntou baixinho: "espresso"?
Ela rebateu sem olhar para ele dessa vez:
"Um conhaque".

terça-feira, 10 de junho de 2014

Por um segundo

Há conexão na tristeza. Ele pôde sentir pela janela do apartamento.

A mudança. A separação. Tudo. Depois de 6 anos com a namorada naquela casa deliciosa, ele estava enfim ali. Solteiro. Num apartamento enorme, decorado. Vida nova. Tudo o que um homem casado talvez sonhasse.
Sua nova rotina foi tomando conta. De manhã, café na varanda, ler o jornal virtualmente. Depois, apressado, descia. Trânsito, trabalho, amigos, encontros, casa, insônia às vezes. Às vezes sono.
Mas havia algo que o tempo não deixava passar. Uma sensação estranha. Não era solidão. Não. Mas uma sensação impossível de descrever ou mesmo dividir com palavras, fosse com um amigo, ou com uma das mulheres que andava se encontrando. Aquilo era só dele. Ele sabia. Se dividisse, talvez o chamassem de egoísta, afinal, ele tinha tudo. Estava em seu melhor momento. Mas...
Saiu em férias. Mergulhou, fotografou corais e peixes exóticos, bem acompanhado. Ainda assim, voltou com aquela sensação, que não podia ser dividida.
Sua vida era agitada, vivia mais fora do que no apartamento. Quando estava ali, tudo se resumia a seu quarto, à sala e à varando nas manhãs. Mas, um dia, era um feriado, ele se lembrou que havia montado um escritório, não precisava ficar com as engenhocas no colo na cama ou no sofá da sala. Dirigiu-se ao outro extremo, sentou-se diante da bancada. Conversava nas redes sociais... Aquilo que não preenchia, mas fingia-se que preenchia.

Ele percebeu que nunca havia olhado por aquele ângulo da casa. Era possível ver as janelas do apartamento vizinho. Bem próximo. No décimo segundo andar, como o seu, a janela do andar vizinho abaixo do dele tinha tido precauções à indiscrição alheia: havia rolôs vazados, o sol entrava, mas jamais um janela indiscreta. Depois de um tempo, ele estava distraído, mas viu um movimento. Os rolôs foram levantados. Era uma mulher. Numa metrópole, a distância afetiva entre as pessoas é enorme, mas elas são obrigadas, por falta de espaço, a estabelecerem a proximidade física, e se defenderem como pode.
Ele continuou seu chat. Mas passou a observá-la. Ela estava aérea, pensativa, se deslocando pela casa. Dali ele podia ver algumas janelas do ambiente dela: a cozinha de azulejos hidráulicos; um pedaço do closet; um canto com bancada e estantes e quadros, gavetas, caixas organizadoras -- um pequeno escritório. Ela parecia preguiçosa, como se tivesse acabado acordar. Como ele estava acima, ele podia ver tudo o que ela fazia, todos os movimentos: o modo como caminhava e pisava descalça o chão frio de hidráulicos. O homewear despojado que ela usava, que ele vira muitas vezes a namorada usar parecidos. Ele a viu tomar café da manhã rapidamente: torrada com requeijão, e café. Depois, ela lavou o pequeno prato, pires e xícara. Sumiu por um tempinho. Surgiu de camiseta e jeans e cabelos presos com grampos grandes coloridos. Sentou-se diante da bancada e abriu o laptop. Parecia trabalhar, muito séria e digitando rápido no teclado. Depois de um tempo de janela indiscreta, ela baixou um pouco o rolô, a claridade devia estar incomodando. Mas era possível ainda ver seu rosto, as mãos no teclado. Ufa!
Mas, de repente, algo mudou na expressão dela. Ela se mexeu na cadeira. Tirou as mãos do teclado e mudou a posição do rosto para ver algo melhor na tela... Um e-mail talvez? Uma foto recebida? Um texto? Ela entristeceu.
Ele passou a se interessar mais pelo roteiro dela. E as ventosas do olhar grudaram na janela daquela desconhecida.
Ela ficou quieta por algum tempo, olhando de vários ângulos, clicando, como se estivesse vendo fotos recebidas do passado. Depois, ela assumiu um rosto de decisão, e digitou algo, seus olhos se movimentaram em relação à tela. Por um momento a tristeza deu lugar à ansiedade. Mas, em seguida, ela apertou uma tecla. Foi aí que ela chorou. Pôs as duas mãos sobre os lábios, e era como se uma represa tivesse sido aberta. Ela jogou então a cabeça para trás e cobriu o rosto, e agora não era mais tristeza, era sofrimento. Alguém naquele momento tinha se comunicado com ela, e havia remexido as cinzas. O fogo atiçado estava doendo. Era visível.
E foi então que algo dentro dele foi degelando, algo que ele nem sabia o que era. Ele nunca tinha chorado desde que ela o havia pedido para ir embora da casa. Nunca havia sequer repassado aquele dia triste de outono. O sol se pondo lá fora, e ela pondo aquelas palavras finais
Por um bom tempo ela chorou sentada com as mãos sobre o rosto. Quando cessou, ela se levantou, resoluta, e voltou de rosto lavado. Continuou seu trabalho, agora com o semblante de quem estava muito cansada.
Ele também se sentia cansado, porque dentro dele uma represa fazia estragos agora, de um jeito diferente de como fizera nela. Mas ele pôde compreender. Por um segundo, ele esteve conectado àquela mulher, e ela, uma desconhecida, pôde entender a sua dor.



segunda-feira, 9 de junho de 2014

Aquele pôr de sol

Roubaram meu pôr de sol diário. Depois, ganhei outro de presente. Mas todos sabem que a felicidade é uma arma quente, difícil mantê-la nas mãos. Novamente sem meu pôr de sol, fico aqui pensando em ponto buscarei outro amarelo a me aquecer, como amarelos de Van Gogh, que iluminam o mundo. Em algum lugar haverá um quadradinho quente para mim... E, pensando nisso, imaginei: meu nome bem poderia ser Esperança.

O poeta Antonio Cícero: as alegrias da palavra e do amor

Declaração

Quantas vezes lhe declarei o meu amor?
Declarei-o verbalmente inúmeras vezes
e o declaram todos os meus gestos tendentes
a você: a minha língua, a brincar com o som
do seu nome, Marcelo, o declara; e o declaram
os meus olhos felizes quando o veem chegar
feito um presente e de repente elucidar
a casa inteira que, conquanto iluminada,
permanecia opaca sem você; e quando,
tendo apagado todas as lâmpadas, juntos,
no terraço, nos consignamos aos traslados
dos círculos do relógio do céu noturno
ou aos rios de nuvens em que nos miramos
e nos perderemos, declaro-o no escuro.

(CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002.)

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Voyeur, na metrópole

Ela vivia só.
Só, não.
Benjamin morava com ela naquele pequeno apartamento. Jamais tivera um namorado na juventude tão fiel quanto Benjamin. Nenhum deles fora tão carinhoso e presente. Tão apaixonado. Ou lhe dera tantas demonstrações de afeto. Benjamin, um vira-lata, bela mélange de tudo.
Ela saía para o trabalho cedo, Benjamin abaixava os olhos como um biggle. Ela o pegava no colo, reservava sempre dez minutos com ele enquanto tomava a segunda xícara de café olhando do alto do décimo nono andar. A cidade já fervia lá fora; o barulho, intenso. Ela não gostava de se separar de Benjamin, como as mães não gostam de se separar de seus filhos, mas não havia outro jeito.
Benjamin era muito mimado. Ela só o alimentava com alimentos orgânicos, só o tratava com homeopatia, e ela mesma dava o banho semanal -- imagine, deixar Benjamin na mão daquelas pessoas que maltratam os pobrezinhos?!
Todos os dias, à tarde, Benjamin dava uma longa caminhada de uma hora pelo bairro. Nada de babás de cachorro, que simplesmente parecem zumbis com braços estirados e amarram os pobres num poste de metal qualquer para namorar, falar ao celular, ir tomar um café, fazer o trabalho da faculdade ou da escola... Não! Benjamin era poupado dessas invenções da modernidade.
Uma antiga amiga dela aposentara-se muito cedo. Às vezes um cinema, um café, uma viagem de excursão às Cataratas do Iguaçu juntas... Era tão bom ter alguém naquela cidade hostil. A amiga um dia reclamara que se sentia sem função, ficava só em casa, os filhos quase não lhe telefonavam. Ela então ofereceu a ela se ela não gostaria de ganhar para levar Benjamin todas as tardes para um passeio de uma hora, e quando ela viajasse para visitar a mãe, se ela também não gostaria de ganhar para fazer a mesma coisa e ir no apartamento alimentar Benjamin, dar água... Claro que era pagaria mais do que se paga normalmente a um hotelzinho, ou às pessoas que passeiam com cachorros.
A amiga aceitou. Pronto, a vida se encaixava nos trilhos para ela. E para Benjamin.

