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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Ainda lusa

"E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto
e em minha voz a tua voz."

(Fernando Pessoa)

Alma lusa


Lisbon Revisited (1926)

Nada me prende a nada.
Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número da porta que me deram.

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta - até essa vida...

Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago;
ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus.

Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?

Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...

Outra vez te revejo,
Sombra que passa através das sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...

Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -
Um bocado de ti e de mim!...

(Álvaro de Campos)

(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O tradutor de sentimentos

Por que você, que sequer me conhece, que caminha incólume nas areias quentes da cidade de geografia unânime enquanto eu me debato entre faróis e ambientes fechados em meio à garoa, tão distante do meu universo você trai sentimentos (meus) em seus sonetos?
Tradutor de sentimentos agora? Juramentado?
Esse tradutor-traditore tem um nome: o poeta Paulo Henriques Britto.
Abram-se as cortinas, abram alas para a leveza (apesar da dor).

Sonetilho de verão

Traído pelas palavras.
O mundo não tem conserto.
Meu coração se agonia.
Minha alma se escalavra.
Meu corpo não liga não.
A ideia resiste ao verso,
o verso recusa a rima,
a rima afronta a razão
e a razão desatina.
Desejo manda lembranças.

O poema não deu certo.
A vida não deu em nada.
Não há deus. Não há esperança.
Amanhã deve dar praia.

(Paulo Henriques Britto. Trovar Claro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.)

Durma com essa, se for possível.

Quando a verdade subterrânea é acre e amarga.

Acalanto

Noite após noite, exaustos, lado a lado,
digerindo o dia, além das palavras
e aquém do sono, nos simplificamos,

despidos de projetos e passados,
fartos de voz e verticalidade,
contentes de ser só corpos na cama;

e o mais das vezes, antes do mergulho
na morte corriqueira e provisória
de uma dormida, nos satisfazemos

em constatar, com uma ponta de orgulho,
a cotidiana e mínima vitória:
mais uma noite a dois, um dia a menos.

E cada mundo apaga seus contornos
ao aconchego de um outro corpo morno.

(Paulo Henriques Britto. Macau. Companhia das Letras, 2003.)

Paulo Henriques Brito. Agora, o poeta.

Súcubo

A lucidez de certos sonhos
que nem parecem ser reais,
tal como faz a realidade.

Entra-se neles de repente,
não no começo, sem saber
de onde se vem e aonde se vai,

e pouco a pouco dá-se conta
de que há um sentido nisso tudo,
só que não está ao nosso alcance,

e quando menos se imagina
tudo termina de repente,
tal como faz a realidade.


(BRITTO, Paulo Henriques. Macau. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.)

A força e a delicadeza da palavra: Antonio Cicero

Nuances da palavra. Um poeta sempre sabe o que diz e como dizer. Sorte do destinatário dessa construção de letras, sílabas, fonemas, sinais gráficos, sintaxe, encadeamento, argumentação, arremesso estético, lógica. Não! Alumbramento. Apaixonamento.
Um presente: Amor Marcelo, amado Marcelo.
Com vocês: Antonio Cícero, o poeta.

Declaração

Quantas vezes lhe declarei o meu amor?
Declarei-o verbalmente inúmeras vezes
e o declaram todos os meus gestos tendentes
a você: a minha língua, a brincar com o som
do seu nome, Marcelo, o declara; e o declaram
os meus olhos felizes quando o veem chegar
feito um presente e de repente elucidar
a casa inteira que, conquanto iluminada,
permanecia opaca sem você; e quando,
tendo apagado todas as lâmpadas, juntos,
no terraço, nos consignamos aos traslados
dos círculos do relógio do céu noturno
ou aos rios de nuvens em que nos miramos
e nos perderemos, declaro-o no escuro.

(CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002.)

domingo, 26 de fevereiro de 2012

A ira em Iemanjá e o toque delicado de Elizabeth Bishop

Uma arte

"(...)
Perdi duas cidades lindas. Um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo, que eu amo)
não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser um mistério
por muito que pareça (escreve) muito sério."

(Elizabeth Bishop. Tradução de Paulo Henriques Brito)

