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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

A ira em Iemanjá e o toque delicado de Elizabeth Bishop

Uma arte

"(...)
Perdi duas cidades lindas. Um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo, que eu amo)
não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser um mistério
por muito que pareça (escreve) muito sério."

(Elizabeth Bishop. Tradução de Paulo Henriques Brito)

Ando mesmo perdendo coisas... E pessoas... E sequer olho para trás para velar o morto quando percebo que perdi... Estranho esse meu comportamento. Eu, que sou tão cuidadosa com tudo, deixei absolutamente de cuidar das coisas perdidas -- sejam objetos, sejam pessoas.
Mas perder, como tudo nessa nossa vida, Elizabeth me ensinou, é uma arte e "não é nada sério"... Esse é o ganho: as coisas devem deixar de ter a importância faraônica de nos atingir como um carro de Tutancamon que nos atropele em cheio. Não! Deixar que as coisas e os fatos contenham em si o acidente natural de se evadirem de nós, o acidente de perdê-los.
Assim disse Elizabeth, sussurrou para mim com aqueles olhos azuis inteligentes de quem aprendeu logo cedo a perder: pai e mãe, a viver em colégios internos, a ter problemas respiratórios -- faltava-lhe o ar, já esta uma grande perda. Apesar da boa herança em dinheiro deixada pelo pai, da cultura, dos estudos, das viagens, Elizabeth deslocou-se e veio morar no Brasil viver um grande amor, uma relação forte, porém cheia de turbulências. Sua companheira no entanto suicidou-se.
No percurso da vida de Elizabeth havia o destino do acidente das perdas. Perder um relógio, uma escala, um avião, um vaucher, um sobrado, uma vila tornou-se algo menor diante dessas perdas enormes pessoais, diante de seu destino.
É difícil perder sem dor, mas é preciso tentar aceitar o percurso cotidiano de nossas perdas, da simples carteira com documentos a uma relação amorosa ou a uma amizade, ou por exemplo, objetos importantes, como os brincos de pérola que foram um presente de um companheiro e que se perderam para sempre em um hotel em Búzios e jamais serão recuperados, e que eram a última lembrança dessa relação.
O acidente estava ali, gritando, mas eu insisti. É preciso aceitar e calar. Isso não é nada sério. O ganho é que se foram as pérolas e seus engates de ouro na bela caixinha de veludo preta. O acidente consumou-se todo assim. Serviço completo. Mas o ganho é que ninguém nos tira a lembrança e a memória e a alegria do dia em que recebi aquele par de brincos: aí entra a arte do engenho de Bishop.
Eu deveria ganhar duas pérolas simples, pequenas, de Natal, e eu estava bem feliz pelo fato. Fomos juntos comprar para que eu escolhesse o tom da pérola e o tamanho que me agradasse. Quando chegamos lá, fui atingida por uma surpresa: ele havia escolhido um par de brincos muito mais sofisticados do que eu imaginava. Pérolas de uma cor vintage, grandes sem ser enormes e no estilo Grace Quelly, aquele modelo clássico usado pela atriz preferida de Alfred Hitchckock. Uma pérola no meio da orelha, a outra fica presa abaixo.... Era isso que ele havia escolhido para mim.
Eu disse que seria mais caro do que o combinado, mas ele argumentou que era o presente que gostaria de me dar.
A lojista os colocou em uma caixa linda de veludo preto, e ali ele ficou até a noite do Natal. Na noite, na troca de presentes, ele veio com a caixinha e me disse: "Agora você pode abrir..."
Coloquei os brincos e não os tirei mais, sempre tendo o cuidado apenas de tirá-los para tomar banho. Eles eram perfeitos para o meu rosto, ou combinavam com meu sorriso quando vejo agora minhas fotos. Como tenho um sorriso muito rasgado e aparente, as pérolas eram a moldura perfeita brilhando ao redor da minha alegria... Eles viajaram comigo para muitos lugares, trabalharam comigo noites adentro, frequentaram editoras para as quais freelei em lugares que sequer menciono, pois não faziam jus a eles, tão sofisticados ele eram... Eu adoro pérolas, porque elas são simples, nisso está sua beleza.
Mas resolvi viajar com eles e os perdi num novo lugar e em nova companhia... Como numa ira ciumenta de Iemanjá, ela os sugou, arrastou, num revés, e numa tempestade os levou para o mar, e jamais os devolverá, como numa reprimenda a meu comportamento, e sequer sei por quê...
Mas não dei importância, porque "perder não é nada sério", não foi assim que Elizabeth Bishop alisou delicadamente sua vida difícil e cheia de perdas...
Foram-se as pérolas, ficaram as lembranças desses dias, das palavras ditas "Você está linda nesses brincos; pérolas combinam com você, são clássicas". Esse é o ganho... O que fica na memória e no coração. E eu me lembro de ter ficado extremamente feliz de os ter ganhado, porque um presente não é apenas um presente; é uma forma de dizer algo que não se consegue dizer com as palavras, e o objeto escolhido muitas vezes é um 'minivocê' que alguém escolhe tentando dar uma definição daquilo que sente, daquilo que você representa em sua vida. Naquele momento, me senti pérola. E uma pérola tem lá suas qualidades de gema, algo que se forma no tempo e que resiste, que se transforma em beleza depois de reagir a um grão de areia, e apesar de bela é dura, mas também muito sensível a qualquer elemento químico. Nada além de água e ar pode tocá-la, caso contrário, a pérola perderá seu viço...
E há aquele brilho, que nunca nenhuma outra gema terá. Fecho os olhos e posso vê-las sobre meu criado-mudo.
Portanto, no acidente das perdas, há ganhos. Eles estão disfarçados na memória, guardados conosco. E só Elizabeth sabe destrinchar, da melhor forma, e nos ensinar a Arte de saber perder...
Iemanjá fique com as pérolas. Comigo está guardado o melhor: a sutileza da memória e dos momentos.

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