No fim de semana, a vida se resumia ao banho matinal, aos passeios com Benjamin, longos, demorados. Depois, supermercado: Benjamin ficava lá fora, sentadinho, esperando. Latia apenas para outros cães. Voltavam, almoço, dormiam à tarde. Saíam para alugar um DVD na bissexta locadora que ainda existia no mundo (nada dessas tecnologias de baixar filmes, netflix...); ela aproveitava para conversar com o dono da locadora: amenidades e dicas de cinema. Seguiam pra casa, um lanchinho, ele se acomodava ao lado da cama, ela entrava embaixo do edredom que comprara numa megaliquidação no Brás, quentinho, fofo; DVD. Ela sempre dormia antes do final, Benjamin dormia o tempo todo.

Essa rotina só era quebrada pela vivacidade do vizinho de porta. Bem mais jovem que ela, tinha uma vida intensa -- ela imaginava isso de dentro de seu apartamento. Fazia anos que ele morava ali, mas ela jamais vira seu rosto, só ouvira a voz pela janela do corredor, rindo, acompanhado de amigos, de meninas, de mulheres. Sabia que era mais jovem porque o porteiro, indiscreto, lhe dissera um dia, e numa intimidade que ela considerara audaciosa: "Você viu seu vizinho? Ele chega sempre de manhã, e muitas vezes bem acompanhado... desde que terminou com aquela moça...". Ela fechou o cenho, para que ele entendesse que não queria aquele tipo de contato. Afinal, é preciso que um homem saiba a escala Hichter da dignidade de uma mulher. Não era dada a fofocas no prédio, não era dada a intimidades com moradores nem funcionários.
Mas o que o porteiro não sabia é que, por detrás daquela 'dignidade' toda, sua vida rotineira e muitas vezes sem sentido -- ela sabia -- era temperada por um tipo de voyeurismo, em que não era possível olhar, mas ouvir... Em seus fins de semana sem graça com Benjamin, ele saía de sua caminha para cheirar embaixo da porta sempre que alguém saía do elevador e ia em direção à porta do vizinho. Benjamin cheirava, latia baixinho. Era o sinal para ela. Ela fazia: "Psiu, Benjamin..."
O vizinho abria a porta e ela ouvia nacos de frases: "Oi, gostosa!" (e já imaginava um braço envolvendo um corpo e o arrastando para dentro com força...); "Nossa, você veio toda linda..."; "Que saudade. Entra!..."; "Você me deu um bolo ontem, tô puto, vai embora!" (A gatinha então miava um pouco, fazia biquinho, contava sua história de pescador, e em meio a alguns nãos dele, a porta abria toda, e ela ouvia o estalo dos beijos antes de a porta fechar.). Benjamin sabia já, depois de tanto tempo, que ele podia cheirar e latir, mas nesse momento o silêncio era imperioso para sua dona. Ele ficava quietinho de pé ao lado da porta.
Depois, parede com parede, ela ficava bem quieta, e conseguia ouvir "a vida do outro" que se desenrolava ali, a alguns metros, separada apenas por uma camada de tijolos. Primeiro, havia música, e, muitas vezes, ela ouvia pés coreografando o piso do apartamento dele. Risos, gargalhadas. Muitas mulheres eram discretas, ela nem as ouvia. Ele também era. Mas, às vezes, quando a química era explosiva, ela chegava a ouvir grunhidos, arranhar de garras de gata no cio numa parede, um "gostoso" gritado bem perto dos tijolos, ele jogando sua presa contra uma porta e vários barulhos ininterruptos, ou simplesmente, ambos se encontrando no ápice da colina, num grito recíproco. Outras, podia haver mais gente.
Ela seguia quieta, mal respirava para não perder um lance desse roteiro, e Benjamin também. Era possível, inclusive, entender que, depois, ele ia à cozinha, havia um barulho de copos. Podia ser vinho? Água? Ela não sabia. Mas ele sempre fazia assim... Ela já o conhecia. Era íntima dele. Fazia anos.
Muitas vezes, ela ainda esperava o segundo round, que sempre era menos estrondoso, mas ainda assim tinha impacto nela. Por vezes, elas dormiam lá e só iam de manhã embora; outras iam embora no meio da madrugada. Ele sempre se despedia na porta. Ela podia sentir pela voz e pelo aroma do perfume que entrava pela janela de sua sala como podia ser a mulher. Todos os tipos. Algumas tinham um perfume mais delicado, e falavam baixo. Quase não faziam barulho ao caminhar pelo corredor. Ela então pensava: "Tem estilo".
Todas as vezes, ela se masturbava, durante todo o longo processo. Fingia ser aquela mulher escolhida, e acompanhava o mesmo galope. Imaginava-se na cama dele, e ele pedindo o botão mais oculto do seu corpo. Ela negando, ele forçando, e ela querendo, mas negando. Um jogo, trapaça feminina. Ela então gozava sempre com ele naquele devaneio. Quando elas iam embora, na despedida, na porta, ela ia também. Se sentia uma mulher e tanto sempre. E voltaria, sempre.

Um dia, Benjamin cheirou embaixo da porta, latiu baixinho. Fazia frio, havia garoa lá fora. O perfume que entrou pela janela era diferente desta vez. Houve uma leve e delicada batida na porta. Benjamin dessa vez não latiu, pois ela não tocou a campanhia como as outras faziam. Discreta. Benjamin parecia uma estátua sem sentido. Não sabia o que fazer, fugira da rotina deles. Ele abriu rápido a porta. "Você demorou... que saudade..." E a porta fechou mais rápido que o normal. Não foram diretamente aos finalmentes, como era hábito dele. Ela estranhou... Se levantou da cama, pôs o ouvido na camada de tijolos, não era possível... Ele foi à cozinha, pegou copos ou taças, ela não sabia. Depois ouviu um barulho maior, que devia ser uma garrafa sobre uma mesa ou outro móvel qualquer. Vinho? Será? Mas isso não era sempre depois? Ela se angustiou. Um pressentimento ruim tomou conta. Apurou o ouvido, e Benjamin também ficou desconcertado. Ela ouviu uma conversa. Conversa? Como assim? Nunca havia conversas! Havia sempre música, diversão, gargalhadas. Nunca conversas... Tempo depois, ouviu música. Mas baixa, diferente agora. Ouviu um gritinho suave e baixinho dela. A conversa acabou, e os sussurros começaram. Pareciam uma prece, uma oração. Sentido-se mal, ela não se excitou dessa vez.
Depois de muito tempo, ela de ouvido na parede, ouviu que chegaram ao cume de tudo. Mas foi diferente. Era tudo suave e lento. E silencioso. Não houve segundo round . Não houve copos depois de sexo. Como assim?!
Depois de duas horas, ouviu passos e barulho. Caminharam em direção à porta. Ela ouviu ainda: "Por que você não dorme aqui, sua chata?" Ela respondeu baixinho: "Amanhã é meu rodício, o carro está lá embaixo... " Ele: "Hum... Posso então dormir na sua casa? Aí saio de lá pro trabalho amanhã." Ela: "Vamos logo então, tô com muito sono..." Ele entrou, pegou algo que caiu e fez barulho no piso. A mochila? Roupas? Não dava pra saber.
Saíram pisando macio; trocaram beijinhos na porta do elevador.