Ando mesmo perdendo coisas... E pessoas... E sequer olho para trás para velar o morto quando percebo que perdi... Estranho esse meu comportamento. Eu, que sou tão cuidadosa com tudo, deixei absolutamente de cuidar das coisas perdidas -- sejam objetos, sejam pessoas.
Mas perder, como tudo nessa nossa vida, Elizabeth me ensinou, é uma arte e "não é nada sério"... Esse é o ganho: as coisas devem deixar de ter a importância faraônica de nos atingir como um carro de Tutancamon que nos atropele em cheio. Não! Deixar que as coisas e os fatos contenham em si o acidente natural de se evadirem de nós, o acidente de perdê-los.
Assim disse Elizabeth, sussurrou para mim com aqueles olhos azuis inteligentes de quem aprendeu logo cedo a perder: pai e mãe, a viver em colégios internos, a ter problemas respiratórios -- faltava-lhe o ar, já esta uma grande perda. Apesar da boa herança em dinheiro deixada pelo pai, da cultura, dos estudos, das viagens, Elizabeth deslocou-se e veio morar no Brasil viver um grande amor, uma relação forte, porém cheia de turbulências. Sua companheira no entanto suicidou-se.
No percurso da vida de Elizabeth havia o destino do acidente das perdas. Perder um relógio, uma escala, um avião, um vaucher, um sobrado, uma vila tornou-se algo menor diante dessas perdas enormes pessoais, diante de seu destino.
É difícil perder sem dor, mas é preciso tentar aceitar o percurso cotidiano de nossas perdas, da simples carteira com documentos a uma relação amorosa ou a uma amizade, ou por exemplo, objetos importantes, como os brincos de pérola que foram um presente de um companheiro e que se perderam para sempre em um hotel em Búzios e jamais serão recuperados, e que eram a última lembrança dessa relação.
O acidente estava ali, gritando, mas eu insisti. É preciso aceitar e calar. Isso não é nada sério. O ganho é que se foram as pérolas e seus engates de ouro na bela caixinha de veludo preta. O acidente consumou-se todo assim. Serviço completo. Mas o ganho é que ninguém nos tira a lembrança e a memória e a alegria do dia em que recebi aquele par de brincos: aí entra a arte do engenho de Bishop.
Eu deveria ganhar duas pérolas simples, pequenas, de Natal, e eu estava bem feliz pelo fato. Fomos juntos comprar para que eu escolhesse o tom da pérola e o tamanho que me agradasse. Quando chegamos lá, fui atingida por uma surpresa: ele havia escolhido um par de brincos muito mais sofisticados do que eu imaginava. Pérolas de uma cor vintage, grandes sem ser enormes e no estilo Grace Quelly, aquele modelo clássico usado pela atriz preferida de Alfred Hitchckock. Uma pérola no meio da orelha, a outra fica presa abaixo.... Era isso que ele havia escolhido para mim.
Eu disse que seria mais caro do que o combinado, mas ele argumentou que era o presente que gostaria de me dar.
A lojista os colocou em uma caixa linda de veludo preto, e ali ele ficou até a noite do Natal. Na noite, na troca de presentes, ele veio com a caixinha e me disse: "Agora você pode abrir..."
Coloquei os brincos e não os tirei mais, sempre tendo o cuidado apenas de tirá-los para tomar banho. Eles eram perfeitos para o meu rosto, ou combinavam com meu sorriso quando vejo agora minhas fotos. Como tenho um sorriso muito rasgado e aparente, as pérolas eram a moldura perfeita brilhando ao redor da minha alegria... Eles viajaram comigo para muitos lugares, trabalharam comigo noites adentro, frequentaram editoras para as quais freelei em lugares que sequer menciono, pois não faziam jus a eles, tão sofisticados ele eram... Eu adoro pérolas, porque elas são simples, nisso está sua beleza.
Mas resolvi viajar com eles e os perdi num novo lugar e em nova companhia... Como numa ira ciumenta de Iemanjá, ela os sugou, arrastou, num revés, e numa tempestade os levou para o mar, e jamais os devolverá, como numa reprimenda a meu comportamento, e sequer sei por quê...
Mas não dei importância, porque "perder não é nada sério", não foi assim que Elizabeth Bishop alisou delicadamente sua vida difícil e cheia de perdas...
Foram-se as pérolas, ficaram as lembranças desses dias, das palavras ditas "Você está linda nesses brincos; pérolas combinam com você, são clássicas". Esse é o ganho... O que fica na memória e no coração. E eu me lembro de ter ficado extremamente feliz de os ter ganhado, porque um presente não é apenas um presente; é uma forma de dizer algo que não se consegue dizer com as palavras, e o objeto escolhido muitas vezes é um 'minivocê' que alguém escolhe tentando dar uma definição daquilo que sente, daquilo que você representa em sua vida. Naquele momento, me senti pérola. E uma pérola tem lá suas qualidades de gema, algo que se forma no tempo e que resiste, que se transforma em beleza depois de reagir a um grão de areia, e apesar de bela é dura, mas também muito sensível a qualquer elemento químico. Nada além de água e ar pode tocá-la, caso contrário, a pérola perderá seu viço...
E há aquele brilho, que nunca nenhuma outra gema terá. Fecho os olhos e posso vê-las sobre meu criado-mudo.
Portanto, no acidente das perdas, há ganhos. Eles estão disfarçados na memória, guardados conosco. E só Elizabeth sabe destrinchar, da melhor forma, e nos ensinar a Arte de saber perder...
Iemanjá fique com as pérolas. Comigo está guardado o melhor: a sutileza da memória e dos momentos.

Dica gastronômica: Café Bistrô Amsterdam

Conheci há alguns anos o Café Bistrô Amsterdam com a chiquetésima de minha irmã, a Mary... Ela sempre me apresenta cafés, bistrôs e restaurantes superbacanas. São lugares em geral aconchegantes, pequenos, meio cara de franceses, cozinha contemporãnea -- o que não causa surpresas desagradáveis...
Me lembro do dia em que fomos, o sol estava bem dourado, era um dia de outono. Ela me perguntou se eu não preferia ficar nas mesinhas da calçada. Claro que sim! Em São Paulo, qualquer oportunidade de estar fora de 4 paredes é um bênção sempre...
Pois eu sempre que posso vou ao Amsterdã. Outro dia, fui com minha filha num domingo almoçar. A pedida foi o salmão com ervas acompanhado de salada... Delicioso, e baixas calorias pra alguém que fica controlando como eu!
O vinho em taça também apresenta várias opções na carta para quem não quer abrir uma garrafa. Eu experimentei um argentino indicado pelo garçom, que desceu delicado, apesar de encorpado.
O café expresso é forte e encorpado, e veio curto, como pedi. -- Em muitos lugares, pedir um café curto é como não pedir... É melhor deixar quieto.
Preço, regular, nada ostensivo.
Eu e filhota nos sentamos em uma mesa próximo da calçada, o que nos deu a chance de aproveitar o frescor de lá de dentro (pé direito alto) e a luz deliciosa do verão do dia lá fora.
Algumas pessoas, compram o jornal e vão ler lá no Amsterdã tomando seu café ou fazendo sua refeição.
Ou simplesmente, tomar seu café da manhã ali nos fins de semana... Tudo que um bom paulistano que vive encapsulado e enclausurado quer: liberdade, sol, ar livre...


Café Amsterdam
Rua Dr. Melo Alves, 506 - Jardim Paulista - São Paulo / SP
Tel.:(11) 3061-1676

Quando a alma de um poeta se entristece por causa, por causa de uma mulher





Paul Verlaine, retratado por Gustave Courbet





Este poema de Paul Verlaine tem uma bela versão interpretada por Leo Ferré, que conheço e indico. YouTube: http://www.youtube.com/watch?v=JednOHRZMdY

Ô triste, triste était mon âme...

Ô triste, triste était mon âme
A cause, à cause d'une femme.

Je ne me suis pas consolé
Bien que mon coeur s'en soit allé,

Bien que mon coeur, bien que mon âme
Eussent fui loin de cette femme.

Je ne me suis pas consolé
Bien que mon coeur s'en soit allé.

Et mon coeur, mon coeur trop sensible
Dit à mon âme : Est-il possible,

Est-il possible, - le fût-il -
Ce fier exil, ce triste exil ?

Mon âme dit à mon coeur: Sais-je
Moi-même que nous veut ce piège

D'être présents bien qu'exilés,
Encore que loin en allés ?

Paul Verlaine (Romances sans paroles)

____________________________________________
(Procurei uma tradução, mas a única que encontrei assim na pressa é uma portuguesa, da qual não consegui o crédito. Amanhã tentarei novamente, ou o crédito, ou outra tradução...)

