Quem sou eu

Minha foto
No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Senta que lá vem história...

Aiai é dia de lançamento. Há 20 anos trabalho com livros: edição, preparação, revisão, tudo: tornar o original algo pro leitor. Como sempre, me atrapalho nesse dias.
Eu realmente sou muito tímida pra determinadas coisas, tenho dificuldade em dias de festa. Raramente vou a lançamentos, quem me conhece pode até estranhar. Mas sempre fico na coxia do livro, nos bastidores, como um técnico de luz no teatro, uma camareira de uma grande estrela. Eu gosto de ficar atrás dos holofotes.
Mas é dia de lançamento de livro, e tenho que superar minha fraqueza. Enquanto a maioria das pessoas gosta de ficar ali, lustrando o próprio brilho girando uma taça de vinho, eu fico na fila, rezo pra não ter que cumprimentar ninguém, que ninguém me reconheça, pego o autógrafo, abraço o autor, e saio correndo pra ir tomar uma taça vinho longe dali. Acreditem. Conto os minutos pra me livrar do mal-estar da timidez, que me torna de certa forma patética: uma pessoa normalmente tão extrovertida como eu...
Mais uma vez, saio do trabalho, sigo para alameda Lorena, compro meu exemplar, um nó na garganta, subo as escadas da Livraria da Vila, e já me sinto um peixe fora d'água. Num aquário estou apenas quando me deparo com as letrinhas sobre o papel, desejosas por minha intervençaõ, minhas sugestões, minhas dúvidas. O papel couché brilhando diante de mim, ou o pólen, e eu dando os últimos palpites de editora. Aí sim sou toda eu, mãezona daquela criatura que breve será cuspida pela máquina de impressão da gráfica. Adoro. Sou eu completamente diante do livro.
Mas eis que consigo rapidamente meu autógrafo. Alívio. E desço a Hadocck Lobo em busca do cafér Oscar.
Não sou habituée da Oscar Freire, ao contrário, tenho sérias críticas a essa rua-vitrine. As pessoas que por ali transitam não frequentam minha tribo. Eu, não tenho nada que ver com elas. Há dois tipos de seres humanos: os endinheirados, que transitam ostentando sua figura e seu argent. E os pobres seguranças, que são instalados ali para, em tese, afugentar aqueles que sua própria classe social que venham macular a beleza criada. Estranho isso. Os seguranças são os muros medievais do mundo moderno.
Instalada no Oscar café, me lembro que passei um aniversário ali. A comida é ótima, o vinho também, e os preços são honestos, exceto de certos sucos, que custam o preço dos pratos... É uma portinha de nada que dá num fundo bem cuidado, com jardim de inverno, sofá, jornais e revistas, mesas tipo bistrô, uma graça.
Sentada numa mesinha de costas para o jardim, a vela tremula à minha frente, e eu peço uma taça de um argentino pra matar esse sentimento de deslocamento que sempre sinto em estreias e lançamentos de livros. O argentino chega rápido, mas a salada demora um pouco. Folheio o livro e suas gravuras: Evandro carlos jardim.
Como minha salada ainda não veio, peço o jornal do dia, eles me trazem a Folha.
Olho ao redor: há um casal, uma mesa com algumas amigas, e dois amigos ao fundo. Só eu estou numa mesa sozinha. Fico pensando o que me leva a ter paúra de lançamentos, mas ficar tão à vontade num bistrô, tomando vinho, lendo jornal desacompanhada... Será que sou carrie, a estranha, meu deus...
Peço um expresso pra coroar um dia difícil e caio na rua de novo. Um moço bonito, de cerca de 35 anos, para no farol; quando reparo, ele está sorrindo pra mim, e pedindo um sorriso de volta. Minha insegurança e baixa autoestima me fazem correr e tentar alcançar o meu carro. Ele ainda olha pra trás, seu vidro aberto, e ri da minha atrapalhação. Um riso puro e ingenuamente sincero, um sinal. Mas o farol de uma grande cidade divide as pessoas e os destinos. O verde o obriga a baixar o facho, olhar para a frente e seguir, se esquecendo de mim e das possibilidades que a vida cria algumas vezes.
Meu celular toca e me vejo mãe de Isadora de novo. Ela está na rua Bartira, 'onde vc ta, mãe:'. Digo que me espere, vou buscá-la em 10 minutos.
Meu pretinho básico volta para o cabide, e a fita de veludo preta que o enfeita deita-se numa caixinha que ganhei de Eloísa. Arranco as botas como quem arranca as farpas depois de um dia difícil. Meu quarto parece um esconderijo muito seguro. Quero ficar aqui, na penumbra do que me é caro e conhecido.
Amanhã tudo voltará ao normal.
Ficarei super à vontade, nua e sem restrições, para as palavras, as palavras que leio diariamente.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Emily

