Quem sou eu

Minha foto
No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Aos 15

Em 1977 eu tinha 15 anos. E sonhos. E sonhos. E um olhar que cruzava fronteiras e atlânticos, para além do desejo, para além do possível. Além de pegar forte nos estudos, ainda arranjava tempo pra ter uma vida cultural intensa com os amigos, e claro tinha namorados. Desde os 13 eu frequentava teatro, cinema e shows de música. Mesada curtíssima. Então tinha que recorrer a vários subterfúgios possíveis na época. Os espetáculos, depois de percorrer as casas de shows e teatros de São Paulo, iam depois em turnê pelos teatros das bibliotecas da cidade. Era aí que eu entrava. Sempre antenada na programação, assisti a peças premiadas por preços possíveis, shows que não poderia ver num teatro comum, vi palestras sobre literatura de grandes escritores falando de seu processo de criação, alguns deles já se foram, como Gianfrancesco Guarnieri. Ali também fiz cursos de história. A Biblioteca era mais que uma biblioteca, ela funcionava como um centro cultural, intenso, vibrante, dali você podia tirar muito para sua vida e seu futuro. Ali se faziam amigos, ali se combinavam passeios, cinema, shows. Pois aos 15, uma noite de verão, eu saí do clube depois de um dia de sol e muita piscina. Soube que haveria um show do Belchior na Biblioteca que ficava diante da praça do Largo do Rosário, bem em frente da Capela dos Escravos. Cheguei em casa, tomei um banho rápido, comi depressa, e pedi se meu pai podia me levar na Biblioteca. Era perto, eu costumava fazer aquele caminho a pé todos os dias na volta da escola, mas à noite era um pouco escuro e vazio. Meu pai então me levou e combinamos dali uma hora e meia ele me buscar, como sempre fazia com sua Brasília branca... Cheguei na bilheteria e a triste notícia: ingressos esgotados. Só se alguém chegasse para vender. Bom, esperei, esperei, esperei.... Quando estava quase na hora do show, desisti. Saí então para o jardim que ficava em frente. A noite estava linda, muitas estrelas, uma noite quente. Achei que não seria nenhum problema eu esperar ali sentada no jardim. Pena não assistir ao show do Belchior, que era um compositor da minha geração que tinha canções ricas, filosóficas, de protesto, de amor. Eu me sentei, e tinha na bolsa um livro, seria fácil esperar aquela hora e meia. Mas de repente me deu sede, e não havia um bebedouro lá dentro. Mas íntima que eu era daquele lugar me lembrei da torneira do jardim, me levantei rápido e fui tomar água. A torneira era baixa, mas na doce articulação da juventude, era simples descer até o chão. Quando me levantei, a boca molhada, fui fechando a torneira. Mas senti um alvoroço diferente. Algumas pessoas se fecharam ao meu redor. Era o próprio Belchior que estava ali, diante de mim, parado, olhos brilhantes, já vestido em seu figurino de palco, me olhando e não me olhando. Porque seus olhos estavam ali em mim, mas sua mente não... A equipe dele meio me fechou no meio da roda para protegê-lo. E eu fiquei ali, de pé, as mãos molhadas, e só pensando que eu estava diante do homem que havia escrito a letra de “Divina comédia humana”, "Velha roupa colorida", “A palo seco”, “Como nossos pais”, “Galos, noites e quintais” e tantas outras que marcaram minha adolescência. Não era o intérprete, era o poeta. Eu não me movi, fiquei totalmente muda, estátua. Ele ficou imóvel, de frente para mim, e eu de lado mas meu rosto podia vê-lo. Mas ele, como eu disse, me via, mas não me via, o ritual o levava pra longe longe, talvez por desespero, talvez por puro desejo, mas seu corpo apenas jazia ali. Sua alma estava noutro lugar, muito mais prazeroso. A equipe se alvoroçou, eu percebi, houve um pequeno desespero, o show estava atrasado, o público estava fazia tempo esperando... Eles disseram: “Belchior”... Muito baixo, como num mantra. Ele então olhou para baixo e para a direita, a um palmo de si, e me dirigiu aquele olhar de um átimo de lucidez, se despedindo. A trupe aliviou, era o sinal de que podiam todos seguir. Eu me mantive imóvel ainda, ao lado da torneira, entre as flores do jardim. Na porta de entrada, ele ainda parou – equipe tensa – e quis olhar as estrelas daquele céu de verão. Entrou. Dali a alguns minutos ouvi gritos lá de fora e a canção que me seguiria por toda a vida: “Divina Comédia Humana”. Dali a uma hora e meia, o show não havia terminado, mas seu Heitor Brazil estacionou sua Brasília branca diante da biblioteca. E eu fui para casa e guardei em minha caixa mais esta lembrança.

Nenhum comentário:

Postar um comentário