Por causa de alguém

Oh! por causa de alguém, sem calma
Triste, triste estava minh'alma

Jamais, jamais, me consolei
Mesmo depois que a abandonei

E mesmo depois de a minh'alma
Procurar longe dela a calma

jamais, jamais, me consolei
Mesmo depois que a abandonei

E meu coração, tão sensível
Diz à minh'alma: - É, pois, possível

Será possível, ele insiste
Este exílio cruel e triste?

E a alma responde ao coração
Sei lá porque esta ilusão

De estarmos perto, ainda que ausentes
E, ainda que longe, tão presentes?

(Paul Verlaine)

O quereres e as ciladas do amor

*

No post de 27 de janeiro (http://desafoparacleis.blogspot.com/2012/01/na-carne-e-no-osso.html), intitulado "Na carne e no osso" (transcrito no final desta postagem), eu falei do amor, do encontro, do desencontro, do renascer, da estação da espera, que é como um outono arrastando um vento de folhas à procura do sim.
Falei de sentimentos, de aceitação, mas falei também do travo amargo de entender de verdade, na carne e no osso, pela primeira vez, o poema "Quadrilha".
Como num insight, vê-lo assim, traduzido, esquadrinhado nas entrelinhas diante dos meus olhos, como se, apesar de já o ter lido dezenas de vezes ao longo da vida, desde adolescente, dessa vez, sim, o soco tivesse vindo diretamente no eixo da dorsal, e me fizesse dobrar, e entender que sou mortal também nesse qesito.
Foi como se um arpão me atingisse em cheio e eu fosse um tubarão esperto, que tivesse ao longo da vida se esquivado de diversos ataques humanos. Safa, eu me achava. E o tubarão, esperto, controlado, autocentrado, que achava que poderia passar a vida fugindo de tudo e só se esquivando, viu-se pego com um arpão afiado, certeiro, feroz, direto no coração.
"Morri" vendo escoar as letras do poema "Quadrilha", aqueles nomes, um encadeado ao outro, como numa dança macabra, de gente que se busca, e nunca, jamais, nunquinha mesmo se terá tocado ou amado ou se querido um ao outro mutuamente.
O tubarão, que sou eu, foi descendo atravessado pela lança para o fundo do mar, como um bicho que vê toda sua esperteza de anos ser atirada no lixo, e aquele instante é a queda da sua derrota, e um cordão de boas estratégias se rompe para sempre. Tudo aquilo que se construiu para se proteger morre conosco. No fundo daquele mar escuro e sem som. Apenas seu algoz por testemunha...
Por que estou dizendo tudo isso?
Ah. Porque postei a música "O Quereres", e me lembrei que recentemente tive que estilhaçar um querer alheio, da pior forma possível. De um jeito que eu jamais gostaria de ter feito. Mas não me sobrou alternativa.
Eu sou uma mulher-enguia. E só deixo de ser aassim se me apaixono perdidamente, o que ocorre raramente, confesso. Portanto, a qualquer sinal de muita aproximação inicial, me sinto sufocada, cerceada em meus movimentos, vigiada e presa.
Eu adoro namorar, ser amada, gostar, amar. Como no roteiro de Domingos de Oliveira no filme Todas as mulheres do mundo, em que ele se refere à personagem Alice, interpretada por Leila Diniz, eu me sinto "uma mulher solar".
Gosto de me divertir, de amar, de namorar, viajar, estabelecer relações estáveis, manter essas relações de modo cuidadoso, mas paralelamente manter meu espaço e o de minha filha e de minha família resguardados e, sobretudo, de meu trabalho. Essas coisas são sagradas para mim.
Pois eu disse numa postagem anterior que havia sem querer, num dia de outubro, quando cantarolava e passeava numa esquina de Perdizes, dado de cara com meu passado. Sim, isso aconteceu. Eu estava sozinha depois do fim de uma longa relação, e estava gostando da vida de solteira, convites, lugares e pessoas novas. Estava reconstruindo tudo de novo e minha vida tomava um rumo completamente novo. Mas, de repente, o passado arqueou como um felino suas patas diante de mim, e não me deixou passar. E ali algo novo começou imediatamente.
Eu na verdade estava leve e queria apenas diversão e ver no que daria. No início, foi engraçado, jovial, cheio de novidades e fatos inusitados e cheios de vida e sopro e brisa de mar (afinal, meu passado é 8 anos mais jovem, totalmente diferente de mim, belo, os jeans e camisetas delineiam suas qualidades e encimam o All Star, tudo marcado nas artes marciais e fissurado em alta velocidade, enduros, carros, pick-ups, tudo o que eu nunca achei que encontraria um dia)... Mas... uma mulher como eu é "complexa", como me disse um dia Mr. Hide -- personagem de alguns posts do segundo semestre de 2011. E uma mulher "complexa" não se satisfaz com esculturas de taekondô e alta velocidade e 300 km por hora...
Não havia a mínima possibilidade daquilo dar certo, vi logo, mas a figura era do bem e muito querida fazia tempo, e há 17 anos havia ficado um ponto de interrogação entre nós, e ele agora queria um ponto-final. Verdadeiro. Do tipo ter uma casa juntos, quem sabe um filho, um negócio juntos (talvez?), eu me mudar para sua casa com minha filha...
Ele veio com as tábuas escrituradas de nosso futuro e em um mês estava tudo resolvido (por ele). Inclusive, como se mudara para perto de mim antes de nosso encontro (éramos vizinhos e nem sabíamos, havia muito tempo), ele tomou conta de meus horários, inclusive, de meus horários de trabalho. Os porteiros já nem interfonavam mais e blimblom, ele chegava: "Oi , amor", "Oi, Sandrinha! Que saudade.... -- era pleno meio da tarde de sábado e eu tinha 600 páginas para ler e entregar na 2a feira ao meio-dia... :-(((
Eu pedia com delicadeza: "Nossa, mas você nem me avisou que vinha... Podemos falar mais tarde..." A resposta era rápida: "Ah eu estava passando e me lembrei que você gosta de tal coisa, eu comprei e trouxe... Quer tomar um lanche comigo? Só uns 20 minutos? Assim você relaxa um pouco..."
Eu contava até 20, e pedia para deixarmos para de noite aquilo, porque eu tinha que trabalhar. À noite, logo ele me ligava, aí eu dava aquele tenebroso aviso de que não tinha conseguido terminar meu lote de páginas e teria que ir madrugada adentro no trabalho... Não poderíamos nos ver naquele sábado. A pressão começou a ficar cada vez maior, eu me sentindo cada vez mais oprimida e ele começou a me invadir cada vez mais. E a não me deixar trabalhar sossegada.
Fiquei doente um dia, e minha filha ficou me fazendo companhia. Eu pedi que não ele viesse, porque eu queria ficar com ela. Houve um enxurrada do outro lado do telefone. Ele viria me ver, estava muito preocupado comigo etc. Tive de ser dura: "Não venha! Eu não vou lhe receber hoje. Quero ficar só com minha filha."
Foram semanas de "cerco de Madri", um estado de sítio. Comecei a dar sinais de cansaço emocional e já não queria mais sair nem fazer os programas joviais que ele havia me apresentado e eu havia gostado tanto.