Que o Amor é tudo que existe
É tudo que sei do Amor.
Isto é bastante - o peso deve
Adequar-se ao andor.

(Emily Dickinson. Alguns poemas. Trad. José Lira. Iluminuras, 2006.)

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Clarice

`Por que será que a gente luta tanto para produzir uma obra de arte...
Acho que é para sobreviver.'

(Clarice Lispector)

quinta-feira, 22 de abril de 2010

New Orleans

Mar revolto.
Katrina,
e o estrago se vê na história
destruída.
Anoitece,
um cemitério de
navios.
Espólio,
peso que se carrega
no corpo.
Veremos novamente
a vida?
Demitiremos
navios que agonizam?
Haverá notas de uma melodia
na noite escura?
Uma Nova Orleans
dentro de mim.
Se morre,
morrerei com ela.
Se resiste,
me projetarei
rumo ao vale,
ao vale dos que sobrevivem.

Minha Nova Orleans
desperta sonolenta
pós-catástrofe.
Vagarosa como sua dona,
mas esperta como uma coruja
-- observa --.
Como uma aranha
tece fios
pra ressurgir.

Katrina
e seus caprichos
femininos.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Anônimo em minha cama

Originário das terras frias,
longilíneo,
chegou desavisado.

Delicado,
Terno e quente.
Percorrendo o conhecido,
Acariciou meu corpo nu
que adormece, tranquilo, sob seu turno.
Um guardião chinês...

Constituição delicada.
Acordo enternecida por sua proteção,
na noite,
e nos momentos mais difíceis
sua paixão me surpreende.
Generoso, como o espelho de Branca de Neve
me diz:
"Você é a mulher mais bonita do mundo".

Rolo para a direita e depois para a esquerda
nesta cama que é minha, só minha,
como se fosse uma Marilyn Monroe a andar
nua, inocente,
pela casa.
Fazendo biquinho e piscando os olhinhos
que o mundo quer comer...

Me queira: eu penso.
Me deseje: eu peço.
E dois pulinhos de um coelhinho já
sinalizam quem pode ser esta mulher...

Anônimo,
anônimo companheiro
de meus dias.
Envolve e aquece
a minha pseudoalegria.

sábado, 17 de abril de 2010

Que mistérios tem Clarice?