Dali a um tempo, quando saía para o trabalho, ela viu na porta do edifício: "Aluga-se". Voltou e perguntou ao porteiro, qual? "O seu vizinho foi morar com a namorada, a senhora não sabia?"

"Traíra", foi o que ela conseguiu elaborar.



quarta-feira, 4 de junho de 2014

Tempo

-- Doutor, vai passar?
-- Se for no corpo, receito um medicamento ou fazemos uma cirurgia, há sempre saída. Se for na mente, encaminho para o psiquiatra, e terapia mais psicotrópicos vão atenuar a angústia.
-- Não é nem um nem outro. -- Uma pontada fez estremecer o tórax.
O médico então interrompeu o exame clínico. O semblante distante, pegou o receituário, uma caneta, rabiscou cinco letras que não era possível ver daquela posição. Dobrou o papel branco timbrado de azul e entregou na sua mão direita.
Os olhos dele mudaram do verde para um tom de cinza-escuro, se desviaram como se perseguissem agora outra coisa, uma lembrança qualquer.

Na rua, o engarrafamento tomava conta da manhã amarela e azul. Crianças passavam com mochilas sobre rodinhas; mulheres saíam do supermercado e jogavam as compras dentro do carro numa urgência sem-fim; os ônibus vinham lotados, lembrando vitrines de pessoas esmagadas; jovens ziguezagueavam chapados para aguentar uma vida incompreensível; idosos seguiam num passo miúdo e cuidadoso em direção ao horizonte.

Abriu a receita e decodificou as letras de fôrma. Todos os seus sensores captaram o signo linguístico. Por fim, numa minitrégua, seu coração condescendeu em esperar.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Trapaça feminina

Ambiguidade feminina

Cromossomo Y,
preste muita atenção
no que vou dizer:
um sim pode ser
um não.
Não enlouqueça
ainda.

Mas um recuo delicado
é sempre
um charme discreto
que quer dizer
um sim certeiro,
mas postergado
para amanhã
ou depois.
Paciência de monge
e encurralará
a presa.

E um não feminino...
Ah esse não feminino...
dito assim suspirado
com as mãozinhas a empurrar
creia:
é sempre um sim
de olhos coquetes,
unhas ferinas de Theda Bara
e falsa estola de vison --

tudo isso disfarçado
de uma falsa inocência
mourisca.

(Sandra Brazil, em 24/10/2011)

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Senhora do destino

Cheguei cansada da rua, já é tarde, estou querendo uma taça de vinho e uma sopa quente. Parei o carro na entrada. O porteiro me conhece há 18 anos já. Ele pede pra que eu espere, tem algo pra me entregar. Eu gosto muito das pessoas que trabalham aqui no prédio, e sempre brinco com eles quando meu humor permite. Este funcionário, especialmente, é com quem mais converso. Ele gosta de cinema, internet, política, programas da Discovery Channel, está meio por dentro de tudo de atualidades, gosta de documentários. Quando tem sobrando alguma mídia de enciclopédias ou de geografia e história, ele se lembra de mim, e guarda e me dá. Também quando tem filmes duplicados ele costuma guardar pra mim. Engraçado uma pessoa que nos conhece tão pouco acabar nos conhecendo de certa forma bem. Pois quando ele me entrega a correspondência de contas ou envelopes com trabalho eu brinco que ele só tem essas coisas ruins pra me entregar... Ele brinca que gostaria de ter coisas melhores, mas "é o que tem". Hoje, ele me entregou um envelope volumoso de uma editora, e eu disse: "Você é mau comigo, só contas e trabalho! Há algum tempo vinham flores e chocolates, até de admiradores secretos, você lembra? Até hoje não consegui desvendar quem são... Hoje, tudo mudou..." E fingi uma tristeza... Ele riu, e me respondeu: "Mas os cheques caem na sua conta diretamente, caso contrário, eu mesmo poderia entregar o pagamento dos trabalhos pra você... " E gargalhamos, pois essa foi uma boa saída dele. Uma pessoa boa, bem-humorada e gentil.
Quando peguei o elevador e cheguei ao meu andar, tocou o interfone e ele me disse que havia mais uma entrega pra mim. Fiquei na porta do elevador no meu andar esperando mais um envelope de trabalho provavelmente... Me embrulhei no casaco de lã e me aqueci com meus pensamentos mais profundos, imaginando que envelhecer tem uma faceta muito boa, que é essa tranquilidade que cai como uma névoa sobre nós, essa vontade de estar sereno na vida e no mundo; mas o outro lado da moeda é que estas surpresas inebriantes do destino são mais raras -- como receber flores de um anônimo... E pensativa me mantive, serena, esperando meu envelope.
Quando chegou, o que havia era uma rosa cor-de-rosa no chão do elevador, e no alto-falante interno o porteiro falou: "Pronto: assim você não diz mais que só recebe contas e não recebe mais flores. O nosso jardim tem essas rosas lindas o ano todo..." Uma rosa linda. Entrei, coloquei no vaso e fotografei. Afinal, as gentilezas são dignas de serem eternizadas.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

A mão do tempo e William Shakespeare - Soneto 64

Soneto LXIV

Vendo que a mão do Tempo desfigura
A tão rica altivez dos dias idos,
Que jaz a torre em terra das alturas
Caída, ou o bronze eterno destruído;
Vendo que o mar faminto um dia ganha
Parte ao reino da praia a que vem dar
E no outro o solo a água lhe arrebanha
E ganha a perda e perde por ganhar;
Vendo que é tão comum mudar-se o estado,
Que o próprio estado lembra uma ruína,
Eis que a ruína me tem ensinado
Que o Tempo leva o amor e o amor termina.
Pensá-lo é dor mortal pois só nos cabe
O bem que nós tememos logo acabe.


Shakespeare, William. Sonetos. [Tradução: Jorge Wanderley]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 158.


Logomarca

Ando pelas ruas nesse fim de tarde bem frio. Gosto de caminhar. Gosto de inverno.
Uma sensação boa: um vento gelado toca meu rosto. Levanto a gola do casaco.
Ao dobrar uma esquina, sob uma marquise um mendigo dorme o sono dos anjos -- tranquilo, incólume, como se não corresse riscos numa cidade brutal.
Olho para cima. O logotipo de um banco desfralda sua luz laranja, e vocifera seus poderes sombrios sobre nós.
O cobertor que aquece o mendigo é também de um laranja-vivo -- logomarca do grito daqueles que não têm voz. Nem vez.

(Sandra Brazil, em 2/8/2011, num fim de tarde escuro e extremamente frio, caminhando pelas ruas de Perdizes...)

segunda-feira, 26 de maio de 2014

No outono, os resíduos

No corpo

De que vale tentar reconstruir com palavras
O que o verão levou
Entre nuvens e risos
Junto com o jornal velho pelos ares

O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo da noite
Agora são apenas esta
contração (este clarão)
do maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.

