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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Nada de novo no front

Dói. Mas a loucura cria uma carapaça imaginária. Isso não é novo -- essa é a anestesia dos dias. Um embornal chamuscado e antigo guarda meu arsenal de guerra. Ali há tudo para aguentar viver. Eu aprendi com as estações e as marés. Não que eu perca porque não possa. Não. Eu posso. E dói saber desse poder. (Mas como um viciado, bate a loucura, eu sumo por um beco escuro, alucino, e não dou conta das coisas que me são mais preciosas...). "Perder? Não é [mais, há muito tempo] nenhum mistério."

A arte de perder

A arte de perder não é nenhum mistério
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subsequente
da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. Um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo, que eu amo)
não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser um mistério
por muito que pareça (escreve) muito sério.

(Elizabeth Bishop; tradução de Paulo Henriques Britto)

Soneto 61 de William Shakespeare

SONETO 61

É teu desejo que esta imagem tua
Me venha à noite as pálpebras abrir?
Que meu descanso e lassidão destrua
Na sombra incerta em que te vejo a rir?
Será que é teu espírito que envias
De tão longe de casa a me espreitar,
A ver se em erro ou ócio acha meus dias,
A fim de teu ciúme alimentar?
Não! Teu amor não é tão grande assim!
É meu amor que os olhos me arregaça,
E, verdadeiro, a meu torpor põe fim,
A especular de tudo que te passa;
Pois que te vejo a andar a céu aberto,
De mim distante e tantos outros perto.

William Shakespeare
(tradução: Gil Pinheiro)

quarta-feira, 26 de março de 2014

De cara com o crime

O sol queima meus olhos. E não consigo desviá-los do corpo estendido no chão. Eu estava em alta velocidade. Fui avisada, tantas vezes, do perigo de dirigir de forma insensata, mas não ouvi. Em muitas das curvas mal desenhadas, eu derrapei e pus em risco quem estava comigo; mas fui descuidada, achando que a vida estava cuidando à distância. Confiei na sorte. Pois agora, num de meus piores deslizes, típicos do meu egoísmo, atropelo um corpo querido e o transformo em farrapos. Tamanho o impacto, ele se torna algo que desconheço. Seria essa obra a marca da minha maldade? Algo tão precioso atirado no asfalto sujo e quente. Agora, de frente para o crime, só tenho lágrimas, arrependimento e dor. O sol que queima me lembra o sol do Estrangeiro. Desplugada do possível, não presto socorro à vítima, pois não me permitem. Meu respeito é entender. Só o que me resta é seguir em frente apenas com os cacos que sobraram, e tentando reinventar. (Algo me puxa para trás: aquele corpo quente, que ainda pulsa sobre os estilhaços, esse calor eu jamais vou esquecer.) Ainda assim sigo: entre os cacos que recolhi, levo comigo um coração.

terça-feira, 18 de março de 2014

Concerto

Um dia, há muito tempo, ele chegou atrasado ao nosso encontro. Eu não sabia. Ele não sabia. Mas era um encontro marcado. Havia uma bicicleta caída no gramado. O script era roubarmos e fugirmos juntos, pedalar pela vida. Eu chegara cedo à sessão censurada e proibida. Míope, aterrei meus óculos bem lá na frente para assistir. Ele só chegou muito tempo depois, atrasado, como sempre, conseguiu lugar na última fila. A bicicleta ficou esquecida. Eu assisti toda a sessão, caxias. Ele sumiu por um beco qualquer, nos perdemos.
Os ombros esbarraram nas livrarias, nos cafés, nas filas de cinema, mas não sabíamos que a vida é um sorvedouro. Despercebemos e seguimos cursos e fluxos, e abriram-se sendas.
Muito tempo depois, tentando fugir do sorvedouro atroz, ele pinçou um pôr de sol que eu lamentava numa tarde de outono. Deu de presente a distância. Sem sequer saber do gramado, da sessão proibida, da bicicleta, do tudo que o acaso concertara em suas mãos.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Navalha sob a carne

Palavras podem ser armas. De repente elas lanham a sua pele, e pronto. Você está marcado para sempre. Mesmo que a cicatriz feche, lá dentro os pontos tamborilam, lembrando você o tempo todo das letras que o feriram.

Dias de ressaca

Eu sempre comparo a vida ao movimento das marés. Tem dias que o mar está pra peixe, e o sol brilha e todos os peixinhos vêm à superfície dar o ar de sua graça. Há dias de tanto encanto em que é possível mesmo imaginar que uma sereia passou por ali, e o mar reverencia a beleza e a sedução. Há dias raros, aqueles que cada um de nós guarda dentro daquela caixa oculta; algo que só nós sabemos, aquela lembrança única, e só de vir à tona, é tanta emoção, que é melhor tampar a caixa, e guardar tudo aquilo a sete chaves de novo. Os segredos de todos nós formam essa maré das grandes emoções do mundo.
Mas há dias de maré baixa, dias difíceis, dias de ressaca, como Machado descreveu os olhos de Capitu. Em dias assim, o estômago fecha, não há comida deliciosa que desça, não existe um doce que apeteça, sequer o vinho abre espaço nas vontades. Nesses dias, parece que há uma ferida dentro da gente, e que nunca vai fechar. E por mais racionais que sejamos, não há pensamento racional que retire este gosto amargo de ressaca e cabo de guarda-chuva de dentro de nós. Nada se bebeu, mas é como se fosse um porre homérico: o mal-estar sem-fim.
Em dias de ressaca, eu sempre peço que se atenue a dor, porque em mim tudo ou é alegre demais, ou dói demasiado, é tudo muito intenso em mim. Em dias assim peço aos deuses do Olimpo que me enviem Hermes e que ele traga consigo além do frescor da sua viagem alada uma boa surpresa. Pode ser uma coisa simples: uma boa notícia, uma carta, um bilhete, um telegrama, um e-mail, um telefonema, um torpedo, uma estrela que caia do céu.