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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

À moda de Hegel

Assaltaram meu pôr de sol cotidiano. Arrancaram minha vista panorâmica do bairro e da vida que borbulha nele. Deram cabo dessa minha pequena alegria. Alegria pequena, minúscula, mas grandiosa pra olhos de sensibilidade gigante. Eles fizeram tudo isso silenciosamente, primeiro; depois, com enorme estardalhaço, que doeram meus ouvidos. E machucaram meus olhos.
Mas o que ele não sabem é que não vão conseguir nunca, jamais, me conter. Atrás dessa muralha de concreto burguês, há de haver uma saída. Uma esperança, tão pequena quanto essa minha pretérita alegria. Hei de construir um atalho, um novo caminho, uma vereda, um desvio. Vou procurar meu pôr de sol cotidiano "alhures", porque, pensando em Hegel, eles não sabem, mas todo escravo tem uma saída.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Uma espécie de magia

Um porto –

domina
movimentos
e
sentidos.
atraca
o navio
macio
em mim.

Inúmeras
tentativas.
A derradeira
e
mais prazerosa –
espuma de mar
domina
territórios
ocultos.
Rosa tingido
de sal.

Se for lua
cheia,
é certo:
na superfície
virá à tona
o grito agudo
da sereia.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

A lupa

Arrumando minha bancada do escritório -- uma bagunça sem-fim--, encontrei (tim!) a lupa que meu pai me deu de presente!
Ele adora lupas. E papel. Papel velho. Recortes. Jornais. Fotos antigas. Gosta de ver mapas, seguir cursos de rios, encontrar lugares que visitou com detalhes em velhos atlas que temos na casa de minha mãe. Eles estão desatualizados, mas ele não descansa. Quando vou lá, ele fala o nome de algum medicamento que está tomando e diz assim:
-- Minha filha, esse medicamento é feito em Goiás... eu já fui lá com a Mãe! Uma vez pegamos o carro e fizemos assim...
E aí vai discorrendo e vai pegar lá o velho mapa para mostrar o caminho que fez pela estrada, e o rio que havia e que mudou de nome. E a ponte que eles cruzaram. E claro. Ele traz... A Lupa. Assim. Com letra maiúscula. Uma entidade. A companheira de um historiador que ele, menino órfão de pai, não pôde ser, pois tinha que trabalhar dese menino pra sustentar a mãe e os irmãos.
Faculdade? Ele só conseguiu fazer depois dos 30 anos, quando minha mãe fez grandes sacrifícios e malabarismos com o salário dele e nós éramos pequenos. Mas detalhista, preciso nas coisas, cioso, perfeccionista, caprichoso nas letras e no português e na boa gramática, ao menos pôde ser guardião da história dos processos do Fórum por anos. Escrevia e reescrevia aqueles textos para os juízes e desembargadores, sem descanso. Sempre achava que estava esquecendo algo, ou que tinha algo muito errado, algum engano grave que estava cometendo... (parece alguém que conheço, meu deus!...) Até que um dia um juiz, quando ele foi mostrar o texto final, lhe disse numa ironia fina:
-- Seu Heitor, o senhor já fez o meu trabalho, nem preciso rever e dar minha conclusão ao processo, o senhor já o fez por mim... pode passar a limpo.
Pois quando ele pega esses mapas lá em casa ele enlouquece a gente... [com a tal da Lupa...] porque em geral estamos conversando sobre outros assuntos, querendo saber outras coisas, o assunto já está em outro ponto, mas ele empacou com... a tal Lupa... a Entidade... no tal mapa, que ele quer mostrar, da tal viagem a Goiás, que ele fez com a Mãe, à casa da tia Fulana, em 2002... É muito engraçado. Então, minha filha Isadora, que é apaixonada pelo avô, pega no braço dele e segue as trilhas do mapa e vai perguntando:
-- Vô, o que é aqui? Onde você foi? Que rio é aquele?
E ele sossega.

Mas enfim eu achei minha lupa que estava perdida. A lupa que meu pai me deu, na certa, porque ele sabe que eu, parecida demais com ele, a quem ele destina recortes de revista, de fotos da São Paulo antiga, de fazendas de café, de cenas de história antiga, serei a herdeira de seu cacoetes. [Que já sou...] Tipo, somos ciosos ao extremo de nossa privacidade, falamos baixo das coisas podres da família e pedimos sigilo a quem contamos, detestamos certos comportamentos, somos travados emocionalmente, tímidos no contato físico com as pessoas, mas extrovertidos socialmente e gostamos de festa, de sair, viajar, dançar, adoramos comer, tomar vinho, e um bom bacalhau. Ou seja: eu e ele somos uma lambança, uma mistura de italianos com portugueses típicos. A diferença é que ele fala baixo, é ponderado, não chora. Eu descabelo, grito quando é necessário e choro quando a coisa está preta.
Pois agora que perdi meu pôr de sol, que não tenho mais a alegria ensolarada em meus finais de tarde, tentarei com minha lupa procurar em mapas um lugar novo pra mim, onde haja sol, por de sol, e que eu possa ter de novo finais de tarde ensolarados e cheios de luz.
Espero que a lupa encontrada no meio da bagunça seja um sinal de que há esperança.