(Ferreira Gullar)

domingo, 25 de maio de 2014

Melhor esquecer

Um domingo de céu chumbo e garoa fina é sempre um dia feliz pra mim. Me lembro da infância, quando todos detestavam que não poderiam brincar. Eu ficava na janela e acompanhava as sombrinhas coloridas que passavam na rua. Era um espetáculo. Muitos usavam uma capa de chuva que fazia um barulho característico ao caminhar. Eu adorava ficar observando. Essa era a brincadeira. E um sol forte e amarelo crescia dentro de mim.
Adolescente, tornou-se fácil gostar de tardes chuvosas. Os romances ingleses que eu lia descreviam charnecas, fog, céu pesado e cinza, e barras de vestido molhadas pela lama dos campos preenchiam minha imaginação.
Hoje, este céu cinza com chuva miúda me lembrou a pureza da minha infância que procurava sombrinhas coloridas a atiçar um sol ardente, fosse inverno, fosse outono.
Neste domingo em que sou uma mulher, o céu cinza faz vir à tona sentimentos que eu gostaria de esquecer.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Disparada

Para minha mãe

"Prepare o seu coração
Pras coisas
Que eu vou contar
Eu venho lá do sertão
(...)
Aprendi a dizer não
Ver a morte sem chorar
Laço firme e braço forte(...)" (G. Vandré)

Hoje é dia das mães, mas, pra mim, é como outro dia qualquer. Vou trabalhar como todos os outros dias depois do almoço-comemoração, enfrentar a vida como se não fosse "meu" dia e eu pudesse, enfim, ter uma trégua. Angustiada com isso? Não. Onde muitos não têm trabalho ou mesmo objetivo, eu ganho pra fazer o que gosto, consigo ter meus poucos mimos à custa do que faço cotidianamente. Quer coisa melhor? Ninguém me diz: não compre esse pretinho básico, está caro; não faça isso; agora vamos viajar; agora não vamos mais viajar; nós vamos a este show; nosso filho fará tal coisa e não outra. Não. Mas, apesar de ser muito conservadora (e quem não é tendo nascido nos anos 30? E muita gente é tendo nascido ontem...), foi ela quem me ensinou sobre feminismo, naquele seu linguajar direto e sem meneios de fazenda. "Minha filha, nunca dependa de ninguém. Estude, estude muito. Seja a melhor. Assim você nunca precisará pedir nada e nunca ficará presa." E eu, mesmo sendo muito rebelde, tendo muitos atritos com ela, arranca-rabos homéricos, fui seguindo essa "picada" que ela, sem querer, abriu a facão pra mim. Fui trilhando um caminho sem volta; chegou um momento que era impossível recuar: a liberdade tem um preço alto, já diziam, mas eu não recuei quando tive que pagar a primeira moeda. Isso também quem me ensinou foi ela. Que temos que assumir o que fazemos, sempre. Filha de fazendeiros, meu avô construiu sua vida sobre a inteligência e o trabalho, mesmo sem saber trançar as letras. Por isso, ela queria ser advogada, mas, naquele tempo, apesar de terem dinheiro para mandá-la estudar, ela não pôde, porque no pensamento deles as filhas mulheres tinham que se preparar para se casar. Ela se frustrou, mas não desistiu, e se tornou uma das melhores mulheres para "casar": não há um bordado mais bonito do que o dela; seus doces são deliciosos e bonitos de se ver; sua comida, a melhor que já comi; sua casa, até hoje, brilha, e você pode chegar a qualquer hora do dia, ela estará arrumada e perfumada; meu vestido de casamento, foi ela quem escolheu a renda francesa e o casquete, mandou tingir sapatos e meias para ficarem num tom sobre tom. Pena ela nunca ter me perdoado por não ter me casado como ela gostaria, em grande estilo, de branco, festa e buquê. Eu era rebeldíssima, aceitei apenas uma cerimônia sem convites impressos, às 10h30, numa capela, sem festa depois, e sem o branco tradicional que ela queria; acabei escolhendo um salmão-pink, que a entristeceu demais... Mas ao longo da vida, apesar de nossas diferenças, pude com a maturidade observar que nós somos uma caixa-de-Pandora-do-bem da união de nossos pais. Quando florescemos, pode-se ver em nós muitos dos traços deles, nas mínimas coisas: nos gestos, naquela ruga na testa, naquela paciência que você não sabe de onde retira, na sua força de leão que você, por mais medo que tenha, mostra a seu inimigo. Sem dúvida, a minha força, eu herdei dela. A minha pertinácia também. A obsessão pelos detalhes e por ter um entorno bonito ao redor, perfumado, também. A força para o trabalho, tudo dela. Do meu pai, eu herdei uma sensibilidade e uma delicadeza que me levaram a caminhos muito sutis, a observar o mundo com paciência e calma, observar as pessoas e descrevê-las com riqueza de detalhes, escrever sobre o mundo do dia a dia como se fosse as pedras do Taj Mahal, uma riqueza. Mas o que seria de mim sem a força dela? Um papel-arroz delicado que se quebraria diante da crueza do mundo. Então, apesar de nossas diferenças, tentei tirar o melhor dela, colocar em mim, para enfrentar a vida e as pessoas. Para quem me trata com delicadeza e carinho eu devolvo seu Heitor, calmo, paciente, sutil, silencioso, alegre. Para aqueles que me destratam, eu devolvo minha mãe-fazendeira: sobre as patas de um cavalo, eu disfiro palavras que nem eu gostaria de receber. E, muitas vezes, um silêncio que, seria preferível, ser trocado por palavras cruéis. Em nossa vida em família foi sempre ela quem deu o tom. Meu pai sempre concordava. Nós, os filhos, temos personalidade forte. Então, deve ter sido difícil pra ela elaborar isso. Sobretudo eu, a mais velha, a mais difícil, a mais impetuosa, mais cheia de vontade e personalidade. Mas fosse hoje eu teria dito a ela que reparasse bem: como ela poderia pedir para eu ser diferente? Eu sou igualzinha a ela em muitas coisas: "laço firme/laço forte". Foi ela quem me ensinou a guiar a vida assim, segurando firme as rédeas, não deixando que ninguém me conduzisse. Por isso, sempre que ouço "Disparada", eu me lembro dela, da sua infância em que ela aprendeu naquela vida de fazenda a ser firme e forte, a conduzir com o pai boiadas inteiras, a não ter medo de um touro, a cozinhar em fogão a lenha, a dizer não com a facilidade de quem diz sim, a ser dura (mesmo quando seu coração grita para que não seja, eu sei disso), a não mostrar muito sua felicidade (como se isso fosse uma fraqueza), a não chorar diante da morte e da dificuldade (apesar de sua profunda sensibilidade). Aos 78 anos, eu ainda a magino como quando eu era pequena: ela tange a vida como gado, vai conduzindo com laço firme seu destino.
Mãe este texto é pra você. Feliz dia das mães.

Como se faz uma tese

Muito cuidado com o que se pede. O Universo está sempre à espreita, ouvindo seus murmúrios de desejos e quereres. Experiência própria: você fecha os olhos, entra num transe onírico e vagueia naquele território, a vontade de ter algo muito desejado nas mãos. Não se engane. O Universo está ali, tramando, e, quando menos se espera, o "algo" está diante da sua surpresa, e você, constrangido, não sabe muito bem o que fazer com aquilo. Muitas vezes, você percorre as linhas do requerimento de seu desejo, sem especificações. E ele vem genérico demais, para você ter o trabalho de desbastar ao longo do tempo. Portanto, pedidos são como pesquisas e teses de pós-graduação: quanto mais você diminuir o recorte e especificar, melhor.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Sem explicação

Um sinal belisca
o miolo da intuição --
tudo outra vez.

O canto do galo.
O pio da coruja.
O farfalhar de penas.
Só o caboclo sabe do que estou falando.
A castanheira,
do alto de sua beleza, diz:
você da cidade não sabe de nada.
A natureza trará um presente.
A benzedeira percorre com arruda molhada
nosso destino.
A intuição faz plim-plim
e avisa:

o desejo

chega amanhã,

às 16h55.