É difícil assumir micos. Assumo o meu de hoje. Convidei Isadora pra ver comigo a peça sobre Clarice Lispector, que está em cartaz no CCBB. Ir ao teatro tem sempre algo de cerimonial, diferente de ir ao cinema que, pra mim, é mais descontraído. Sempre me visto melhor, apuro na apresentação, dinheiro para qualquer emergência ou para o táxi, há um quê de ritual nisso tudo.
Ela, que na sua juventude tem agenda lotadíssima, concorda em me acompanhar. Eis que nos aprontamos, pegamos o carro, deixamos no estacionamento da Consolação e pegamos a van que nos leva ao CCBB. No caminho, vou puxando histórias do nosso guia; pergunto nome, falo da violência da cidade e amenidades outras. Ele se sente em casa, me chama de Sandra (Então, Sandra, você gostou de Madri?..., mas você já foi a Londres, Sandra?, mas na Europa não é assim, Sandra) e conta que morou na Espanha e Lisboa. Não houve tempo pra eu perguntar "o que vc ta fazendo aqui? Volte pra Barcelona". Gostei de ouvir o som do meu nome pronunciado tantas vezes num percurso tão curto. Me lembrou que eu sou a Sandra.
Entrar no CCBB, pisar naquele mosaico maravilhoso e olhar os desenhos do guarda-corpo em metal (folhas de café), é uma espécie de veneração pra quem gosta de história, como eu. Sempre me surpreendo com um detalhe que não havia percebido antes. Aproveito sempre pra tomar um café antes de ver um filme ou mesmo ir ao teatro de lá.
Peço a Isadora que veja nos tickets se há tempo para eu tomar a minha dose de cafeína. Ela olha o papel, ri, olha de novo, e gargalha: mãe, hoje é dia 17/4, você comprou os ingressos para dia 24/4... quáquáquá!... Não acredito que fiz isso. Me chateio de tê-la feito ir até ali, burlando seus encontros com amigos, só pra me acompanhar, e eu pago esse mico!
Portanto, não poderei escrever hoje sobre minha impressão da peça sobre Clarice. Terei que esperar até dia 24/4. No entanto, apesar do mico, será um prazer pisar de novo naquele mosaico e descobrir algum outro detalhe da arquitetura que me escapou nesses anos todos.

