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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

O quereres e as ciladas do amor

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No post de 27 de janeiro (http://desafoparacleis.blogspot.com/2012/01/na-carne-e-no-osso.html), intitulado "Na carne e no osso" (transcrito no final desta postagem), eu falei do amor, do encontro, do desencontro, do renascer, da estação da espera, que é como um outono arrastando um vento de folhas à procura do sim.
Falei de sentimentos, de aceitação, mas falei também do travo amargo de entender de verdade, na carne e no osso, pela primeira vez, o poema "Quadrilha".
Como num insight, vê-lo assim, traduzido, esquadrinhado nas entrelinhas diante dos meus olhos, como se, apesar de já o ter lido dezenas de vezes ao longo da vida, desde adolescente, dessa vez, sim, o soco tivesse vindo diretamente no eixo da dorsal, e me fizesse dobrar, e entender que sou mortal também nesse qesito.
Foi como se um arpão me atingisse em cheio e eu fosse um tubarão esperto, que tivesse ao longo da vida se esquivado de diversos ataques humanos. Safa, eu me achava. E o tubarão, esperto, controlado, autocentrado, que achava que poderia passar a vida fugindo de tudo e só se esquivando, viu-se pego com um arpão afiado, certeiro, feroz, direto no coração.
"Morri" vendo escoar as letras do poema "Quadrilha", aqueles nomes, um encadeado ao outro, como numa dança macabra, de gente que se busca, e nunca, jamais, nunquinha mesmo se terá tocado ou amado ou se querido um ao outro mutuamente.
O tubarão, que sou eu, foi descendo atravessado pela lança para o fundo do mar, como um bicho que vê toda sua esperteza de anos ser atirada no lixo, e aquele instante é a queda da sua derrota, e um cordão de boas estratégias se rompe para sempre. Tudo aquilo que se construiu para se proteger morre conosco. No fundo daquele mar escuro e sem som. Apenas seu algoz por testemunha...
Por que estou dizendo tudo isso?
Ah. Porque postei a música "O Quereres", e me lembrei que recentemente tive que estilhaçar um querer alheio, da pior forma possível. De um jeito que eu jamais gostaria de ter feito. Mas não me sobrou alternativa.
Eu sou uma mulher-enguia. E só deixo de ser aassim se me apaixono perdidamente, o que ocorre raramente, confesso. Portanto, a qualquer sinal de muita aproximação inicial, me sinto sufocada, cerceada em meus movimentos, vigiada e presa.
Eu adoro namorar, ser amada, gostar, amar. Como no roteiro de Domingos de Oliveira no filme Todas as mulheres do mundo, em que ele se refere à personagem Alice, interpretada por Leila Diniz, eu me sinto "uma mulher solar".
Gosto de me divertir, de amar, de namorar, viajar, estabelecer relações estáveis, manter essas relações de modo cuidadoso, mas paralelamente manter meu espaço e o de minha filha e de minha família resguardados e, sobretudo, de meu trabalho. Essas coisas são sagradas para mim.
Pois eu disse numa postagem anterior que havia sem querer, num dia de outubro, quando cantarolava e passeava numa esquina de Perdizes, dado de cara com meu passado. Sim, isso aconteceu. Eu estava sozinha depois do fim de uma longa relação, e estava gostando da vida de solteira, convites, lugares e pessoas novas. Estava reconstruindo tudo de novo e minha vida tomava um rumo completamente novo. Mas, de repente, o passado arqueou como um felino suas patas diante de mim, e não me deixou passar. E ali algo novo começou imediatamente.
Eu na verdade estava leve e queria apenas diversão e ver no que daria. No início, foi engraçado, jovial, cheio de novidades e fatos inusitados e cheios de vida e sopro e brisa de mar (afinal, meu passado é 8 anos mais jovem, totalmente diferente de mim, belo, os jeans e camisetas delineiam suas qualidades e encimam o All Star, tudo marcado nas artes marciais e fissurado em alta velocidade, enduros, carros, pick-ups, tudo o que eu nunca achei que encontraria um dia)... Mas... uma mulher como eu é "complexa", como me disse um dia Mr. Hide -- personagem de alguns posts do segundo semestre de 2011. E uma mulher "complexa" não se satisfaz com esculturas de taekondô e alta velocidade e 300 km por hora...
Não havia a mínima possibilidade daquilo dar certo, vi logo, mas a figura era do bem e muito querida fazia tempo, e há 17 anos havia ficado um ponto de interrogação entre nós, e ele agora queria um ponto-final. Verdadeiro. Do tipo ter uma casa juntos, quem sabe um filho, um negócio juntos (talvez?), eu me mudar para sua casa com minha filha...
Ele veio com as tábuas escrituradas de nosso futuro e em um mês estava tudo resolvido (por ele). Inclusive, como se mudara para perto de mim antes de nosso encontro (éramos vizinhos e nem sabíamos, havia muito tempo), ele tomou conta de meus horários, inclusive, de meus horários de trabalho. Os porteiros já nem interfonavam mais e blimblom, ele chegava: "Oi , amor", "Oi, Sandrinha! Que saudade.... -- era pleno meio da tarde de sábado e eu tinha 600 páginas para ler e entregar na 2a feira ao meio-dia... :-(((
Eu pedia com delicadeza: "Nossa, mas você nem me avisou que vinha... Podemos falar mais tarde..." A resposta era rápida: "Ah eu estava passando e me lembrei que você gosta de tal coisa, eu comprei e trouxe... Quer tomar um lanche comigo? Só uns 20 minutos? Assim você relaxa um pouco..."
Eu contava até 20, e pedia para deixarmos para de noite aquilo, porque eu tinha que trabalhar. À noite, logo ele me ligava, aí eu dava aquele tenebroso aviso de que não tinha conseguido terminar meu lote de páginas e teria que ir madrugada adentro no trabalho... Não poderíamos nos ver naquele sábado. A pressão começou a ficar cada vez maior, eu me sentindo cada vez mais oprimida e ele começou a me invadir cada vez mais. E a não me deixar trabalhar sossegada.
Fiquei doente um dia, e minha filha ficou me fazendo companhia. Eu pedi que não ele viesse, porque eu queria ficar com ela. Houve um enxurrada do outro lado do telefone. Ele viria me ver, estava muito preocupado comigo etc. Tive de ser dura: "Não venha! Eu não vou lhe receber hoje. Quero ficar só com minha filha."
Foram semanas de "cerco de Madri", um estado de sítio. Comecei a dar sinais de cansaço emocional e já não queria mais sair nem fazer os programas joviais que ele havia me apresentado e eu havia gostado tanto.