Ele começou a apertar o cerco e cada vez mais falava em "quando morássemos juntos, nos casássemos", e aquilo me causava constrangimento, porque eu sabia que aquilo jamais aconteceria. Ao mesmo tempo, por ele ser uma pessoa boníssima, cheia de boas intenções em relação a mim, me paparicando ao extremo, jamais sendo indelicado, muito ao contrário, eu tinha um prurido de pôr um fim naquilo que eu sabia agora que jamais deveria ter começado, sequer para ser leve e descontraído. Era agora um peso enorme para mim carregar aquilo.
Eu queria algo leve, achei que ia me divertir nos carros em alta velocidade, na escultura de sua beleza e juventude e dentes e sorriso lindos e olhos claros como o mar quando fazia calor... Mas não. Tudo que consegui foi alguém jovem que me queria integralmente. Eu quis desaparecer.
O cerco se fechou no dia em que ele me perguntou se eu tinha outra pessoa. Porque eu estava distante. Minha resposta foi curta: "Você deve dar campana na esquina do meu prédio, imagino. Portanto, deve ver que a luz de meu escritório fica acesa madrugadas adentro pois vivo trabalhando, e que jamais saio de carro à noite para lugar nenhum desde que estamos juntos. Portanto, sua pergunta me ofende. Além disso, minha frieza tem que ver com seu comportamento obsessivo. Estou me sentido oprimida, cerceada, presa em minha própria casa. Me deixe em paz!"
As coisas só pioraram. O reveillon chegou e fomos dançar na virada. Eu encontrei amigos na festa. Ele ficou inseguro e foi antipático com todos. Deixei minha bolsa sobre o pole dance para dançar mais à vontade e tomar meu prosecco. Ele a pegou e me disse que a segurasse, era melhor assim. Isso me soou uma ordem. Disse que eu parasse de beber, porque eu estava "alterada" -- eu só tinha bebido até então meia taça de prosecco, e "alterada" significa: eu estava dançando "alegre e solta" na pista, afinal, era ano novo... Bem... Aquilo me irritou de tal forma, que peguei minhas coisas, me despedi gentilmente dos amigos e paguei a conta e saí, e o figura ficou como barata tonta atrás de mim -- "o que eu fiz?"
Na volta, vim dirigindo meu carro. E não acreditei, apesar de tudo que havia acontecido, ele veio comandando freneticamente, como co-piloto: "Vá para a esquerda que esta pista é muito esburacada, vá para a direita porque este carro da frente está muito lento. Aqui você pode ir mais veloz, não há radar. Vamos por este caminho..." Uma Sandra cheia de luz foi aguentando aquilo, mas, de repente, uma Sandra devil freou o carro e gritou com todas as suas forças: "Pare de me dar ordens! Você não é meu dono. Este carro não é seu. Você sequer está dirigindo. Cale esta matraca!! Desça desse carro, AGORA!"
Ele ficou em silêncio por um milissegundo. Se arrumou no banco e pediu desculpas e pediu se poderia voltar comigo. "Pode! Desde que não dê um piu!"
Ele veio em silêncio. Deixei-o em sua casa. Ele tentou pedir algo, mas eu fui embora.
Ainda houve uma tentativa. Como eu disse, me sentia constrangida de dizer "não quero mais", tenho dificuldade com isso. Mas ele mesmo deu o nó em sua forca.
O cerco de Madri foi fechando, e eu sou muito livre para tentarem me cercear. Ninguém conseguiu até hoje. Portanto...
Um dia, ele pediu para me ver à noite, no meio da semana, eu acedi, mas disse que só um pouco, porque eu tinha que trabalhar...
Ele chegou, saímos para comer algo, eu sem a mínima vontade. Eu não estava fazendo força para conversar, então ele puxou uma conversa qualquer. Entendiada, respondi. De repente, no meio de nossa conversa banal, ele puxa algo sem pé nem cabeça: "acho que vi seu ex-namorado perto de sua casa outro dia à noite... E vi você de tarde na terça-feira num lava-rápido da Sumaré falando ao telefone... Você estava falando com ele?" Hã!!
Bom, as duas coisas não tinham ligação uma com a outra, começa por aí. A falta de lógica e articulação entre das duas frases já foram o suficiente para me irritar. Detesto falta de lógica. Segundo, tive que lembrá-lo de que eu trabalho à tarde numa editora, cumpro um horário e não posso sair para lavar o carro numa terça à tarde. Portanto, de detetive ele estava péssimo, nota zero, não era eu ao telefone no lava-rápido, então a suposição de que eu estava falando com meu ex-namorado estava morta, a partir desse meu desarmamento de argumentação ilógica dele.
Quanto à ideia tresloucada de que meu ex-namorado poderia estar próximo de minha casa "fazendo ronda", tive que lembrá-lo de que meu ex-namorado é um homem, não um menino, que tem uma agenda cheia de trabalho e de diversão, portanto, não tem tempo, aliás, para perder dando campana diante da porta de ex-namoradas; se estava tudo terminado, ele jamais ficaria parado próximo de minha casa; esse não era seu perfil. Só um maluco teria essas visões que ele estava tendo... Tive de dizer isso. Um ciúme machadiano... Bentinho. E me imaginei Capitu, cigana de olhos dissimulados.
Enfim, aproveitei o ensejo para dizer que não era mais possível a gente continuar (ele me dera o queijo e a faca; eu só cortei). Eu me sentia oprimida fazia tempo, e a alegria do começo e os bons momentos já não existiam mais entre nós... Para minha surpresa, ele ficou atônito, e por mais que eu estivesse dando sinais havia muito tempo, mais de mês, ele me disse que esperava que ficássemos juntos, construíssemos uma família. Ele não havia percebido nada em mim que estivesse levando ao fim... Ele continuava construindo as coisas para que eu ficasse cada vez mais enredada em sua vida, como uma aranha constrói sua teia.
Bom, diante de seu choque, eu me condoí, e lhe dei apoio. Passei alguns dias lhe dando atenção, carinho, fazendo companhia. Ele realmente não esperava e ficou muito abalado. E minha culpa cristã me fez ainda ficar esses dias ao lado dele para que ele não se entristecasse demais sozinho.
Mas... alguns dias depois, isso se voltou contra mim. Ele passou a pedir para voltar. Eu dizendo não, ele voltou a dizer que eu tinha outra pessoa, que eu o desprezava, que etc. etc. Resolvia não o ver mais. E me senti péssima por isso.
E isso tudo me levou ao poema "Quadrilha"... Não querer alguém que me queria tanto, com tanto desejo verdadeiro, me fez desenterrar meus próprios desejos frustrados de toda uma vida. Eu não quis algumas pessoas que me amaram muito, mas também algumas pessoas não quiseram meu amor ao longo da vida. E esses mortos, nesse dia, rondaram meus pensamentos. E pude compreender no osso triscado por uma navalha a dor do poema de Drummond. Corta como gelo. Dói, como navalha. Na carne.
A cilada do amor, caros leitores. A armadilha do amor.
"(...)
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és (...)"