domingo, 11 de abril de 2010

É tudo verdade

Vou buscar em Vinícius: "(...) Impossível fugir a essa dura realidade/ Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios/ Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas/ Todos os maridos estão funcionando regularmente/
Todas as mulheres estão atentas/ Porque hoje é sábado.(...)"
O sábado foi promissor. Muito melhor do que eu esperava. Na verdade, tudo começou na sexta-feira.
Estava trabalhando duro, e me avisam que terei de sair mais tarde. Já são 20h. A noite vai se dura, imaginei... Eu e meu companheiro de trabalho nos debruçamos sobre o que nos foi legado fazer, para abreviar o processo. Meu celular toca. Não reconheço o número. Atendo. Uma voz reconhecida e serena me chama do outro lado: Oi,tudo bem? Eu pergunto quem é. Oi, sou eu..., liguei pra saber se você se está bem.
Na última postagem eu disse que aceitar ser cuidado é uma arte. E eu me vejo esta semana sendo cuidada de vários pontos.
Você ainda está brava comigo? Eu disparo uma gargalhada, solta e alegre. Não, não estou. Ele diz: saudade. Eu respondo que também. Vamos nos ver? Sim.
Estava garoando, pouca gente na rua quando saí. Ouvi meus passos trotando nas calçadas cheias de quebraduras de Perdizes. Estou exausta depois de um dia que começou às 9h e está finalizando às 23h.
Nos falamos ao telefone. Impossível encontrar agora. Muito tarde para mister-embaixo-das-cobertas, e eu na verdade estou exaurida, sem energia mesmo. Vou pra casa, querendo banho e cama. Está friozinho, do jeito que o diabo gosta para aqueles que estão se amando. Garoa lá fora, edredom e carinho aqui dentro.
Acordo tarde e o dia passa preguiçosamente. Faço uma programação light com minha filha. Volto pro meu chatô. O sol está se pondo, douradão sob minha mira atenta. Neste exato momento recebo um telefonema. Ele quer tomar conta do meu território. Que bom, eu penso. Retomo minha alegria conhecida, e me permito pôr mais uma pá de terra nas coisas que desfalecem. Será isso o remédio do tempo? Ouço alguns segredos, desvendo alguns mistérios. Acho que estou nos trilhos de novo. Rédeas bem presas nas mãos.
Aí chega o domingo. Acordo serelepe depois de um sábado bom, gentil e generoso comigo. Resolvo coisas práticas da minha vida e da minha casa. E a tarde será só minha. Recebo mais um telefonema. Um cálido cuidado me chega do outro lado do fone. Pareço uma aquarela delicada, pronta pra se desmanchar. Retribuo o carinho. Me sinto uma flor tocada pela brisa.
Quero ir ao "É tudo verdade", e decido por um documentário holandês sobre a viagem de 21 dias do Zepellin, em 1929. Me animo, me arrumo, e parto para o Centro Cultural Banco do Brasil.
Sem carro, pego um ônibus e em menos de 10 minutos estou na rua Xavier de Toledo, a rua da minha infância. Desço e caminho até a esquina do antigo Mappin, de frente pro Teatro Municipal. Uma imagem aparece: anos 60, minha mãe envolvida num casaco chique de lã negra até os joelhos, meias de seda e sapatos de saltos finos, bolsa de mão. Ela pega firme na minha mão e fala que vamos fazer compras no Mappin. Eu também estou bem arrumada para a ocasião. Sempre que íamos ao Centro, ela me vestia com esmero. O Centro requisitava esse tipo de cuidado. Eu era muito pequena, mas achava lindo o Municipal, à minha direita, aquela imponência sobre a escadaria. Havia um relógio no Mappin, e eu sempre perguntava: Mãe, que horas são? O Mappin fazia parte da minha vida. Significava que ia passear de ônibus elétrico e brincar de correr, pular entre mobílias, eletrodomésticos, bonecas e afins. Depois de tudo, ela me levava para lanchar, e eu pedia um sanduíche americano.
