Quem sou eu

Minha foto
No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Voyeur, na metrópole

Ela vivia só.
Só, não.
Benjamin morava com ela naquele pequeno apartamento. Jamais tivera um namorado na juventude tão fiel quanto Benjamin. Nenhum deles fora tão carinhoso e presente. Tão apaixonado. Ou lhe dera tantas demonstrações de afeto. Benjamin, um vira-lata, bela mélange de tudo.
Ela saía para o trabalho cedo, Benjamin abaixava os olhos como um biggle. Ela o pegava no colo, reservava sempre dez minutos com ele enquanto tomava a segunda xícara de café olhando do alto do décimo nono andar. A cidade já fervia lá fora; o barulho, intenso. Ela não gostava de se separar de Benjamin, como as mães não gostam de se separar de seus filhos, mas não havia outro jeito.
Benjamin era muito mimado. Ela só o alimentava com alimentos orgânicos, só o tratava com homeopatia, e ela mesma dava o banho semanal -- imagine, deixar Benjamin na mão daquelas pessoas que maltratam os pobrezinhos?!
Todos os dias, à tarde, Benjamin dava uma longa caminhada de uma hora pelo bairro. Nada de babás de cachorro, que simplesmente parecem zumbis com braços estirados e amarram os pobres num poste de metal qualquer para namorar, falar ao celular, ir tomar um café, fazer o trabalho da faculdade ou da escola... Não! Benjamin era poupado dessas invenções da modernidade.
Uma antiga amiga dela aposentara-se muito cedo. Às vezes um cinema, um café, uma viagem de excursão às Cataratas do Iguaçu juntas... Era tão bom ter alguém naquela cidade hostil. A amiga um dia reclamara que se sentia sem função, ficava só em casa, os filhos quase não lhe telefonavam. Ela então ofereceu a ela se ela não gostaria de ganhar para levar Benjamin todas as tardes para um passeio de uma hora, e quando ela viajasse para visitar a mãe, se ela também não gostaria de ganhar para fazer a mesma coisa e ir no apartamento alimentar Benjamin, dar água... Claro que era pagaria mais do que se paga normalmente a um hotelzinho, ou às pessoas que passeiam com cachorros.
A amiga aceitou. Pronto, a vida se encaixava nos trilhos para ela. E para Benjamin.

No fim de semana, a vida se resumia ao banho matinal, aos passeios com Benjamin, longos, demorados. Depois, supermercado: Benjamin ficava lá fora, sentadinho, esperando. Latia apenas para outros cães. Voltavam, almoço, dormiam à tarde. Saíam para alugar um DVD na bissexta locadora que ainda existia no mundo (nada dessas tecnologias de baixar filmes, netflix...); ela aproveitava para conversar com o dono da locadora: amenidades e dicas de cinema. Seguiam pra casa, um lanchinho, ele se acomodava ao lado da cama, ela entrava embaixo do edredom que comprara numa megaliquidação no Brás, quentinho, fofo; DVD. Ela sempre dormia antes do final, Benjamin dormia o tempo todo.