(O quereres, Caetano Veloso)





Na carne e no osso (Postagem de 27.1.2012)
Quadrilha

"João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para o Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história."

(Carlos Drummond de Andrade)

Hoje, depois de tanta literatura, amores, poemas, relações mal acabadas, mal alinhavadas, malpontuadas, depois de tanta semiótica, ótica cruel de desencontros, mas... às vezes, ao contrário disso tudo: encontros: rufar de tambores de alumbramento, de apaixonamento, de entrega e de conquista --uma espada cravada no peito da presa, e por que não, em nosso peito também? Que o amor tem dessas vicissitudes. E dessas surpresas. Um despertar, que é um farfalhar de folhas, acordando a vida depois de um outono silencioso de tons amarelos e decíduos... A estação à espera de um sinal...
Pois hoje, justamente hoje, eu entendi / a frio, a ferro, a estilete / rasgando a carne raspando no osso o sentido mais dolorido do poema "Quadrilha", de Drummond.
Fazer doer no outro a tristeza do amor não correspondido não lustra nem um pouco minha vaidade, não ::: é mais sofrido em mim -- (faz lembrar a dor socada profunda de meus próprios amores não correspondidos. É uma cerimônia estranha de desenterrar de mortos.)
* Imagem disponível no blogue http://mesmomomento.blogspot.com/2011/01/bem-me-quer.html

O paradoxo do querer e o túnel do tempo no YouTube

Acesse o YouTube para se perder no túnel do tempo, acho que você vai gostar:
http://www.youtube.com/watch?v=11VPSwInb4M&feature=fvst

O eterno paradoxo do querer:

"(...)
Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e é de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és

(...)"

("O quereres", Caetano Veloso)


E agora?


O Quereres
(Caetano Veloso)

Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão

Onde queres família, sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão
Onde o queres o lobo, eu sou o irmão
E onde queres cowboy, eu sou chinês

Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor

Onde queres o ato, eu sou o espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói

Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e é de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és

Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor

Onde queres comício, flipper-vídeo
E onde queres romance, rock?n roll
Onde queres a lua, eu sou o sol
E onde a pura natura, o inseticídio
Onde queres mistério, eu sou a luz
E onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
E onde queres coqueiro, eu sou obus

O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é em mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há, e do que não há em mim

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

What Difference A Day Makes (e ainda há um restinho de Carnaval)

Colombina e Arlechinno



Acesse o YouTube para "What a difference a day makes", de Dina Whashington:
http://www.youtube.com/watch?v=OmBxVfQTuvI


Por um triz,
perdi o bonde,
e um dia fez
toda a diferença
em minha vida...
Agora só resta espera
e esperança,
futuro
e olhar de horizonte.
Ouvir Dina Washington
e imaginar que existe
reparação para o tempo
que se quebra
na régua dura
compacta
imaginária
esfarelada
da vida.

(Sandra Brazil, 4a feira de cinzas)

Caros leitores, queridos leitores que me suportam neste blogue: ninguém me disse que a vida seria fácil. Mas precisavam exagerar a dose? :-(

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Um sonho

O sono veio no meio daquela tarde quente, apesar da relutância para me manter acordada. Sou do tipo que resiste muito a dormir. Durmo poucas horas. Mas não resisti. Cansadíssima em todos os sentidos, me entreguei àquela cama que conhece os meu mais íntimos segredos: todas as minhas grandes alegrias, todas as minhas aflições e minhas tristezas, que costumo esconder, uma mania antiga de não querer incomodar o outro com minhas preocupações ou com minha agonia.
O calor incomodava a minha entrega a aprofundar no sono, mas fui descendo ao terreno do desconhecido de nosso inconsciente. Calor vencido por um sono profundo e eu entregue, tive um sonho estranhíssimo.

Era um feriado qualquer, mas eu estava em alguma empresa qualquer, não sei qual, trabalhando. Eu vestia uma roupa de que gosto muito: a saia preta e branca em losangos e uma blusinha preta recortada acinturada. A pulseira de acrílico laranja, onipresente. Os sapatos retrô que ganhei de Isadora, saltos quadrados superconfortáveis. Fui chegando com a bolsa e uma série de livros e papéis nos braços para trabalhar e a ruga entre as sobrancelhas, traço marcante...
Entreguei tudo sobre a bancada imaginária e fui pegar água (acho...) na cozinha. Havia alguns funcionários da copa em seu uniforme de botas brancas e avental.
De repente, um caminhão que parecia mais um guindaste parou ao lado da cozinha, e quando olho para cima alguns de meus trabalhos e livros estão lá, mal colocados, meio caindo, prontos para se perder, folhas ao vento... Me desesperei.
Havia alguns funcionários lavando o chão no pátio; outros, organizavam a saída do tal caminhão-guindaste.
Não tive muito tempo para pensar, deixei o copo sobre a pia, saí da cozinha, subi as escadinhas laterais do caminhão para tentar salvar meu trabalho de esfacelar-se ao vento. Quando cheguei no alto, senti um trepidar, a máquina estava em pleno movimento e fazia manobras no pátio para partir. O motorista não tinha visto que eu estava bem em cima, em pé, salto alto, linda e loira, pegando todo meu trabalho mal ajambrado, ali, por alguém...
Eu estava já desequilibrada, papéis e livros nos braços, e neste momento, no sonho, eu já estava dentro de uma espécie de caixa de metal, e um rapaz da cozinha me viu e se desesperou. Ele gritou lá de baixo: "Pula! Ainda dá tempo"... A tal caixa de metal subia cada vez mais alto a cada manobra do caminhão-guindaste.
Como boa aventureira, fechei os olhos e pulei, sem pensar muito nas consequências.
Caí sobre algo almofadado, que amortizou minha queda, e caí em pé, coisa de sonho...
Outra coisa engraçada dos sonhos são os pulos das cenas de uma para a outra, não importa a gravidade do assunto. Depois de minha queda, eu já estava na cozinha, e um funcionário da copa, como nas Fábulas de Esopo, me passou um sabão (ou seja, me deu uma bronca sobre o risco que corri), o que me deixou levemente constrangida, e também tirou uma lição de moral desse acontecimento, que na verdade era uma interpretação de por que eu estava sonhando isso tudo.
Um sonho assim tão sequenciado é difícil eu me lembrar.