(Em 16 de agosto de 2011)

Alfama, ginginha e saudades da Maria

Na segunda vez que estive em Lisboa visitei o bairro de Alfama pela primeira vez. Eu não estava bem, minha sinusite deu as caras no frio europeu e com aqueles carpetes nos hotéis...
Eu tinha febre e tossia muito, aquela tosse seca de sinusite. Os taxistas me ofereciam para parar em farmácias e comprar alguma pastilha, aí eu explicava que não adiantava, estava tomando antibótico e tinha que esperar passar o processo infeccioso mesmo, aí a tosse passaria.
Nesse dia da visita a Alfama, eu estava péssima, meus olhos estavam de farol baixo, a febre estava alta apesar do antibiótico e do antialérgico e anti-inflamatório. Antes, eu havia ido ao museu do azulejo, que é lindo, mas a visita tinha sido sofrida, apesar do brilho dos murais belíssimos... O museu do azulejo em Lisboa é um passeio ótimo, pena meu estado, pois a cada lance de escadas me lembro de uma sucessão convulsiva de tosse. Mas sobrevivi e adorei ver aquela beleza toda.
Depois, foi a vez de Alfama. Aquelas ruas tortuosas, em forma de labirinto. parece que você não vai sair em lugar nenhum. Mas de repente, pronto, você depara com um cantinho belíssimo, antiquíssimo, aquelas casas históricas. Tudo é medieval ali, além dos labirintos de suas ruas. Além da minha febre, que me fazia já sentir calafrios e andar em círculos por si só, a própria geografia do bairro ia me arrastando mais e mais para o destino minotáurico.
Bem, escureceu de repente. Era uma rua bem estreita. O sol não chegava ali.
Havia uma portinha numa esquina. Era uma espécie de boteco, mas não cabiam duas pessoas lá dentro sentadas, só se fosse em pé. Entramos. Foi pedida uma ginginha, um aperitivo português feito a base de cereja. Eu não pude experimentar, foi uma pena, eu que gosto de experimentar tudo. Mas a febre me consumia nas profundas, eu me sentia mal, e uma dose de álcool não me faria nada bem, pensei. Fiquei só observando.
Havia um balcão pequeníssimo. Do lado de cá uma mesica de nada e um banquinho. Comecei a ver tudo meio escuro. "Vou me sentar", pensei... Puxei o banquinho. A ginginha foi sendo sorvida a pequenos goles, como faz o bom bebedor. E a conversa deu seu start com a mulher que se postava ali detrás do balcão e tinha olhos bem grandes e escuros. Seu nome: Maria. Maria, como meu segundo nome, boa neta de portugueses que sou, não poderia ficar sem o nome da mãe de Jesus.
Pois a ginginha foi descendo lenta. E a conversa com a Maria também foi rolando solta. Maria foi contando que desde menina acompanhava a avó na cozinha de um restaurante. Dali foi um passo para, mocinha, ser a cozinheira de um restaurante de Alfama. Ela contou que as pessoas chegavam lá cerca de 22h e diziam: "A Maria ainda está aí... Só vamos comer se ela ainda estiver na cozinha". Pois ela que estava pronta para ir embora, punha de novo o avental, aquecia o fogão, e só pelo prazer de cozinhar e atender seus fregueses começava tudo de novo... Foram anos assim segundo ela.
Maria contou que aprendeu com a avó a escolher os melhores ingredientes. Ela disse, com aquele sotaque português que não sei imitar: "as cebolas, só compro as portuguesas, são as mais caras, mas as espanholas, por exemplo, parecem feitas de plástico, elas desfolham quando vamos fritar".
Eu, meio tonta no banquinho, fui registrando as histórias da Maria, e mais uma ginginha escorreu no copo. O copo foi esvaziando de novo, e a Maria foi nos contando agora suas histórias familiares. O bebedor de ginginha, atento, pois é um ótimo escutador de histórias de balcão.
Ela enfim havia se cansado e deixado o restaurante. Abrira então aquela bodeguinha onde servia os turistas que visitavam Alfama. Ali não dava para servir comida, porque era muito pequeno, apenas bebidas e alguns salgados. Eu perguntei: que tipos de salgado. Aí ela me mostrou um salgado típico, as pataniscas. Pedi um, quem sabe um pouco de sal me faria sentir melhor daquela zonzeira. Dei o primeiro nhac, era realmente uma delícia, feito de bacalhau e massa e frito. Ofereci a meu companheiro de viagem. Nhac. Também gostou.
Maria então nos contou que agora, para poder exercer sua arte da cozinha, convidava os familiares e amigos no fim de semana e servia suas deliciosas receitas, aprendidas com a avó.
Maria devia ter minha idade, ou até ser mais nova, mas já tinha filhos adultos e netos. É uma portuguesa muito bonita de cabelos e olhos escuros. Mas parece cansada e infeliz. Em apenas um momento, mencionou o marido que estava no andar de cima; percebi os olhos de Maria ao mencioná-lo, foram de um sofrimento acumulado profundo. Meu namorado então me abraçou com um carinho canceriano, percebeu que eu estava cansada e abatida no meu estado físico. Ele sorriu e falou a palavra mágica: San-San. Apesar das deliciosas histórias naquele cantinho de Alfama, naquele recorte no tempo, precisávamos ir, era preciso encontrar um restaurante de verdade e almoçar de verdade.
Nos despedimos de Maria, mas a vontade era ficar ali, na ginginha, nas pataniscas, de pé, no banquinho, ouvindo até de noite suas histórias um tanto melancólicas mas sedutoras -- afinal, ela é portuguesa! Mas essa foi uma das coisas de minhas viagens das quais jamais esqueci.
Tantas coisas acontecem. Conhecemos lugares, restaurantes, bares, pessoas interessantes, coisas incríveis...
Ora, pois! Eu tenho muita saudade daquela tarde em que eu descobri o que é uma ginginha, uma patanisca, mas, sobretudo, me ficam na memória as histórias e as saudades dos olhos escuros e marcantes de Maria.

(Em 11 de agosto de 2011)

Aviso do tempo

O tempo me mostrou hoje, há poucos minutos, suas garras de metal.
Eu estava cantarolando quando atendi a um telefonema e do outro lado da linha alguém disse:
"Senhoooora (é assim, bem marcado, pra você entender que envelheceu, apesar de se sentir ainda jovial), a Caixa "estará disponibilizando" para a senhooooora um seguro de vida com inúmeros benefícios, inclusive um auxílio funeral, para garantir um apoio à família nesse momento tãão difícil, um auxílio cremação..."
Exatamente nesse momento, a voz da tele-sei-lá-o-quê se tornou distante como num filme...
Não respondi.
Pus o telefone no gancho.

Eu não estava pensando em morrer.
(Em 27 de julho de 2011)

A chapa é quente

Eu deixei os jardins de Versalhes, uma sensação estranha. Tudo tão lindo, mas algo me revirava o estômago. Meu francês estranhamente estava na ponta da língua e afiado. Que estranho, tudo muito esquisito. A simetria daquele lugar começou a me dar engulhos.
De repente, como num filme, outra cena: eu estava de joelhos, as mãos presas, uma Marie-Antoinette sem ser, pensando em português, falando em francês. Surda, eu só via uma multidão, bocas bem abertas gritando sem som. A guilhotina tinia no alto, rasgando o vento com sua lâmina afiadíssima. Uma gota finíssima correu pela lateral do rosto. Era assim que se sentia um condenado então...
Esperei a lâmina descer e sabia que seria tudo muito rápido. Num átimo, pensei na minha filha, nos meus pais, no meu trabalho, na minha casa deliciosa, nos meus livros, no amor, nas viagens que ainda poderia fazer, em tudo que ainda poderia ter e viver. Por que eu estava ali? Por que me chamavam por outro nome?
Eu não podia me mexer, mas senti que a ordem fora dada, a guilhotina iria descer sobre meu pescoço. Não! A multidão foi ao delírio, como nesses campeonatos de luta livre, eles queriam sangue. Fechei os olhos bem apertados. Eu pensei: que seja breve.
O som do Nokia tocou no criado-mudo... Atordoada, atendi.
-- Dona Sandra Brazil?
-- Sim, sou eu...
(Mas eu não era Maria Antonieta? Meu pescoço não estava por um fio? A multidão não clamava por sangue e justiça?)
-- Queria confirmar sua consulta para amanhã, às 10h30...
Salva pela chatice da cofirmação da consulta médica, me levantei disposta com aquele telefonema.
Afinal, não ser um personagem da história francesa havia me livrado de uma bela "chapa quente" naquela manhã.