Jogo uma toalha fria na memória e quebro à direita no viaduto do Chá. O dourado do outono bate forte nessa espécie de mito paulistano. Minha avó me contava que muitas pessoas se atiravam dali quando ela era mocinha, e que ela costumava frequentar as casas de chá com as amigas na rua Líbero Badaró. Ao longe vejo a obra polêmica da praça Patriarca. Me sentia mais à vontade com aqueles terminais de ônibus anos 50, era familiar para mim, que sempre vinha com minha mãe e descia as escadarias da galeria Prestes Maia para comprar livros do MEC. Certa vez, anos 80, eu era recém-casada e havia um bar em um hotel ali na esquina. Meu ex-marido me convidou pra tomarmos algo lá. Nos encontramos na porta, como só os apaixonados o fazem. Beijos e abraços de saudade depois de apenas 10 horas separados. Havia meia-luz lá dentro, uma sensação de aconchego. Depois, fomos ao restaurante de frente à faculdade São Francisco, a uma quadra dali. Jantamos como deuses, sob a mira daqueles garçons que ainda vestiam terno branco com gravata-borboleta.
Sacudo de novo as lembranças, e me embrenho pela rua da Quitanda, que dá acesso ao CCBB. Está vazia, só alguns gatos pingados às 16h30. As portas do comércio estão pichadas com coisas ininteligíveis, o calçadão está sujo e há um forte cheiro de urina... Apesar daqueles prédios lindos, arquitetonicamente históricos da minha cidade, apresso o passo para fugir desse tom de decadência e falta de cuidado do setor público.
Chego ao meu lugar de destino, e consigo um ingresso facilmente para minha sessão. A moça da bilheteria é educada e atenciosa, e penso que estou tendo sorte esta semana. Estão me embalando nessa onda de cuidado. Tento comprar um ingresso também para a peça de Clarice Lispector, e ela me ajuda a encontrar um bom lugar. Me diz que pessoalmente, em certos espetáculos, gosta de ver do mezzanino. Vou na dela e compro meus ingressos. Nem acredito que no meu caminho só tem surgido gente de carne e osso nesses últimos dias. Pergunto qual é o atalho menos pior para ir embora dali mais tarde, no escuro, evitando possíveis assaltos. Ela me pergunta se não prefiro ir de vã até a Consolação. Eu estou sem carro, mas nada impede que eu vá com as pessoas que estacionaram o carro lá. Penso um pouco, agradeço o cuidado, mas declino. Prefiro ver as luzes do viaduto do Chá depois do escurecer. Ela diz que não será perigoso, mas que eu fique apenas 'atenta'. Ok. Got it!
Há bastante gente nessa sessão. Pelo que percebo, a maior parte está sozinha. A moça ao meu lado parece ser bem interessante, e vejo que comprou títulos qna livraria. Ao lado dela, duas cadeiras à direita, há um moço bem bonito, descolado, meio perdido. Seu olhar estaciona no meu, e ele baixa os olhos e finge que não está ali. Rio intimamente. Que bom, não sou só eu que sou tímida assim...
Filme terminado, me aconhego um pouquinho no café, e bato em retirada. Ao caminhar pelo viaduto do Chá, meu coração para de remar, abrupto. De súbito me lembra que faz pouco ele flanou ali, saltitando como um coelhinho sobre as pedrinhas cor de terra. Cenário de uma peça que poucos têm a chance de escrever ao longo da vida. Bar do Estadão e seus ossinhos de dinossauro, uma fauna exuberante. 4h da manhã, a avenida São Luiz traçada de uma margem à outra, como se fosse um rio. O fog de inverno congela, mas ali no círculo de giz é verão. Embaixo do letreiro que corre, um rodopio planta a coreografia da alegria. Um universo de estrelinhas orquestra os olhos que cavalgam querendo ir longe. Confirmam que ali se configura uma nova história, essa micro-história que compõe a história de tudo. Sinos soam dizendo que algo novo nasceu. Pode ser Paris, Londres, Rio, Madri, São Paulo: tanto faz. Ali se fez o instante-luz. Assim como você, eu sei.
Estou já no largo do Paissandu, e a decadência agora se mostra nos bares sórdidos, sujos e de frequência duvidosa (confesso que gosto deles, mas não ouso entrar desacompanhada e me sentar no balcão). Alcanço o ponto de ônibus. Vejo que diante dele há um cinepornô. Me distraio um segundo e quando percebo um homem saiu rapidamente de lá de dentro, e, não satisfeito com tudo o que assistira lá, olha direto para meu vão livre e passa a língua nos lábios. Me arrependo amargamente de estar de jeans justo. Mudo de lugar, ele desiste. Uma fauna toma conta da São João. Dá pra fazer um filme.
Pego o ônibus e em menos de 10 minutos estou na esquina de casa. Satisfeita com meu final de semana. Cuidada como uma orquídea.
Isso tudo não é história de pescador.
Eu juro.
É tudo verdade.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

