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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

sábado, 21 de junho de 2014

Por um artigo definido

Ela estava lá. Chegava sempre às quintas. O garçom já a conhecia e sabia o que era seu pedido, sempre: uma taça de vermelho, que era sorvida longamente, a goles miúdos, entre uma observação e outra, entre ler o jornal (fosse impresso, fosse nas engenhocas que ela trazia na bolsa) ou uma revista ou um livro. Sempre havia água acompanhando depois de uma meia hora.
Ela então interrompia a leitura, tirava os óculos e olhava ao redor. Nesses momentos, ela entrava numa espécie de transe, o garçom percebeu depois de tanto tempo que a conhecia, e não deveria ser interrompida. E tinta um tique engraçado nesse estar distante: o olhar ia longe, ela não estava ali, mas estava ali, e mexia com a mão esquerda no cabelo, construindo os dedos pequenas ondas nas pontas do oceano marrom. De repente -- era sempre assim: de repente --, ela voltava do transe, desajeitava os cabelos com a mão direita e o chamava: "um segundo vermelho, por favor". Era assim que ela pedia. Sempre. Então, ele esperava um pouco, como um súdito, e percebia na expressão dela que ela precisava comer algo. Sempre algo leve, muito leve. E sempre o mesmo pedido. Depois, terminada a segunda taça, a leitura, a água, a leve ceia, ela pedia um espresso bem curto. Arrumava tudo na bolsa, conversava com ele enquanto pagava a conta, perguntava da faculdade que ele fazia, como estava indo, se ele havia conseguido aquela bolsa de estudos, como estava a bebê, tinha foto? Ele sempre esperava ansioso por aquele momento. Ele se lembra do quanto ela ficara feliz quando ele dissera que estudaria literatura inglesa. Ela ofereceu livros e ajuda, caso ele precisasse. E o rosto dela nunca mais saiu de sua órbita. E todas as quintas, ela estava lá, irradiando algo que carregava algo nele.
Nesse dia, estava tudo como dantes: ela chegou perfumada, lançou um sorriso de quem está de bem com a vida, retirou o notebook da bolsa e digitou por algum tempo. Ele trouxe a primeira taça. Ela agradeceu. Pediu água. O súdito fiel àquela mulher atendia a todos em meio ao movimento sem tirar os olhos do desejo dela. Quando ela gostaria da segunda taça? Quando ela gostaria de comer alguma coisa bem leve?
Ele se distraiu por um segundo, e dois homens se sentaram à direita dela no balcão. Pediram licença, e ela não tirou os olhos da tela enquanto digitava, apenas disse "por favor, à vontade". Os cromossomos Y pediram sua bebida, e passaram do futebol ao ícone nacional: as gostosas. Falaram de tudo: economia, política, chegaram a quase se indispor por uma questão do mensalão, mas logo o próximo copo apaziguou os ânimos. Amigos não brigam nem por futebol nem por política (só por mulher...).
Ela então fechou o notebook. O garçom sabia: era o momento da segunda taça. Ofereceu algo para comer, ela respondeu no ato: "o de sempre". Ela tirou um livro da bolsa, e passou a ler, os amigos ali, já na quarta rodada. E ela tranquila, fazendo o que sempre fez. O garçom adorava aquilo: saber que ela seria sempre a mesma... Dava-lhe um conforto naquele mar de caos e gente doida...
Mas os amigos começaram a falar mais alto; etílicos, passaram a fazer confidências, dessas que os homens fazem ao redor de mesas de sinuca ou balcões de bar. Ela então não conseguiu mais ler, passou apenas a sorver o frutado que estava diante dela. Não era possível ouvir tudo o que eles diziam, porque o lugar estava muito barulhento. Mas em determinado momento, chegou até ela essa confissão, quase como numa súplica:
-- Cara, sabe... eu conheci uma mulher. Quer dizer... ela não é uma mulher, é a mulher.
O outro foi tomado por uma espécie de terror, e mandou de imediato:
-- Velho, cai fora! De uma mulher você se livra... mas da mulher você jamais esquece...
O primeiro ficou constrangido, tomou um gole longo da bebida, e resolveu fechar as portas do confessionário.
-- Você acha que vai dar Croácia?
Ela ficou lânguida e sorriu, um sorriso diferente de todos os que ele já havia visto no rosto dela. E, então, o transe, os dedos transformando em ondas um mar revolto que ela tinha sobre os ombros, mas dessa vez ela fez diferente. Espreguiçou os braços e os alongou bem no alto, além da cabeça. O garçom não sabia: café ou não? Ficou perdido por esse novo gesto.
Ela retirou o notebook da bolsa e passou a escreveu, entre momentos de transe.
Ele chegou perto, perguntou baixinho: "espresso"?
Ela rebateu sem olhar para ele dessa vez:
"Um conhaque".

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