Ele começou a apertar o cerco e cada vez mais falava em "quando morássemos juntos, nos casássemos", e aquilo me causava constrangimento, porque eu sabia que aquilo jamais aconteceria. Ao mesmo tempo, por ele ser uma pessoa boníssima, cheia de boas intenções em relação a mim, me paparicando ao extremo, jamais sendo indelicado, muito ao contrário, eu tinha um prurido de pôr um fim naquilo que eu sabia agora que jamais deveria ter começado, sequer para ser leve e descontraído. Era agora um peso enorme para mim carregar aquilo.
Eu queria algo leve, achei que ia me divertir nos carros em alta velocidade, na escultura de sua beleza e juventude e dentes e sorriso lindos e olhos claros como o mar quando fazia calor... Mas não. Tudo que consegui foi alguém jovem que me queria integralmente. Eu quis desaparecer.
O cerco se fechou no dia em que ele me perguntou se eu tinha outra pessoa. Porque eu estava distante. Minha resposta foi curta: "Você deve dar campana na esquina do meu prédio, imagino. Portanto, deve ver que a luz de meu escritório fica acesa madrugadas adentro pois vivo trabalhando, e que jamais saio de carro à noite para lugar nenhum desde que estamos juntos. Portanto, sua pergunta me ofende. Além disso, minha frieza tem que ver com seu comportamento obsessivo. Estou me sentido oprimida, cerceada, presa em minha própria casa. Me deixe em paz!"
As coisas só pioraram. O reveillon chegou e fomos dançar na virada. Eu encontrei amigos na festa. Ele ficou inseguro e foi antipático com todos. Deixei minha bolsa sobre o pole dance para dançar mais à vontade e tomar meu prosecco. Ele a pegou e me disse que a segurasse, era melhor assim. Isso me soou uma ordem. Disse que eu parasse de beber, porque eu estava "alterada" -- eu só tinha bebido até então meia taça de prosecco, e "alterada" significa: eu estava dançando "alegre e solta" na pista, afinal, era ano novo... Bem... Aquilo me irritou de tal forma, que peguei minhas coisas, me despedi gentilmente dos amigos e paguei a conta e saí, e o figura ficou como barata tonta atrás de mim -- "o que eu fiz?"
Na volta, vim dirigindo meu carro. E não acreditei, apesar de tudo que havia acontecido, ele veio comandando freneticamente, como co-piloto: "Vá para a esquerda que esta pista é muito esburacada, vá para a direita porque este carro da frente está muito lento. Aqui você pode ir mais veloz, não há radar. Vamos por este caminho..." Uma Sandra cheia de luz foi aguentando aquilo, mas, de repente, uma Sandra devil freou o carro e gritou com todas as suas forças: "Pare de me dar ordens! Você não é meu dono. Este carro não é seu. Você sequer está dirigindo. Cale esta matraca!! Desça desse carro, AGORA!"
Ele ficou em silêncio por um milissegundo. Se arrumou no banco e pediu desculpas e pediu se poderia voltar comigo. "Pode! Desde que não dê um piu!"
Ele veio em silêncio. Deixei-o em sua casa. Ele tentou pedir algo, mas eu fui embora.
Ainda houve uma tentativa. Como eu disse, me sentia constrangida de dizer "não quero mais", tenho dificuldade com isso. Mas ele mesmo deu o nó em sua forca.
O cerco de Madri foi fechando, e eu sou muito livre para tentarem me cercear. Ninguém conseguiu até hoje. Portanto...
Um dia, ele pediu para me ver à noite, no meio da semana, eu acedi, mas disse que só um pouco, porque eu tinha que trabalhar...
Ele chegou, saímos para comer algo, eu sem a mínima vontade. Eu não estava fazendo força para conversar, então ele puxou uma conversa qualquer. Entendiada, respondi. De repente, no meio de nossa conversa banal, ele puxa algo sem pé nem cabeça: "acho que vi seu ex-namorado perto de sua casa outro dia à noite... E vi você de tarde na terça-feira num lava-rápido da Sumaré falando ao telefone... Você estava falando com ele?" Hã!!
Bom, as duas coisas não tinham ligação uma com a outra, começa por aí. A falta de lógica e articulação entre das duas frases já foram o suficiente para me irritar. Detesto falta de lógica. Segundo, tive que lembrá-lo de que eu trabalho à tarde numa editora, cumpro um horário e não posso sair para lavar o carro numa terça à tarde. Portanto, de detetive ele estava péssimo, nota zero, não era eu ao telefone no lava-rápido, então a suposição de que eu estava falando com meu ex-namorado estava morta, a partir desse meu desarmamento de argumentação ilógica dele.
Quanto à ideia tresloucada de que meu ex-namorado poderia estar próximo de minha casa "fazendo ronda", tive que lembrá-lo de que meu ex-namorado é um homem, não um menino, que tem uma agenda cheia de trabalho e de diversão, portanto, não tem tempo, aliás, para perder dando campana diante da porta de ex-namoradas; se estava tudo terminado, ele jamais ficaria parado próximo de minha casa; esse não era seu perfil. Só um maluco teria essas visões que ele estava tendo... Tive de dizer isso. Um ciúme machadiano... Bentinho. E me imaginei Capitu, cigana de olhos dissimulados.
Enfim, aproveitei o ensejo para dizer que não era mais possível a gente continuar (ele me dera o queijo e a faca; eu só cortei). Eu me sentia oprimida fazia tempo, e a alegria do começo e os bons momentos já não existiam mais entre nós... Para minha surpresa, ele ficou atônito, e por mais que eu estivesse dando sinais havia muito tempo, mais de mês, ele me disse que esperava que ficássemos juntos, construíssemos uma família. Ele não havia percebido nada em mim que estivesse levando ao fim... Ele continuava construindo as coisas para que eu ficasse cada vez mais enredada em sua vida, como uma aranha constrói sua teia.
Bom, diante de seu choque, eu me condoí, e lhe dei apoio. Passei alguns dias lhe dando atenção, carinho, fazendo companhia. Ele realmente não esperava e ficou muito abalado. E minha culpa cristã me fez ainda ficar esses dias ao lado dele para que ele não se entristecasse demais sozinho.
Mas... alguns dias depois, isso se voltou contra mim. Ele passou a pedir para voltar. Eu dizendo não, ele voltou a dizer que eu tinha outra pessoa, que eu o desprezava, que etc. etc. Resolvia não o ver mais. E me senti péssima por isso.
E isso tudo me levou ao poema "Quadrilha"... Não querer alguém que me queria tanto, com tanto desejo verdadeiro, me fez desenterrar meus próprios desejos frustrados de toda uma vida. Eu não quis algumas pessoas que me amaram muito, mas também algumas pessoas não quiseram meu amor ao longo da vida. E esses mortos, nesse dia, rondaram meus pensamentos. E pude compreender no osso triscado por uma navalha a dor do poema de Drummond. Corta como gelo. Dói, como navalha. Na carne.
A cilada do amor, caros leitores. A armadilha do amor.
"(...)
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és (...)"