(Sandra Brazil, em 26.8.2011)

quarta-feira, 30 de abril de 2014

As marcas da estrada

Chegar aos 50 anos não é o "uó" como eu pensava. Não. Talvez seja para quem vê na decadência das células, núcleos, epitélios, cores e toda parafernália corpórea algo irresgatável. Não para mim. Nas fendas do corpo eu reencontro raízes e a construção da minha vida e da minha personalidade. A eterna marca de expressão entre as sobrancelhas está ali desde adolescente: preocupada com as notas das provas, depois com o vestibular, chegar no horário em casa para não levar aquela bronca, preocupada se meu pai deixaria eu ir àquela festa, e mais, se deixaria eu ficar até altas horas como eu gostaria...
Ela foi ficando mais marcada ao longo da vida: a crise existencial para abandonar a primeira faculdade, e depois a crise maior para abandonar a segunda faculdade, de medicina, e seguir o curso de letras. Ela se aprofundou. Mais tarde cuidar de uma pequena linda, fofa, delicada, que eu não queria que o mundo arranhasse com suas garras de dragão. Tentei ao máximo protegê-la das lanhadas da vida; muitas vezes consegui, outras não. Nesse processo, a marca de expressão se tornou uma leve ruga, que me dava a aparência de uma pessoa séria. A filha foi crescendo, eu fui amadurecendo, e o tempo foi se incumbindo de vincar a minha marca mais conhecida. Hoje, a tal marca carrega minha expressão. Quando fui à dermatologista há algum tempo ela me disse: se lhe incomoda, colocamos um tico de botox, ela continua aí entre as sobrancelhas, sua marca, mas ela se atenua para evitar esse seu ar de cansaço. Meu coração acelerou. Não estou preparada para me separar das minhas marcas. Elas sinalizam no meu corpo um caminho, assim como placas sinalizam uma estrada. Se eu tirá-las, as pessoas se perderão em mim...
Chegará o tempo que o incômodo será tanto, que talvez eu atenue umas marcas, mas sem tirá-las jamais. Quero que elas continuem a me lembrar quem eu fui.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Aconteceu naquele dia

Era 4 de novembro de 1987, e fui à USP fazer uma prova de literatura francesa, prova bem difícil e complexa. Caxias que eu era, para não ter que refazer o semestre, pedi a todos os professores se poderiam antecipar trabalhos e provas para que eu não perdesse o semestre. Como eu era uma boa aluna, deu certo... E como dei conta não sei, mas fazia natação para gestantes, fazia curso para pais de primeira viagem, fazia Aliança Francesa duas vezes por semana, fazia faculdade de manhã, e ainda saía pra dançar com minhas amigas à noite. Além de tudo isso, estudava duplicado para deixar tudo fechado naquele semestre (só fiquei em recuperação em duas matérias, porque Isadora nasceu uma semana antes do que imaginava, e estas provas não consegui fazer). Bem, eu fui fazer a prova de francês, a professora Cecilia me disse que seria melhor fazer na sala dela, que ela precisava corrigir provas, fazer burocracias. Lá fui. Durante a prova, que foi logo depois dessa foto, eu comecei a não me sentir muito bem, como se eu tivesse com uma cólica menstrual. Por mais advertida que eu estivesse, por mais que estivesse bem orientada por meu médico, e tivesse feito cursos de como seria quando entrasse no processo de parto, eu era apenas uma menina de 24 anos, distraída, aérea, focada nos estudos, que não ouvia muito os sinais de seu corpo. Pois eu fui até o fim da prova de Cecilia, e a nota foi excelente. Me lembro bem disso. Mas aquela coliquinha estava muito chata. Fui dirigindo para casa. Pra se ter uma ideia de como eu era aérea, à noite meu ex-marido falou: "Sandra, você ainda não tem camisolas para levar pra maternidade, não é melhor comprar?" Falou assim meio receoso, porque eu poderia achar que ele estava se intrometendo nas minhas coisas, e então eu poderia ficar brava... Eu falei "vamos". Às 6h da manhã, acordo com a materialização de tudo aquilo: o tal tampão. Não me senti nervosa, nem ansiosa. Fui tomar um banho, eu mesma liguei para o médico relatando o dia anterior até aquele momento. Calma, fiz um pedido a ele: "Dr. Motaury, por favor, não esqueça de levar aquela linha de sutura que não é preciso tirar os pontos depois..." (Este tinha sido um tópico debatido nas consultas, meu medo de pontos, agulhas etc., retirada de pontos... Afinal, eu havia abandonado um curso de medicina por não suportar essas coisas... Ele me disse que havia a linha de sutura que o organismo absorvia, que eu ficasse tranquila. Era só eu lembrar no dia que ele levaria.) Depois de combinado tudo com o médico, fui chamar o pai de Isadora, que até então estava dormindo. Eu disse: "Então, está na hora, já avisei o médico e minha mala está pronta, é só você se arrumar e irmos pro hospital." Jamais vi o pai de Isadora nervoso durante todo o tempo em que estivemos casados, exceto nesse momento. Ele se levantou como um raio, quando foi se vestir, todo atrapalhado e nervoso a calça se rasgou de cima abaixo, e eu acabei gargalhando... Ele não riu e pediu pressa pra mim, e eu disse: "Calma, eu não estou sentindo nada." Eu sou uma pessoa tensa, que tenta se controlar o tempo todo. Mas nesse dia uma paz e uma calma tomaram conta de mim por completo. Acho que eu sabia que estava para ser presenteada pelo Universo com o que me faria crescer, ser verdadeiramente feliz e me tornar alguém muito melhor. Bem, nesse dia, às 19h40, veio ao mundo uma menina, que ganhou o nome de bailarina. Sou grata aos deuses e ao Universo que ela tenha sido destinada a mim.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Sobre o doce sabor de envelhecer

"Os sonhos não envelhecem (...)" (Lô Borges)

