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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Disparada

Para minha mãe

"Prepare o seu coração
Pras coisas
Que eu vou contar
Eu venho lá do sertão
(...)
Aprendi a dizer não
Ver a morte sem chorar
Laço firme e braço forte(...)" (G. Vandré)

Hoje é dia das mães, mas, pra mim, é como outro dia qualquer. Vou trabalhar como todos os outros dias depois do almoço-comemoração, enfrentar a vida como se não fosse "meu" dia e eu pudesse, enfim, ter uma trégua. Angustiada com isso? Não. Onde muitos não têm trabalho ou mesmo objetivo, eu ganho pra fazer o que gosto, consigo ter meus poucos mimos à custa do que faço cotidianamente. Quer coisa melhor? Ninguém me diz: não compre esse pretinho básico, está caro; não faça isso; agora vamos viajar; agora não vamos mais viajar; nós vamos a este show; nosso filho fará tal coisa e não outra. Não. Mas, apesar de ser muito conservadora (e quem não é tendo nascido nos anos 30? E muita gente é tendo nascido ontem...), foi ela quem me ensinou sobre feminismo, naquele seu linguajar direto e sem meneios de fazenda. "Minha filha, nunca dependa de ninguém. Estude, estude muito. Seja a melhor. Assim você nunca precisará pedir nada e nunca ficará presa." E eu, mesmo sendo muito rebelde, tendo muitos atritos com ela, arranca-rabos homéricos, fui seguindo essa "picada" que ela, sem querer, abriu a facão pra mim. Fui trilhando um caminho sem volta; chegou um momento que era impossível recuar: a liberdade tem um preço alto, já diziam, mas eu não recuei quando tive que pagar a primeira moeda. Isso também quem me ensinou foi ela. Que temos que assumir o que fazemos, sempre. Filha de fazendeiros, meu avô construiu sua vida sobre a inteligência e o trabalho, mesmo sem saber trançar as letras. Por isso, ela queria ser advogada, mas, naquele tempo, apesar de terem dinheiro para mandá-la estudar, ela não pôde, porque no pensamento deles as filhas mulheres tinham que se preparar para se casar. Ela se frustrou, mas não desistiu, e se tornou uma das melhores mulheres para "casar": não há um bordado mais bonito do que o dela; seus doces são deliciosos e bonitos de se ver; sua comida, a melhor que já comi; sua casa, até hoje, brilha, e você pode chegar a qualquer hora do dia, ela estará arrumada e perfumada; meu vestido de casamento, foi ela quem escolheu a renda francesa e o casquete, mandou tingir sapatos e meias para ficarem num tom sobre tom. Pena ela nunca ter me perdoado por não ter me casado como ela gostaria, em grande estilo, de branco, festa e buquê. Eu era rebeldíssima, aceitei apenas uma cerimônia sem convites impressos, às 10h30, numa capela, sem festa depois, e sem o branco tradicional que ela queria; acabei escolhendo um salmão-pink, que a entristeceu demais... Mas ao longo da vida, apesar de nossas diferenças, pude com a maturidade observar que nós somos uma caixa-de-Pandora-do-bem da união de nossos pais. Quando florescemos, pode-se ver em nós muitos dos traços deles, nas mínimas coisas: nos gestos, naquela ruga na testa, naquela paciência que você não sabe de onde retira, na sua força de leão que você, por mais medo que tenha, mostra a seu inimigo. Sem dúvida, a minha força, eu herdei dela. A minha pertinácia também. A obsessão pelos detalhes e por ter um entorno bonito ao redor, perfumado, também. A força para o trabalho, tudo dela. Do meu pai, eu herdei uma sensibilidade e uma delicadeza que me levaram a caminhos muito sutis, a observar o mundo com paciência e calma, observar as pessoas e descrevê-las com riqueza de detalhes, escrever sobre o mundo do dia a dia como se fosse as pedras do Taj Mahal, uma riqueza. Mas o que seria de mim sem a força dela? Um papel-arroz delicado que se quebraria diante da crueza do mundo. Então, apesar de nossas diferenças, tentei tirar o melhor dela, colocar em mim, para enfrentar a vida e as pessoas. Para quem me trata com delicadeza e carinho eu devolvo seu Heitor, calmo, paciente, sutil, silencioso, alegre. Para aqueles que me destratam, eu devolvo minha mãe-fazendeira: sobre as patas de um cavalo, eu disfiro palavras que nem eu gostaria de receber. E, muitas vezes, um silêncio que, seria preferível, ser trocado por palavras cruéis. Em nossa vida em família foi sempre ela quem deu o tom. Meu pai sempre concordava. Nós, os filhos, temos personalidade forte. Então, deve ter sido difícil pra ela elaborar isso. Sobretudo eu, a mais velha, a mais difícil, a mais impetuosa, mais cheia de vontade e personalidade. Mas fosse hoje eu teria dito a ela que reparasse bem: como ela poderia pedir para eu ser diferente? Eu sou igualzinha a ela em muitas coisas: "laço firme/laço forte". Foi ela quem me ensinou a guiar a vida assim, segurando firme as rédeas, não deixando que ninguém me conduzisse. Por isso, sempre que ouço "Disparada", eu me lembro dela, da sua infância em que ela aprendeu naquela vida de fazenda a ser firme e forte, a conduzir com o pai boiadas inteiras, a não ter medo de um touro, a cozinhar em fogão a lenha, a dizer não com a facilidade de quem diz sim, a ser dura (mesmo quando seu coração grita para que não seja, eu sei disso), a não mostrar muito sua felicidade (como se isso fosse uma fraqueza), a não chorar diante da morte e da dificuldade (apesar de sua profunda sensibilidade). Aos 78 anos, eu ainda a magino como quando eu era pequena: ela tange a vida como gado, vai conduzindo com laço firme seu destino.
Mãe este texto é pra você. Feliz dia das mães.

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