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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

John Graz e a arte de aceitar ser cuidado

Terça-feira. 6 de abril. 8h40.
Acordo com meus humores gregos fora de ordem. Não estou bem, meu Deus... Me permito então mais cinco minutos embaixo do edredom. Fecho os olhos e penso no dia que me espera lá fora. Tenho um exame de rotina pra fazer às 9h30, preciso terminar um livro ainda antes do almoço, às 13h30 tenho que almoçar com Isadora e depois correr pra agência onde estou trabalhando todos os dias à tarde. Aperto as pálpebras pensando que meu dia não será fácil. Ah! Há ainda um agravante: é dia de rodízio do carro. O aconhego morno das cobertas ainda me dá mais uns minutinhos de ternura para que eu me prepare psicologicamente.
Levanto, preguiçosa, tomo um banho rapidex, me visto, olho o relógio: vou ter que pular meu habitual café com torradas. Detesto isso. Mas fazer o quê?
Saio apressada, com meu freela embaixo do braço para fazer na sala de espera do consultório. Sei que vai demorar. Na pressa, esqueço de pegar o guarda-chuva. Saio do prédio, e é batata: começa a chover. Corro com o freela servindo de protetor para minha cabeça e meus cabelos, tentando arranjar um táxi. Instalada no possante, depois de algum tempo percebo que o motorista não sabe o caminho direito, mas também não me diz ou me pede ajuda. Ele deve ser novo de praça, e dirige mal, além de não ter destreza pra se safar no trânsito pesado de São Paulo numa manhã de muita chuva.
Vou me agoniando: estou atrasada, peço para ele manter à direita que vamos perder a entrada. Ele passa para a pista da esquerda. Eu digo, firme: Moço, é para a direita! Nós vamos perder a entrada da 9 de julho! Ele se desculpa e faz um deus nos acuda para conseguir dobrar à direita. Não quero me exasperar com o homem que deve ter minha idade. Provavelmente perdeu o emprego e está estreando na praça pra garantir o orçamento familiar, eu penso com meus botões. Alívio... mas por pouco tempo.
Logo estamos perdidos em um oceano de carros espremidos na 9 de julho, e ele se enfiando nos pontos que estão mais estrangulados. Não aguento e digo a ele: Moço, a gente não pode ir pelo corredor de ônibus? Táxi com passageiro pode, não pode? Ele me olha como se eu tivesse dito abracadabra, e tenta ir para a esquerda. Manobras difíceis para chegar lá. Enfim, estamos no corredor, andando devagar, mas ao menos andando. Me dá um frio no estômago: Meu deus, ele vai ter que parar pra eu descer na esquina da avenida Brasil, como ele conseguirá sair daqui para a direita com este mar de carros e sua falta de jeito? Agora chove canivetes. Ele vai se atrapalhando mais. Eu antecipo: Moço, eu vou descer na avenida Brasil com 9 de julho. Ele faz um rosto de não e sim, um meneio de cabeça que só vi quando visitei a Índia e o Nepal, um mexer de cabeça que não parece sim, mas algo que transmite insegurança. Ele acha que não vai conseguir, percebo...
Precavida, peço a ele que se mantenha no corredor, que eu me virarei pra descer. Bom, chegamos na malfadada esquina da Brasil. Peço que me diga quanto é. Mas ele resolve jogar o carro para a faixa da direita. Não consegue. Eu peço então: Moço, olha aqui, pode ficar com o troco. E me aventuro a fazer algo que jamais faço: algo perigoso, uma contravenção. Desço pela porta da esquerda, depois de ele olhar o retrovisor e me dizer que não vem nenhuma moto. Passo na frente de um ônibus que está parado no farol vermelho. Sinto alívio por ter me livrado do problema do táxi, porém... esqueci que não tinha guarda-chuva, e chove pesado agora. Tenho que atravessar a avenida e andar uns 200 metros embaixo do temporal. O freela vai na cabeça, apenas pra dizer que estou tentando me proteger. O tênis lindo que ganhei de aniversário já está encharcado apenas alguns passos depois.
Eis que vejo a clínica. É como se fosse um oásis... Estou toda molhada, o papel do meu freela está destroçado pela chuva, estou em cacos (e não faz nem 45 minutos que saí de casa...). O dia será longo...
Entro e me sento, pessimista, diante da recepcionista. Talvez tenha que esperar muito pra ser chamada pro exame, eu naquele estado de molhadeira. A moça da recepção está ao telefone. Já sei que vai demorar e blá-blá-blá... me sinto péssima. Afinal, meus humores gregos gritam lá dentro. O dia será longo, eu sei.
Mas para meu espanto a vida me puxou o tapete positivamente. A recepcionista rapidamente anota meus dados e me pergunta se quero um café ou capuccino. Uma estrelinha brilha dentro de mim: eu estava em jejum por não ter tido tempo para o café da manhã. Digo, felizinha, que quero capuccino porque estou sem café da manhã. Ela então liga para a copa e pede capuccino com bolachinha para dona Sandra. Me imagino numa pegadinha, aquilo tudo não pode ser verdade. Ela aproveita pra me dizer que a clínica tem um novo conceito, um atendimento especial para exames de imagem para mulheres. Já me sinto filmada e logo algum apresentador de programa dominical me dirá: olhe, você está no programa do frufru...
Fico ressabiada, o dia tinha começado mal, o certo não seria continuar mal até o fim?
Chega o capuccino com bolachinhas, e me sento num sofá acolhedor naquela que deve ter sido uma casa maravilhosa nos anos 60-70. Do sofá vejo o jardim, onde há um painel em alto-relevo (acho que é de John Graz). Belíssimo. Penso que eu gostaria de ter morado ali com minha família. A gente correndo de bicicleta, capotando sobre o painel do Graz. Minha mãe ia ficar maluca...
Acabo meu café da manhã, e a mocinha da recepção me pergunta com voz doce: dona Sandra, depois do exame a senhora vai precisar de um táxi, não é? Posso já ir providenciando porque eles costumam demorar. Eu digo não! É pegadinha. E das feias! Mas lá no íntimo vou amaciando o coração calejado com a falta de cuidado. Aceito como uma ovelha a sua oferta, e me imagino quentinha debaixo daquele monte de lã que a envolve, sussurrando béhbéhbéh...
Outra moça desce a escadaria e chama: senhora Sandra Brazil. Não acreditei que seria atendida tão rápido. Mas subo atrás da moça, com uma sensação cálida de que estão cuidando de mim. Acostumada a fazer exames em fast-foods clínicos, fico impressionada ao ser levada a um closet, receber um avental azul-marinho longo e pantufas da mesma cor para fazer o exame. Há um pufe anos 50 em frente de um espelho e me sinto uma Rita Hayworth mimada por seus fãs. Dispenso as pantufas (adoro andar descalça).
Durante o exame, a moça vai me contando que faz biomedicina à noite, que gosta de trabalhar em clínicas voltadas para a mulher, como esta em que estamos. Ela pergunta quantos anos tem meu bebê, eu digo a idade da minha filha: 22 anos. Ela diz que não pareço ter uma filha dessa idade, que imaginou que tenho filhos pequenos. Sei que ela está sendo generosa e educada; o exame é chatinho e ela está tentando me animar, é parte do seu trabalho. Mas uma graça profana já tomou conta de mim. Sou uma estrela hollywoodiana mimada. Estou adorando isso depois de tudo que passei nessa manhã.
Me troco e desço as escadas daquela casa belíssima, que deve abrigar tantas histórias. As proprietárias moraram anos ali com os pais, a médica me contou. Invejo (uma inveja do bem) esta família que acordava e tomava café da manhã mirando John Graz. No entanto, um pontinho na memória me lembra que no jardim da minha casa modesta havia um canteiro de rosas cor-de-rosa plantadas por minha mãe. Também havia uma flores chamadas de 'onze-horas'. Às vezes, ela cortava as rosas mais bonitas, embrulhava e eu levava para a professora. Saudade daqueles dias.
Chego na recepção, a moça diz que o táxi está atrasado, mas que ela pediu para a copeira chamar um táxi na avenida. Desacostumda a ser cuidada assim, eu digo: nã, não precisa, eu mesma pego. Ela me pede que aguarde um minutinho. Vai até uma gaveta e pega um pacote. Ganho um presente por ter ido àquela clínica. Bem, nessa altura já creio que meu dia 'virou' e será lindo.
A copeira chega com a notícia de que o táxi me espera lá fora. Me despeço e agradeço, muito. Saio e ainda fico um segundinho a mirar o painel colorido acima da grama. O John Graaz da minha infância eram as rosas no canto do jardim - perfumadas e delicadas como as mãos de minha mãe - e os livros que eu ganhava do meu pai no dia do pagamento, preciosos como joias.
Vou andando e pensando que cada um tem um John Graz próprio, que não deixa de ser precioso, independentemente da forma. Imagino no futuro qual será o John Graz que percorrerá as lembranças de infância da minha filha.
Entro no táxi, o motorista sorri e me diz: bom dia. Parou a chuva, a senhora tem sorte. Pra onde vamos?
Na linguagem do futebol chamaríamos isso gol de virada.
Os humores gregos se desvaneceram por completo. Um alívio absoluto toma conta de mim.
Ganhei o dia.