A única conclusão a que chego, caros leitores -- e me desculpe o simpático e cuidadoso personagem do meu sonho, o rapaz da copa, e suas conclusões jung/freudianas --, é que... estou trabalhando demais!... De novo! :-(
Quando percebo, lá estou eu no mesmo caminho, no alto do guindaste, afastada de tudo e de todos, e alguém bem distante tem que me dizer com todos as letras: você precisa trabalhar menos, olha o estado em que está, saia desse lugar...

* Por que eu não aprendo?

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Na avenida

No Carnaval, na avenida, na passarela do samba ou na vida,
de novo, sábia Orides Fontela:

Mão única

-- é proibido
voltar atrás
e chorar.

(Orides Fontela. In Poesia reunida. Cosac Naify-7 Letras, 2006.)

sábado, 18 de fevereiro de 2012

The look of love

Vocês, leitores, já devem ter reparado como as pessoas mudam quando estão apaixonadas. Ou simplesmente quando estão naquela fase "dança do acasalamento", como costumo chamar... às vezes, a dança do acasalamento dá certo e se transforma em algo novo, um sentimento profundo, uma relação amorosa, um namoro, morar juntos, casar, caso "estável" (já viveram isso alguma vez>) ou sei lá o quê...
Primeiro, a pessoa fica mais bonita, a pele fica mais lisa, ela fica também mais disponível, menos tensa e mais cheia de energia. Mas a característica mais marcante, penso eu, é o olhar... Ah... o olhar dos apaixonados é 'something'... Uma coisa. Você percebe de longe quando alguém está apaixonado, e coitados dos comprometidos: é muito difícil esconder! Tudo porque está no olhar, "aquele olhar".
Tanto que há obras que tratam disso, quadros, textos, música... Uma delas é "The look of love". Há inúmeras versões desta bela canção, mas uma das que mais gosto é a interpretada por Dusty Springfield. Veja no YouTube (http://www.youtube.com/watch?v=a28kY1-s-Vc).


Bem, eu mesma, leitores, tenho cá minha coleção particular de "looks of love"... E afortunadamente não é que alguns deles foram clicados para minha sorte>>

Há meus olhares de dança do acasalamento apenas, que são faceiros, e é fácil de detectar... A diferença é notável.
Claro, porque o olhar de um grande amor carimba fundo na alma e reflete o arco-íris
que se instala dentro de nós e completa a felicidade que já é nossa. O olhar do amor é cristalino, não é leviano. Ele tenta arrastar para si a humanidade, para que toda ela seja tão feliz quanto nossa felicidade amorosa nos faz naquele momento.
Como um tsunami, o olhar amoroso, e eu diria que Roland Barthes estivesse entre nós eu pediria que incluísse em seus Fragmentos do discurso amoroso, arrasta tudo ao redor em sua generosidade, em sua felicidade, em sua plenitude. Não é possível passar incólume ao olhar de alguém que está apaixonado. Ele o arrasta a seus confins, quer você queira ou não.
Façam esse exercício: no ônibus, no metrô, numa praça, no shopping (para os que gostam), no ponto de ônibus, ao volante reparando nos passantes, vejam como algumas pessoas carregam esse olhar apaixonado...
Ao se permitir observar, esse olhar o arrastará de sua rotina massacrante e o levará a territórios sagrados, os territórios daqueles que amam, daqueles que se permitem se apaixonar, ou simplemente se permitem a "dança do acasalamento" -- que "é uma delícia, um frio no estômago o tempo todo esperando aquele torpedo ou o celular tocar".
Ou será que... você mesmo leitor... não terá em você... The look of love...


Dica gastronômica: Ponto Chic

Foto do interior do Ponto Chic do largo do Paissandu

Em 1922 o Largo do Paissandu era um dos principais pontos da vida noturna de São Paulo. Em março daquele ano era inaugurada uma casa de lanches e choperia que, no início, não tinha nome. Como se encontrava em meio às instalações luxuosas e por ser frequentada pela elite da cidade, passou a ser chamada de "lugar chique" e acabou sendo batizada oficialmente de Ponto Chic. Daí passou a fazer parte da história de São Paulo.
No Ponto Chic nasceu o tal do sanduíche chamado Bauru... Um dos estudantes de direito do largo São Francisco, cujo apelido era Bauru, um dia pediu ao sanduicheiro um lanche com determinados ingredientes; um amigo que estava ao lado ouviu e falou: "Garçom, me dá um desse do Bauru". Foi no Ponto Chic que nasceu o sanduíche mais famoso que tem nome de cidade -- o Bauru. (texto adaptado)