(O quereres, Caetano Veloso)





Na carne e no osso (Postagem de 27.1.2012)
Quadrilha

"João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para o Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história."

(Carlos Drummond de Andrade)

Hoje, depois de tanta literatura, amores, poemas, relações mal acabadas, mal alinhavadas, malpontuadas, depois de tanta semiótica, ótica cruel de desencontros, mas... às vezes, ao contrário disso tudo: encontros: rufar de tambores de alumbramento, de apaixonamento, de entrega e de conquista --uma espada cravada no peito da presa, e por que não, em nosso peito também? Que o amor tem dessas vicissitudes. E dessas surpresas. Um despertar, que é um farfalhar de folhas, acordando a vida depois de um outono silencioso de tons amarelos e decíduos... A estação à espera de um sinal...
Pois hoje, justamente hoje, eu entendi / a frio, a ferro, a estilete / rasgando a carne raspando no osso o sentido mais dolorido do poema "Quadrilha", de Drummond.
Fazer doer no outro a tristeza do amor não correspondido não lustra nem um pouco minha vaidade, não ::: é mais sofrido em mim -- (faz lembrar a dor socada profunda de meus próprios amores não correspondidos. É uma cerimônia estranha de desenterrar de mortos.)
* Imagem disponível no blogue http://mesmomomento.blogspot.com/2011/01/bem-me-quer.html

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