Quem sou eu

Minha foto
No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Alfama, ginginha e saudades da Maria

Na segunda vez que estive em Lisboa visitei o bairro de Alfama pela primeira vez. Eu não estava bem, minha sinusite deu as caras no frio europeu e com aqueles carpetes nos hotéis...
Eu tinha febre e tossia muito, aquela tosse seca de sinusite. Os taxistas me ofereciam para parar em farmácias e comprar alguma pastilha, aí eu explicava que não adiantava, estava tomando antibótico e tinha que esperar passar o processo infeccioso mesmo, aí a tosse passaria.
Nesse dia da visita a Alfama, eu estava péssima, meus olhos estavam de farol baixo, a febre estava alta apesar do antibiótico e do antialérgico e anti-inflamatório. Antes, eu havia ido ao museu do azulejo, que é lindo, mas a visita tinha sido sofrida, apesar do brilho dos murais belíssimos... O museu do azulejo em Lisboa é um passeio ótimo, pena meu estado, pois a cada lance de escadas me lembro de uma sucessão convulsiva de tosse. Mas sobrevivi e adorei ver aquela beleza toda.
Depois, foi a vez de Alfama. Aquelas ruas tortuosas, em forma de labirinto. parece que você não vai sair em lugar nenhum. Mas de repente, pronto, você depara com um cantinho belíssimo, antiquíssimo, aquelas casas históricas. Tudo é medieval ali, além dos labirintos de suas ruas. Além da minha febre, que me fazia já sentir calafrios e andar em círculos por si só, a própria geografia do bairro ia me arrastando mais e mais para o destino minotáurico.
Bem, escureceu de repente. Era uma rua bem estreita. O sol não chegava ali.
Havia uma portinha numa esquina. Era uma espécie de boteco, mas não cabiam duas pessoas lá dentro sentadas, só se fosse em pé. Entramos. Foi pedida uma ginginha, um aperitivo português feito a base de cereja. Eu não pude experimentar, foi uma pena, eu que gosto de experimentar tudo. Mas a febre me consumia nas profundas, eu me sentia mal, e uma dose de álcool não me faria nada bem, pensei. Fiquei só observando.
Havia um balcão pequeníssimo. Do lado de cá uma mesica de nada e um banquinho. Comecei a ver tudo meio escuro. "Vou me sentar", pensei... Puxei o banquinho. A ginginha foi sendo sorvida a pequenos goles, como faz o bom bebedor. E a conversa deu seu start com a mulher que se postava ali detrás do balcão e tinha olhos bem grandes e escuros. Seu nome: Maria. Maria, como meu segundo nome, boa neta de portugueses que sou, não poderia ficar sem o nome da mãe de Jesus.
Pois a ginginha foi descendo lenta. E a conversa com a Maria também foi rolando solta. Maria foi contando que desde menina acompanhava a avó na cozinha de um restaurante. Dali foi um passo para, mocinha, ser a cozinheira de um restaurante de Alfama. Ela contou que as pessoas chegavam lá cerca de 22h e diziam: "A Maria ainda está aí... Só vamos comer se ela ainda estiver na cozinha". Pois ela que estava pronta para ir embora, punha de novo o avental, aquecia o fogão, e só pelo prazer de cozinhar e atender seus fregueses começava tudo de novo... Foram anos assim segundo ela.
Maria contou que aprendeu com a avó a escolher os melhores ingredientes. Ela disse, com aquele sotaque português que não sei imitar: "as cebolas, só compro as portuguesas, são as mais caras, mas as espanholas, por exemplo, parecem feitas de plástico, elas desfolham quando vamos fritar".
Eu, meio tonta no banquinho, fui registrando as histórias da Maria, e mais uma ginginha escorreu no copo. O copo foi esvaziando de novo, e a Maria foi nos contando agora suas histórias familiares. O bebedor de ginginha, atento, pois é um ótimo escutador de histórias de balcão.
Ela enfim havia se cansado e deixado o restaurante. Abrira então aquela bodeguinha onde servia os turistas que visitavam Alfama. Ali não dava para servir comida, porque era muito pequeno, apenas bebidas e alguns salgados. Eu perguntei: que tipos de salgado. Aí ela me mostrou um salgado típico, as pataniscas. Pedi um, quem sabe um pouco de sal me faria sentir melhor daquela zonzeira. Dei o primeiro nhac, era realmente uma delícia, feito de bacalhau e massa e frito. Ofereci a meu companheiro de viagem. Nhac. Também gostou.
Maria então nos contou que agora, para poder exercer sua arte da cozinha, convidava os familiares e amigos no fim de semana e servia suas deliciosas receitas, aprendidas com a avó.
Maria devia ter minha idade, ou até ser mais nova, mas já tinha filhos adultos e netos. É uma portuguesa muito bonita de cabelos e olhos escuros. Mas parece cansada e infeliz. Em apenas um momento, mencionou o marido que estava no andar de cima; percebi os olhos de Maria ao mencioná-lo, foram de um sofrimento acumulado profundo. Meu namorado então me abraçou com um carinho canceriano, percebeu que eu estava cansada e abatida no meu estado físico. Ele sorriu e falou a palavra mágica: San-San. Apesar das deliciosas histórias naquele cantinho de Alfama, naquele recorte no tempo, precisávamos ir, era preciso encontrar um restaurante de verdade e almoçar de verdade.
Nos despedimos de Maria, mas a vontade era ficar ali, na ginginha, nas pataniscas, de pé, no banquinho, ouvindo até de noite suas histórias um tanto melancólicas mas sedutoras -- afinal, ela é portuguesa! Mas essa foi uma das coisas de minhas viagens das quais jamais esqueci.
Tantas coisas acontecem. Conhecemos lugares, restaurantes, bares, pessoas interessantes, coisas incríveis...
Ora, pois! Eu tenho muita saudade daquela tarde em que eu descobri o que é uma ginginha, uma patanisca, mas, sobretudo, me ficam na memória as histórias e as saudades dos olhos escuros e marcantes de Maria.

(Em 11 de agosto de 2011)

Nenhum comentário:

Postar um comentário