Casemiro Pinto Neto, o inventor do Bauru, com a filha




Muito tradicional, o Ponto Chic resiste e comemora 90 anos. Hoje há três unidades em São Paulo e outra em Ribeirão Preto.
Eu sou tradicionalista, já disse isso aqui no blogue, portanto, gosto muito de lanchar no Ponto Chic do Paissandu, mas confesso que é raríssimo, pois é um rolê ir até lá no fim de semana e o Centro está revitalizado, mas ainda tenho medo de estacionar ou descer de uma condução e ser assaltada. Então há um Ponto Chic ao lado de casa, mas fui raras vezes, não gosto; mas sábado passado estava calor depois da chuva, e era preciso comer algo e beber... Cedi aos apelos e fui ao Ponto Chic da Praça Padre Péricles. Fiquei surpresa! Havia muita gente lá dentro e também nas mesas da calçada. O chopp rolava solto e me senti numa praia. Todos de bermuda, as mulheres de vestido e bronzeadas, as crianças soltas e alegres, correndo pela calçada...
Pedi o que mais gosto ali, o sanduíche de queijo quente, que nunca me decepciona. O chopp é supergelado, me lembrou (de longe claro!) meus tempos de férias juvenis: o Pinguim, lá de Ribeirão Preto -- namoros de mãos dadas no cinema, choppinho depois no Pinguim, cartas eternas depois na volta pra São Paulo...
Pois trago para cá a dica: frequentem o Ponto Chic, é uma delícia, seja em dias frios (um sanduíche quentinho em suas instalações retrô), seja em dias de calor, um chopp gelado imaginando uma praia lá abaixo de nosso platô paulistano...
Numa cidade como a nossa, em que a cada dia vejo os estabelecimentos de minha infância desaparecerem sem deixar rastros e sequer memória, o Ponto Chic é um sobrevivente que merece ser paparicado e mimado por nós... Frequentá-lo é mantê-lo vivo, e consequentemente manter viva a história desta nossa cidade voraz, mas que é nossa, nossa, e que tem seus encantos de passado e de futuro...
Você pode ir e até pedir um Bauru, a prata da casa, para se sentir mais tradicional ainda...

Ponto Chic São Paulo

Largo do Paissandu 27
Centro

Perdizes
Largo Padre Péricles 139

Paraíso
Praça Oswaldo Cuz 26

Carnaval 2012

Carro alegórico na avenida Sapucaí.
Aviso sutil aos foliões:

"É sempre mais díficil
ancorar um navio no espaço."

(Ana Cristina Cesar)
Colombina

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Humphrey Boggart traduzindo Baudelaire

“A humanidade está sempre três doses atrasada.”
(Humphrey Boggart)

Alors, "Il faut être toujours ivre"... (Baudelaire)
O corpo e a alma precisam estar bêbados para enfrentar o mundo, seja do que for: virtude, alguma droga legalizada ou não, whisky ou poesia (ou literatura erótica, para os mais arrojados e sexuais ou acelerados). Caso contrário, pedimos água, ops, vinho, ops, whisky.
Embriaguêmo-nos. Amém.




Na foto, Lauren Baccal e Humphrey Boggart

Bêbados, mas de quê? (Charles Baudelaire)

Embriaguêmo-nos todos: de vinho, de virtude ou no mínimo de nosso alimento do Olimpo -- a poesia. Assim, o fardo se torna mais leve, e é possível sobreviver.


Foto de Charles Baudelaire

"Il faut être toujours ivre. Tout est là: c’est l’unique question. Pour ne pas sentir l’horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.
Mais de quoi? De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise. Mais enivrez-vous. Et si quelquefois, sur les marches d’un palais, sur l’herbe verte d’un fossé, dans la solitude morne de votre chambre, vous vous réveillez, l’ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l’étoile, à l’oiseau, à l’horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est et le vent, la vague, l’étoile, l’oiseau, l’horloge, vous répondront: “Il est l’heure de s’enivrer! Pour n’être pas les esclaves martyrisés du Temps, enivrez-vous; enivrez-vous sans cesse! De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise."
(Charles Baudelaire)

"É preciso estar sempre embriagado. Eis aí tudo: é a única questão. Para não sentirdes o horrível fardo do Tempo que rompe os vossos ombros e vos inclina para o chão, é preciso embriagar-vos sem trégua.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa maneira. Mas embriagai-vos.
E se, alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre a grama verde de um precipício, na solidão morna do vosso quarto, vós acordardes, a embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que foge, a tudo que geme, a tudo que anda, a tudo que canta, a tudo que fala, perguntai que horas são; e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio, responder-vos-ão: 'É hora de embriagar-vos! Para não serdes os escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos: embriagai-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa maneira'."

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

toda poesia, ferreira gullar

Ferreira Gullar*

Um instante

Aqui me tenho
como não me conheço
nem me quis

sem começo
nem fim

aqui me tenho
sem mim

nada lembro
nem sei

à luz presente
sou apenas um bicho
transparente

(Ferreira gullar)

* Foto retirada do site oficial do poeta. http://portalliteral.terra.com.br/ferreira_gullar/porelemesmo/um_instante.shtml?porelemesmo

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Nessa garoa, Clarice Lispector e Cartier-Bresson

Nesse domingo de garoa, Clarice Lispector e Cartier Bresson são os pilares da vida:

"Eu nao digo que tenha muito.
Mas tenho ainda a procura intensa e
uma esperança violenta."

(Clarice Lispector)

(Foto de Henri Cartier-Bresson)

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Matt e Amy Winehouse em minha vida

O ministério adverte:
acesse o youtube em http://www.youtube.com/watch?v=GfC6CCtZjxk&feature=related
seus ouvidos vão agradecer...

Há certo tempo, Matthew, que foi namorado de minha filha por alguns anos, esteve hospedado em minha casa, cerca de dois meses.
Matt é daquelas pessoas gostosas e suaves. Você não ouve caminhando pela casa, não vê quando faz a refeição, ele lava a louça e põe no escorredor, se enturma na família latina que tenho, vai tomar cerveja quando você chama, trabalha em silêncio fazendo suas animações no quarto. Se você chama para tomar café, ele surge dizendo, "Ô", "Eh", "Sorry", Thanks", "O-bri-ga-do"... Caso contrário, se alimenta eternamente de corn flakes com leite e comidas veg em pequenas quantidades...
Ele também era engraçado e meio estabanado, então, era muito cômico ver Isadora cuidando por onde ele passava distraído para que ele não quebrasse minhas louças de família, minhas xícaras casca de ovo, alguma louça especial para mim quando dávamos jantares e eu descia coisas da cristaleira... Ela ia segurando peças por onde ele passava... Funny! Por esse motivo, ele fez um desenho de uma cena bem-humorada: eu e Isadora na janela conversando distraidamente sobre algo, de costas para ele; ele em pé, ao lado da mesa de jantar, esbarrando em um conjunto de chá e o bule está no caminho para o chão, e ele tenta desesperadamente pegá-lo... É muito criativo e tem um traço muito moderno, que descreve parte de minha sala, minha estante e minha sala de jantar. No alto, ele escreveu: "Obrigado"... Foi um presente que ele me deu quando voltou à Inglaterra... Guardo com carinho esse ímã de geladeira.

A pedidos, o desenho de Matthew Moore, um presente de despedida que ele me deu há alguns anos quando partiu para a Inglaterra, depois de ter ficado hospedado em minha casa por 2 meses. Me lembro de ter chorado ao me despedir, o que para um inglês é um mico-leão-dourado...