Essa rotina só era quebrada pela vivacidade do vizinho de porta. Bem mais jovem que ela, tinha uma vida intensa -- ela imaginava isso de dentro de seu apartamento. Fazia anos que ele morava ali, mas ela jamais vira seu rosto, só ouvira a voz pela janela do corredor, rindo, acompanhado de amigos, de meninas, de mulheres. Sabia que era mais jovem porque o porteiro, indiscreto, lhe dissera um dia, e numa intimidade que ela considerara audaciosa: "Você viu seu vizinho? Ele chega sempre de manhã, e muitas vezes bem acompanhado... desde que terminou com aquela moça...". Ela fechou o cenho, para que ele entendesse que não queria aquele tipo de contato. Afinal, é preciso que um homem saiba a escala Hichter da dignidade de uma mulher. Não era dada a fofocas no prédio, não era dada a intimidades com moradores nem funcionários.
Mas o que o porteiro não sabia é que, por detrás daquela 'dignidade' toda, sua vida rotineira e muitas vezes sem sentido -- ela sabia -- era temperada por um tipo de voyeurismo, em que não era possível olhar, mas ouvir... Em seus fins de semana sem graça com Benjamin, ele saía de sua caminha para cheirar embaixo da porta sempre que alguém saía do elevador e ia em direção à porta do vizinho. Benjamin cheirava, latia baixinho. Era o sinal para ela. Ela fazia: "Psiu, Benjamin..."
O vizinho abria a porta e ela ouvia nacos de frases: "Oi, gostosa!" (e já imaginava um braço envolvendo um corpo e o arrastando para dentro com força...); "Nossa, você veio toda linda..."; "Que saudade. Entra!..."; "Você me deu um bolo ontem, tô puto, vai embora!" (A gatinha então miava um pouco, fazia biquinho, contava sua história de pescador, e em meio a alguns nãos dele, a porta abria toda, e ela ouvia o estalo dos beijos antes de a porta fechar.). Benjamin sabia já, depois de tanto tempo, que ele podia cheirar e latir, mas nesse momento o silêncio era imperioso para sua dona. Ele ficava quietinho de pé ao lado da porta.
Depois, parede com parede, ela ficava bem quieta, e conseguia ouvir "a vida do outro" que se desenrolava ali, a alguns metros, separada apenas por uma camada de tijolos. Primeiro, havia música, e, muitas vezes, ela ouvia pés coreografando o piso do apartamento dele. Risos, gargalhadas. Muitas mulheres eram discretas, ela nem as ouvia. Ele também era. Mas, às vezes, quando a química era explosiva, ela chegava a ouvir grunhidos, arranhar de garras de gata no cio numa parede, um "gostoso" gritado bem perto dos tijolos, ele jogando sua presa contra uma porta e vários barulhos ininterruptos, ou simplesmente, ambos se encontrando no ápice da colina, num grito recíproco. Outras, podia haver mais gente.
Ela seguia quieta, mal respirava para não perder um lance desse roteiro, e Benjamin também. Era possível, inclusive, entender que, depois, ele ia à cozinha, havia um barulho de copos. Podia ser vinho? Água? Ela não sabia. Mas ele sempre fazia assim... Ela já o conhecia. Era íntima dele. Fazia anos.
Muitas vezes, ela ainda esperava o segundo round, que sempre era menos estrondoso, mas ainda assim tinha impacto nela. Por vezes, elas dormiam lá e só iam de manhã embora; outras iam embora no meio da madrugada. Ele sempre se despedia na porta. Ela podia sentir pela voz e pelo aroma do perfume que entrava pela janela de sua sala como podia ser a mulher. Todos os tipos. Algumas tinham um perfume mais delicado, e falavam baixo. Quase não faziam barulho ao caminhar pelo corredor. Ela então pensava: "Tem estilo".
Todas as vezes, ela se masturbava, durante todo o longo processo. Fingia ser aquela mulher escolhida, e acompanhava o mesmo galope. Imaginava-se na cama dele, e ele pedindo o botão mais oculto do seu corpo. Ela negando, ele forçando, e ela querendo, mas negando. Um jogo, trapaça feminina. Ela então gozava sempre com ele naquele devaneio. Quando elas iam embora, na despedida, na porta, ela ia também. Se sentia uma mulher e tanto sempre. E voltaria, sempre.

Um dia, Benjamin cheirou embaixo da porta, latiu baixinho. Fazia frio, havia garoa lá fora. O perfume que entrou pela janela era diferente desta vez. Houve uma leve e delicada batida na porta. Benjamin dessa vez não latiu, pois ela não tocou a campanhia como as outras faziam. Discreta. Benjamin parecia uma estátua sem sentido. Não sabia o que fazer, fugira da rotina deles. Ele abriu rápido a porta. "Você demorou... que saudade..." E a porta fechou mais rápido que o normal. Não foram diretamente aos finalmentes, como era hábito dele. Ela estranhou... Se levantou da cama, pôs o ouvido na camada de tijolos, não era possível... Ele foi à cozinha, pegou copos ou taças, ela não sabia. Depois ouviu um barulho maior, que devia ser uma garrafa sobre uma mesa ou outro móvel qualquer. Vinho? Será? Mas isso não era sempre depois? Ela se angustiou. Um pressentimento ruim tomou conta. Apurou o ouvido, e Benjamin também ficou desconcertado. Ela ouviu uma conversa. Conversa? Como assim? Nunca havia conversas! Havia sempre música, diversão, gargalhadas. Nunca conversas... Tempo depois, ouviu música. Mas baixa, diferente agora. Ouviu um gritinho suave e baixinho dela. A conversa acabou, e os sussurros começaram. Pareciam uma prece, uma oração. Sentido-se mal, ela não se excitou dessa vez.
Depois de muito tempo, ela de ouvido na parede, ouviu que chegaram ao cume de tudo. Mas foi diferente. Era tudo suave e lento. E silencioso. Não houve segundo round . Não houve copos depois de sexo. Como assim?!
Depois de duas horas, ouviu passos e barulho. Caminharam em direção à porta. Ela ouviu ainda: "Por que você não dorme aqui, sua chata?" Ela respondeu baixinho: "Amanhã é meu rodício, o carro está lá embaixo... " Ele: "Hum... Posso então dormir na sua casa? Aí saio de lá pro trabalho amanhã." Ela: "Vamos logo então, tô com muito sono..." Ele entrou, pegou algo que caiu e fez barulho no piso. A mochila? Roupas? Não dava pra saber.
Saíram pisando macio; trocaram beijinhos na porta do elevador.

Dali a um tempo, quando saía para o trabalho, ela viu na porta do edifício: "Aluga-se". Voltou e perguntou ao porteiro, qual? "O seu vizinho foi morar com a namorada, a senhora não sabia?"

"Traíra", foi o que ela conseguiu elaborar.



Nenhum comentário:

Postar um comentário