Eu era muito magra, vestia macacão jeans e a bolsa era feita de algodão... Sempre tinha um livro debaixo do braço em caso de filas de ônibus ou de cinema. Não me apertava em caso de esperas longas. Eu lia vorazmente. Usava óculos, mas vivia sempre em outro mundo, sempre distraída no rodamoinho das histórias dos livros, das peças que via e do cinema que assistia. Eu absorvia aquilo tudo no corpo. O mundo era pouco pra mim, e eu fazia tudo ao mesmo tempo agora, e dava conta de ser as coisas de que gostava: eu queria ser livre, queria viver além das fronteiras, queria viajar países, estudar o máximo possível, e amar, e amar. E mais que isso: eu tinha sonhos. Inúmeros. Infindos e infinitos sonhos meus e de uma geração. Em meio ao turbilhão que era viver entre a ditadura e seus restos, a pseudoanistia, as mudanças sociais, a liberação feminina, eu ia caminhando firme e rápido. Eu imaginava que não iria envelhecer, porque eu tinha dentro de mim uma força e uma energia capazes de um moto perpétuo. Me imaginava aos 50, 60, muito jovial. O tempo, o desenhador do destino, me trouxe pelas mãos até aqui, e agradeço a Cronos ter-me concedido esse lapso (sim, porque uma vida é muito pequena) para presenciar tantas coisas. Para uma mulher, numa sociedade machista como a que vivemos, eu consegui exercer a liberdade que gostaria, que eu sonhava quando era adolescente. Queria ser uma mulher livre e independente; eis-me aqui ao lado de outra mulher que pude educar para ser livre a seu modo também. Queria estudar, ler, viajar, e a vida me permitiu todas essas coisas. As fronteiras dos países para mim são como as linhas Corrente: cruza-se muito facilmente para o outro lado, e aquele povo é nosso irmão, independentemente da diferença de costumes. Amar semprel, porque sem amor é impossível viver. Algumas coisas não foi possível, mas quem disse que podemos ter tudo que queremos? Eu tenho muito. O que tenho não é material. O que tenho está dentro de mim: tudo que vi e aprendi. Eu tive o privilégio de ver minha filha crescer, de poder estar próxima dela quando decidi que era assim que eu queria fazer. Eu que jamais quis ser mãe, ganhei um presente: Isadora me trouxe alegria, me trouxe centro, me trouxe sua presença delicada para tornar minha vida melhor. Pensando em todas essas histórias, o que dizer de envelhecer? Numa sociedade cada vez mais consumista e egoica, difícil não falar da aparência. É estranho sim, e por que não dizer triste, ver o corpo se transformar em direção ao declínio. Por mais que nos cuidemos, por mais que sejamos vaidosos. O corpo vai construindo veios e afluentes: suas marcas. Mas pra dizer a verdade, ao longo desse processo, o que mais tenho pensado é naquela menina de 14 anos que, de macacão, carregava um livro para o caso das filas. Não porque queira voltar a ser o que era. Não. Mas porque aquela menina tinha sonhos, inúmeros, infinitos. A minha vantagem em relação a ela são duas. Hoje eu sei que aqueles sonhos que ela devaneava são possíveis e realizáveis (ela não sabia...); aos 51 anos, vivendo sempre com esperança a cada manhã, a cada infortúnio ou a cada alegria, posso dizer com conhecimento de causa: os sonhos, meu bem, não envelhecem. E esse sabor é doce.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Quando a vida pede um táxi: destino

AS COISAS SELVAGENS

-- a firme montanha
o mar indomável
o ardente
silêncio --

em tudo pulsa e penetra
o clamor
do indomesticável destino.

(Orides Fontela)

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Outono



Dia de outono,
sol frágil e delicado faz o degelo.

Aquecido,
o coração quer mais.
E há de ter...

(Do minilivro 4a Estação)

Aos 15

Em 1977 eu tinha 15 anos. E sonhos. E sonhos. E um olhar que cruzava fronteiras e atlânticos, para além do desejo, para além do possível. Além de pegar forte nos estudos, ainda arranjava tempo pra ter uma vida cultural intensa com os amigos, e claro tinha namorados. Desde os 13 eu frequentava teatro, cinema e shows de música. Mesada curtíssima. Então tinha que recorrer a vários subterfúgios possíveis na época. Os espetáculos, depois de percorrer as casas de shows e teatros de São Paulo, iam depois em turnê pelos teatros das bibliotecas da cidade. Era aí que eu entrava. Sempre antenada na programação, assisti a peças premiadas por preços possíveis, shows que não poderia ver num teatro comum, vi palestras sobre literatura de grandes escritores falando de seu processo de criação, alguns deles já se foram, como Gianfrancesco Guarnieri. Ali também fiz cursos de história. A Biblioteca era mais que uma biblioteca, ela funcionava como um centro cultural, intenso, vibrante, dali você podia tirar muito para sua vida e seu futuro. Ali se faziam amigos, ali se combinavam passeios, cinema, shows. Pois aos 15, uma noite de verão, eu saí do clube depois de um dia de sol e muita piscina. Soube que haveria um show do Belchior na Biblioteca que ficava diante da praça do Largo do Rosário, bem em frente da Capela dos Escravos. Cheguei em casa, tomei um banho rápido, comi depressa, e pedi se meu pai podia me levar na Biblioteca. Era perto, eu costumava fazer aquele caminho a pé todos os dias na volta da escola, mas à noite era um pouco escuro e vazio. Meu pai então me levou e combinamos dali uma hora e meia ele me buscar, como sempre fazia com sua Brasília branca... Cheguei na bilheteria e a triste notícia: ingressos esgotados. Só se alguém chegasse para vender. Bom, esperei, esperei, esperei.... Quando estava quase na hora do show, desisti. Saí então para o jardim que ficava em frente. A noite estava linda, muitas estrelas, uma noite quente. Achei que não seria nenhum problema eu esperar ali sentada no jardim. Pena não assistir ao show do Belchior, que era um compositor da minha geração que tinha canções ricas, filosóficas, de protesto, de amor. Eu me sentei, e tinha na bolsa um livro, seria fácil esperar aquela hora e meia. Mas de repente me deu sede, e não havia um bebedouro lá dentro. Mas íntima que eu era daquele lugar me lembrei da torneira do jardim, me levantei rápido e fui tomar água. A torneira era baixa, mas na doce articulação da juventude, era simples descer até o chão. Quando me levantei, a boca molhada, fui fechando a torneira. Mas senti um alvoroço diferente. Algumas pessoas se fecharam ao meu redor. Era o próprio Belchior que estava ali, diante de mim, parado, olhos brilhantes, já vestido em seu figurino de palco, me olhando e não me olhando. Porque seus olhos estavam ali em mim, mas sua mente não... A equipe dele meio me fechou no meio da roda para protegê-lo. E eu fiquei ali, de pé, as mãos molhadas, e só pensando que eu estava diante do homem que havia escrito a letra de “Divina comédia humana”, "Velha roupa colorida", “A palo seco”, “Como nossos pais”, “Galos, noites e quintais” e tantas outras que marcaram minha adolescência. Não era o intérprete, era o poeta. Eu não me movi, fiquei totalmente muda, estátua. Ele ficou imóvel, de frente para mim, e eu de lado mas meu rosto podia vê-lo. Mas ele, como eu disse, me via, mas não me via, o ritual o levava pra longe longe, talvez por desespero, talvez por puro desejo, mas seu corpo apenas jazia ali. Sua alma estava noutro lugar, muito mais prazeroso. A equipe se alvoroçou, eu percebi, houve um pequeno desespero, o show estava atrasado, o público estava fazia tempo esperando... Eles disseram: “Belchior”... Muito baixo, como num mantra. Ele então olhou para baixo e para a direita, a um palmo de si, e me dirigiu aquele olhar de um átimo de lucidez, se despedindo. A trupe aliviou, era o sinal de que podiam todos seguir. Eu me mantive imóvel ainda, ao lado da torneira, entre as flores do jardim. Na porta de entrada, ele ainda parou – equipe tensa – e quis olhar as estrelas daquele céu de verão. Entrou. Dali a alguns minutos ouvi gritos lá de fora e a canção que me seguiria por toda a vida: “Divina Comédia Humana”. Dali a uma hora e meia, o show não havia terminado, mas seu Heitor Brazil estacionou sua Brasília branca diante da biblioteca. E eu fui para casa e guardei em minha caixa mais esta lembrança.