John Graz e a arte de aceitar ser cuidado

Terça-feira. 6 de abril. 8h40.
Acordo com meus humores gregos fora de ordem. Não estou bem, meu Deus... Me permito então mais cinco minutos embaixo do edredom. Fecho os olhos e penso no dia que me espera lá fora. Tenho um exame de rotina pra fazer às 9h30, preciso terminar um livro ainda antes do almoço, às 13h30 tenho que almoçar com Isadora e depois correr pra agência onde estou trabalhando todos os dias à tarde. Aperto as pálpebras pensando que meu dia não será fácil. Ah! Há ainda um agravante: é dia de rodízio do carro. O aconhego morno das cobertas ainda me dá mais uns minutinhos de ternura para que eu me prepare psicologicamente.
Levanto, preguiçosa, tomo um banho rapidex, me visto, olho o relógio: vou ter que pular meu habitual café com torradas. Detesto isso. Mas fazer o quê?
Saio apressada, com meu freela embaixo do braço para fazer na sala de espera do consultório. Sei que vai demorar. Na pressa, esqueço de pegar o guarda-chuva. Saio do prédio, e é batata: começa a chover. Corro com o freela servindo de protetor para minha cabeça e meus cabelos, tentando arranjar um táxi. Instalada no possante, depois de algum tempo percebo que o motorista não sabe o caminho direito, mas também não me diz ou me pede ajuda. Ele deve ser novo de praça, e dirige mal, além de não ter destreza pra se safar no trânsito pesado de São Paulo numa manhã de muita chuva.
Vou me agoniando: estou atrasada, peço para ele manter à direita que vamos perder a entrada. Ele passa para a pista da esquerda. Eu digo, firme: Moço, é para a direita! Nós vamos perder a entrada da 9 de julho! Ele se desculpa e faz um deus nos acuda para conseguir dobrar à direita. Não quero me exasperar com o homem que deve ter minha idade. Provavelmente perdeu o emprego e está estreando na praça pra garantir o orçamento familiar, eu penso com meus botões. Alívio... mas por pouco tempo.
Logo estamos perdidos em um oceano de carros espremidos na 9 de julho, e ele se enfiando nos pontos que estão mais estrangulados. Não aguento e digo a ele: Moço, a gente não pode ir pelo corredor de ônibus? Táxi com passageiro pode, não pode? Ele me olha como se eu tivesse dito abracadabra, e tenta ir para a esquerda. Manobras difíceis para chegar lá. Enfim, estamos no corredor, andando devagar, mas ao menos andando. Me dá um frio no estômago: Meu deus, ele vai ter que parar pra eu descer na esquina da avenida Brasil, como ele conseguirá sair daqui para a direita com este mar de carros e sua falta de jeito? Agora chove canivetes. Ele vai se atrapalhando mais. Eu antecipo: Moço, eu vou descer na avenida Brasil com 9 de julho. Ele faz um rosto de não e sim, um meneio de cabeça que só vi quando visitei a Índia e o Nepal, um mexer de cabeça que não parece sim, mas algo que transmite insegurança. Ele acha que não vai conseguir, percebo...
Precavida, peço a ele que se mantenha no corredor, que eu me virarei pra descer. Bom, chegamos na malfadada esquina da Brasil. Peço que me diga quanto é. Mas ele resolve jogar o carro para a faixa da direita. Não consegue. Eu peço então: Moço, olha aqui, pode ficar com o troco. E me aventuro a fazer algo que jamais faço: algo perigoso, uma contravenção. Desço pela porta da esquerda, depois de ele olhar o retrovisor e me dizer que não vem nenhuma moto. Passo na frente de um ônibus que está parado no farol vermelho. Sinto alívio por ter me livrado do problema do táxi, porém... esqueci que não tinha guarda-chuva, e chove pesado agora. Tenho que atravessar a avenida e andar uns 200 metros embaixo do temporal. O freela vai na cabeça, apenas pra dizer que estou tentando me proteger. O tênis lindo que ganhei de aniversário já está encharcado apenas alguns passos depois.
Eis que vejo a clínica. É como se fosse um oásis... Estou toda molhada, o papel do meu freela está destroçado pela chuva, estou em cacos (e não faz nem 45 minutos que saí de casa...). O dia será longo...
Entro e me sento, pessimista, diante da recepcionista. Talvez tenha que esperar muito pra ser chamada pro exame, eu naquele estado de molhadeira. A moça da recepção está ao telefone. Já sei que vai demorar e blá-blá-blá... me sinto péssima. Afinal, meus humores gregos gritam lá dentro. O dia será longo, eu sei.
Mas para meu espanto a vida me puxou o tapete positivamente. A recepcionista rapidamente anota meus dados e me pergunta se quero um café ou capuccino. Uma estrelinha brilha dentro de mim: eu estava em jejum por não ter tido tempo para o café da manhã. Digo, felizinha, que quero capuccino porque estou sem café da manhã. Ela então liga para a copa e pede capuccino com bolachinha para dona Sandra. Me imagino numa pegadinha, aquilo tudo não pode ser verdade. Ela aproveita pra me dizer que a clínica tem um novo conceito, um atendimento especial para exames de imagem para mulheres. Já me sinto filmada e logo algum apresentador de programa dominical me dirá: olhe, você está no programa do frufru...