Matt esteve na minha vida em um momento especial. Especial de várias maneiras -- boas e ruins de certa forma. Mas a sua chegada foi muito bem-vinda, e sua presença delicada e suave era sempre 'a presença' e seu silêncio inglês discreto e particular era na maior parte das vezes algo que me fazia ter uma ligação muito forte com ele. Também eu muitas vezes gosto de me manter discreta em assuntos que não são meus. (Apesar de não ser inglesa...)
Naquele momento eu vivia uma revolução na minha vida, estava apaixonada, a vida corria pelas artérias como se fosse possível fazer 200 coisas ao mesmo tempo: trabalhar, viajar, planejar, namorar, cuidar da casa, da roupa, do filho, do genro, dos pais, do futuro, de tudo, e jamais estar cansada ou sem energia. A vida era uma seiva elaborada que corria pelo lenho e trazia uma vida nova, uma casca nova, olhos novos, tudo novo.
Matt participou dessa nova fase, discreto, como sempre. Durante as viagens constantes que eu fazia, eu cuidava da casa a distância: "filha, vocês comeram, o Matt está só comendo corn flakes... Faça compras para ele comer direito! Veja se ele se sente à vontade para lavar as roupas dele etc." Havia um cuidado meu a distância com aquele que cuidava de minha privacidade a distância também...
Enquanto eu ia vivendo o apaixonamento, o alumbramento, o novo, as coisas boas do sentimento que chega desavisado nessa fase madura da vida, como diz o poema de Drummond (o amor no tempo da madureza), quando podemos desfrutar, sem culpas, sem medos, sem não me toques, sem portas pela metade, sem meios mergulhos..., Matt fazia minha filha feliz. Eles estavam vivendo, ao contrário de mim, a maturidade de seu amor... Eu me atirava naquele abismo sem volta do paraíso do novo sentimento enquanto eles navegavam nos mares calmos do amor conhecido e esquadrinhado de uma longa relação.
Pois nessa nossa convivência diária, Matt me apresentou algumas coisas das quais não me esqueço, apesar de hoje ele e minha filha não serem mais um casal. Uma delas foi Amy Winehouse.
Me lembro quando ele pôs pela primeira vez o Cd para eu ouvir, fiquei impressionada com as canções: era Back to Black. Isso faz uns 5 anos, e Amy não havia ainda descido tão fundo na decadência das drogas e da deficiência de seu corpo magro e cheio de marcas, apesar de sua pouca idade.
Não deixei mais de ouvir e de buscar novas canções. Sempre gostando cada vez mais do que ouvia.
Hoje, ao postar no facebook Love is a losing game, me lembrei de Matt e de sua leve presença em minha vida, de sua discrição a distância e de como sinto sua falta. Quando enviei a ele meu minilivro em dezembro, recebi suas doces palavras de agradecimento em português.
Saudade dessa fase da minha vida. Saudade de Matt, de seu eterno corn flakes com leite e de sua comida veg.
Tem coisas que se registram não na nossa memória, mas no coração. Matt é uma delas. Matt e as coisas boas que ele me apresentou e me ensinou. Algumas delas são a bondade, a delicadeza, a sensibilidade extrema, a aceitação do outro, a leveza, mesmo nos momentos mais difíceis, quando, como um Atlas silencioso, sentimos e carregamos o peso do mundo em nossos ombros...

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

"O dom e a danação", John Donne

John Donne, 1616

Conheci John Donne por um livro de Augusto de Campos, O anticrítico (de onde retirei o título desta postagem), com traduções de poemas de Emily Dickinson e outros poetas, inclusive, Donne. Me apaixonei.
Hoje ainda não é o dia da Biblioteca do Chacrinha, mas vamos relembrar Elegia - Indo para o leito? primeiro em inglês, depois a tradução.
Déliciez-vous, mes amis!

ELEGY XX.

TO HIS MISTRESS GOING TO BED.

COME, madam, come, all rest my powers defy ;
Until I labour, I in labour lie.
The foe ofttimes, having the foe in sight,
Is tired with standing, though he never fight.
Off with that girdle, like heaven's zone glittering,
But a far fairer world encompassing.
Unpin that spangled breast-plate, which you wear,
That th' eyes of busy fools may be stopp'd there.
Unlace yourself, for that harmonious chime
Tells me from you that now it is bed-time.
Off with that happy busk, which I envy,
That still can be, and still can stand so nigh.
Your gown going off such beauteous state reveals,
As when from flowery meads th' hill's shadow steals.
Off with your wiry coronet, and show
The hairy diadems which on you do grow.
Off with your hose and shoes ; then softly tread
In this love's hallow'd temple, this soft bed.
In such white robes heaven's angels used to be
Revealed to men ; thou, angel, bring'st with thee
A heaven-like Mahomet's paradise ; and though
Ill spirits walk in white, we easily know
By this these angels from an evil sprite ;
Those set our hairs, but these our flesh upright.
Licence my roving hands, and let them go
Before, behind, between, above, below.
O, my America, my Newfoundland,
My kingdom, safest when with one man mann'd,
My mine of precious stones, my empery ;
How am I blest in thus discovering thee !
To enter in these bonds, is to be free ;
Then, where my hand is set, my soul shall be.
Full nakedness ! All joys are due to thee ;
As souls unbodied, bodies unclothed must be
To taste whole joys. Gems which you women use
Are like Atlanta's ball cast in men's views ;
That, when a fool's eye lighteth on a gem,
His earthly soul might court that, not them.
Like pictures, or like books' gay coverings made
For laymen, are all women thus array'd.
Themselves are only mystic books, which we
—Whom their imputed grace will dignify—
Must see reveal'd. Then, since that I may know,
As liberally as to thy midwife show
Thyself ; cast all, yea, this white linen hence ;
There is no penance due to innocence :
To teach thee, I am naked first ; why then,
What needst thou have more covering than a man?

(John Donne)

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ELEGIA: INDO PARA O LEITO

Vem, Dama, vem, que eu desafio a paz;
Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.
Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado,
Feito para deter o olhar ousado.
Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda, quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.
Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu anjo, és como o céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
O que o meu anjo branco põe não é
O cabelo mas sim a carne em pé.
Deixa que a minha mão errante adentre
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra à vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha mina preciosa, meu Império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo.
Nudez total! Todo o prazer provém
De um corpo (como a alma sem corpo) sem
Vestes. As jóias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atalanta:
O olho do tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.
Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados, a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.
Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante.

(Tradução: Augusto de Campos)