(Ah, em tempo: a clínica de que falo é a Clínica Sandra Senday.)

3 comentários:

  1. Como as coisas são diferentes, né, Sandra? Meu John Graz de outrora eram o feio "cimão" e o pobre jardinzinho ao fundo do nosso terreno, com seus cactos que jorravam "leite" ao serem cortados e o paredão do fundo, do qual retirei um tijolo que servia de esconderijo para coisas que nem lembro mais o que eram...

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  2. Beto, olha só a riqueza do seu John: há um tijolo que é uma espécie de esconderijo, um guarda-tesouros de criança. Olha que história!... E o cimão, aquela casa antiquíssima, tivesse sido restaurada, seria um charme com aquelas portas maciças em duas folhas e janelas com os vidros para fora... Ah, o jardim dos fundos, um dia ele serviu de galinheiro, lembra? E o pai cuidava daquelas galinhas quando elas ficaram doentes, lembra? Como se fossem cachorros ou gatos de estimação. rs Isso também é uma forma de John Graz da nossa vida.

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  3. Ele faz um rosto de não e sim, um meneio de cabeça que só vi quando visitei a Índia e o Nepal, um mexer de cabeça que não parece sim, mas algo que transmite insegurança. Ele acha que não vai conseguir, percebo...

    genial! ma mère, mon coeur. . .

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