A força da natureza


Você já reparou no percurso da natureza? Ele não estanca, não interrompe. Não importa o que aconteça. De um solo arrasado, pequenos brotos surgem; mostram que o mundo tem seus impérios, ducados, latifúndios, ditaduras, mas a natureza é magnânima, e a despeito de intempéries, guerras, conflitos, não há terra destruída que não traga dentro de si frutos que a qualquer momento vão se mostrar.
As plantas aqui em casa são abençoadas por um combo de boas doses de sol, vento, janelas grandes e meus cuidados constantes. Mas ainda assim há um não sei quê de misterioso que faz crescerem aqui mudas que não crescem em quintais nem em lugares de terra muito fértil. Pois nestes vasicos que ponho nas janelas, tudo vinga. Como se fosse um pequeno milagre no deserto que são estes pequenos apartamentos nas metrópoles hostis em que vivemos. Qual é o segredo? Não sei. Pois crescem as gipoias, a árvore da felicidade, o lírio branco, a pimenta vermelha, a miniespada de são jorge, o hortelã, o arbusto de arruda, inúmeros vasos de suculentas, duas orquídeas, flores de maio, pés de tomate, algumas trepadeiras e um pé de melão. Além disso tudo, creiam, tenho quatro pequenos arbustos de umbu. Como eles vingaram aqui, em vasos, é um mistério, mas vingaram e estão crescendo fortes e verdes, subindo pro céu em direção ao sol. Há algum tempo plantei, e a despeito de meus dias, fossem eles bons, fossem eles tristes, estivesse eu alegre ou infeliz, cabisbaixa ou saltitante, o umbu foi subindo, dia a dia, passo a passo na alquimia de sua fotossíntese. E hoje ele está grande e fortaleceu, a ponto de eu ter que colocar num vaso maior, pois o umbu não é mais uma criança, está pedindo mais espaço.
Nós nos apegamos a nossas emoções, como se fossem únicas e inesgotáveis. Atingimos os píncaros e descemos ao fundo do lodo, aplicando uma importância que é um conjunto vazio. Mas somos insignificantes diante da grandeza da vida. Recorte um quadro de um filme: é isso que você é no grande filme do mundo.
Tanto é assim que o umbu cresce em seu percurso vital na natureza. Folha por folha, sobe e faz suas trocas gasosas sem pressa, buscando água e nutrientes lá na raiz, sem se importar com as minhas tristezas ou minhas alegrias. O umbu se desenvolve sem levar em conta meu sucesso ou meu fracasso nesse tempo todo.
O umbu segue vivo e cada vez mais forte.
A despeito de mim e de você.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Nada de novo no front

Dói. Mas a loucura cria uma carapaça imaginária. Isso não é novo -- essa é a anestesia dos dias. Um embornal chamuscado e antigo guarda meu arsenal de guerra. Ali há tudo para aguentar viver. Eu aprendi com as estações e as marés. Não que eu perca porque não possa. Não. Eu posso. E dói saber desse poder. (Mas como um viciado, bate a loucura, eu sumo por um beco escuro, alucino, e não dou conta das coisas que me são mais preciosas...). "Perder? Não é [mais, há muito tempo] nenhum mistério."

A arte de perder

A arte de perder não é nenhum mistério
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subsequente
da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. Um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo, que eu amo)
não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser um mistério
por muito que pareça (escreve) muito sério.

(Elizabeth Bishop; tradução de Paulo Henriques Britto)

Soneto 61 de William Shakespeare

SONETO 61

É teu desejo que esta imagem tua
Me venha à noite as pálpebras abrir?
Que meu descanso e lassidão destrua
Na sombra incerta em que te vejo a rir?
Será que é teu espírito que envias
De tão longe de casa a me espreitar,
A ver se em erro ou ócio acha meus dias,
A fim de teu ciúme alimentar?
Não! Teu amor não é tão grande assim!
É meu amor que os olhos me arregaça,
E, verdadeiro, a meu torpor põe fim,
A especular de tudo que te passa;
Pois que te vejo a andar a céu aberto,
De mim distante e tantos outros perto.

William Shakespeare
(tradução: Gil Pinheiro)

quarta-feira, 26 de março de 2014

De cara com o crime

O sol queima meus olhos. E não consigo desviá-los do corpo estendido no chão. Eu estava em alta velocidade. Fui avisada, tantas vezes, do perigo de dirigir de forma insensata, mas não ouvi. Em muitas das curvas mal desenhadas, eu derrapei e pus em risco quem estava comigo; mas fui descuidada, achando que a vida estava cuidando à distância. Confiei na sorte. Pois agora, num de meus piores deslizes, típicos do meu egoísmo, atropelo um corpo querido e o transformo em farrapos. Tamanho o impacto, ele se torna algo que desconheço. Seria essa obra a marca da minha maldade? Algo tão precioso atirado no asfalto sujo e quente. Agora, de frente para o crime, só tenho lágrimas, arrependimento e dor. O sol que queima me lembra o sol do Estrangeiro. Desplugada do possível, não presto socorro à vítima, pois não me permitem. Meu respeito é entender. Só o que me resta é seguir em frente apenas com os cacos que sobraram, e tentando reinventar. (Algo me puxa para trás: aquele corpo quente, que ainda pulsa sobre os estilhaços, esse calor eu jamais vou esquecer.) Ainda assim sigo: entre os cacos que recolhi, levo comigo um coração.

terça-feira, 18 de março de 2014

Concerto

Um dia, há muito tempo, ele chegou atrasado ao nosso encontro. Eu não sabia. Ele não sabia. Mas era um encontro marcado. Havia uma bicicleta caída no gramado. O script era roubarmos e fugirmos juntos, pedalar pela vida. Eu chegara cedo à sessão censurada e proibida. Míope, aterrei meus óculos bem lá na frente para assistir. Ele só chegou muito tempo depois, atrasado, como sempre, conseguiu lugar na última fila. A bicicleta ficou esquecida. Eu assisti toda a sessão, caxias. Ele sumiu por um beco qualquer, nos perdemos.
Os ombros esbarraram nas livrarias, nos cafés, nas filas de cinema, mas não sabíamos que a vida é um sorvedouro. Despercebemos e seguimos cursos e fluxos, e abriram-se sendas.
Muito tempo depois, tentando fugir do sorvedouro atroz, ele pinçou um pôr de sol que eu lamentava numa tarde de outono. Deu de presente a distância. Sem sequer saber do gramado, da sessão proibida, da bicicleta, do tudo que o acaso concertara em suas mãos.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Navalha sob a carne

Palavras podem ser armas. De repente elas lanham a sua pele, e pronto. Você está marcado para sempre. Mesmo que a cicatriz feche, lá dentro os pontos tamborilam, lembrando você o tempo todo das letras que o feriram.

Dias de ressaca

Eu sempre comparo a vida ao movimento das marés. Tem dias que o mar está pra peixe, e o sol brilha e todos os peixinhos vêm à superfície dar o ar de sua graça. Há dias de tanto encanto em que é possível mesmo imaginar que uma sereia passou por ali, e o mar reverencia a beleza e a sedução. Há dias raros, aqueles que cada um de nós guarda dentro daquela caixa oculta; algo que só nós sabemos, aquela lembrança única, e só de vir à tona, é tanta emoção, que é melhor tampar a caixa, e guardar tudo aquilo a sete chaves de novo. Os segredos de todos nós formam essa maré das grandes emoções do mundo.
Mas há dias de maré baixa, dias difíceis, dias de ressaca, como Machado descreveu os olhos de Capitu. Em dias assim, o estômago fecha, não há comida deliciosa que desça, não existe um doce que apeteça, sequer o vinho abre espaço nas vontades. Nesses dias, parece que há uma ferida dentro da gente, e que nunca vai fechar. E por mais racionais que sejamos, não há pensamento racional que retire este gosto amargo de ressaca e cabo de guarda-chuva de dentro de nós. Nada se bebeu, mas é como se fosse um porre homérico: o mal-estar sem-fim.
Em dias de ressaca, eu sempre peço que se atenue a dor, porque em mim tudo ou é alegre demais, ou dói demasiado, é tudo muito intenso em mim. Em dias assim peço aos deuses do Olimpo que me enviem Hermes e que ele traga consigo além do frescor da sua viagem alada uma boa surpresa. Pode ser uma coisa simples: uma boa notícia, uma carta, um bilhete, um telegrama, um e-mail, um telefonema, um torpedo, uma estrela que caia do céu.