Fico ressabiada, o dia tinha começado mal, o certo não seria continuar mal até o fim?
Chega o capuccino com bolachinhas, e me sento num sofá acolhedor naquela que deve ter sido uma casa maravilhosa nos anos 60-70. Do sofá vejo o jardim, onde há um painel em alto-relevo (acho que é de John Graz). Belíssimo. Penso que eu gostaria de ter morado ali com minha família. A gente correndo de bicicleta, capotando sobre o painel do Graz. Minha mãe ia ficar maluca...
Acabo meu café da manhã, e a mocinha da recepção me pergunta com voz doce: dona Sandra, depois do exame a senhora vai precisar de um táxi, não é? Posso já ir providenciando porque eles costumam demorar. Eu digo não! É pegadinha. E das feias! Mas lá no íntimo vou amaciando o coração calejado com a falta de cuidado. Aceito como uma ovelha a sua oferta, e me imagino quentinha debaixo daquele monte de lã que a envolve, sussurrando béhbéhbéh...
Outra moça desce a escadaria e chama: senhora Sandra Brazil. Não acreditei que seria atendida tão rápido. Mas subo atrás da moça, com uma sensação cálida de que estão cuidando de mim. Acostumada a fazer exames em fast-foods clínicos, fico impressionada ao ser levada a um closet, receber um avental azul-marinho longo e pantufas da mesma cor para fazer o exame. Há um pufe anos 50 em frente de um espelho e me sinto uma Rita Hayworth mimada por seus fãs. Dispenso as pantufas (adoro andar descalça).
Durante o exame, a moça vai me contando que faz biomedicina à noite, que gosta de trabalhar em clínicas voltadas para a mulher, como esta em que estamos. Ela pergunta quantos anos tem meu bebê, eu digo a idade da minha filha: 22 anos. Ela diz que não pareço ter uma filha dessa idade, que imaginou que tenho filhos pequenos. Sei que ela está sendo generosa e educada; o exame é chatinho e ela está tentando me animar, é parte do seu trabalho. Mas uma graça profana já tomou conta de mim. Sou uma estrela hollywoodiana mimada. Estou adorando isso depois de tudo que passei nessa manhã.
Me troco e desço as escadas daquela casa belíssima, que deve abrigar tantas histórias. As proprietárias moraram anos ali com os pais, a médica me contou. Invejo (uma inveja do bem) esta família que acordava e tomava café da manhã mirando John Graz. No entanto, um pontinho na memória me lembra que no jardim da minha casa modesta havia um canteiro de rosas cor-de-rosa plantadas por minha mãe. Também havia uma flores chamadas de 'onze-horas'. Às vezes, ela cortava as rosas mais bonitas, embrulhava e eu levava para a professora. Saudade daqueles dias.
Chego na recepção, a moça diz que o táxi está atrasado, mas que ela pediu para a copeira chamar um táxi na avenida. Desacostumda a ser cuidada assim, eu digo: nã, não precisa, eu mesma pego. Ela me pede que aguarde um minutinho. Vai até uma gaveta e pega um pacote. Ganho um presente por ter ido àquela clínica. Bem, nessa altura já creio que meu dia 'virou' e será lindo.
A copeira chega com a notícia de que o táxi me espera lá fora. Me despeço e agradeço, muito. Saio e ainda fico um segundinho a mirar o painel colorido acima da grama. O John Graaz da minha infância eram as rosas no canto do jardim - perfumadas e delicadas como as mãos de minha mãe - e os livros que eu ganhava do meu pai no dia do pagamento, preciosos como joias.
Vou andando e pensando que cada um tem um John Graz próprio, que não deixa de ser precioso, independentemente da forma. Imagino no futuro qual será o John Graz que percorrerá as lembranças de infância da minha filha.
Entro no táxi, o motorista sorri e me diz: bom dia. Parou a chuva, a senhora tem sorte. Pra onde vamos?
Na linguagem do futebol chamaríamos isso gol de virada.
Os humores gregos se desvaneceram por completo. Um alívio absoluto toma conta de mim.
Ganhei o dia.

(Ah, em tempo: a clínica de que falo é a Clínica Sandra Senday.)

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Tudo Bem

Sexta-feira Santa. Da paixão.
E falando em paixão:

"Já não tenho dedos pra contar
De quantos barrancos despenquei
E quantas pedras me atiraram
Ou quantas atirei
Tanta farpa tanta mentira
Tanta falta do que dizer
Nem sempre é "so easy" se viver

Hoje eu não consigo mais me lembrar
De quantas janelas me atirei
E quanto rastro de incompreensão
Eu já deixei
Tantos bons quanto maus motivos
Tantas vezes desilusão
Quase nunca a vida é um balão

Mas o teu amor me cura
De uma loucura qualquer
É encostar no seu peito
E se isso for algum defeito
Por mim tudo bem
tudo bem"

(Lulu Santos / Nelson Motta)