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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Cronicamente desrespeitoso, terrível e inviável

Respeito e gosto do trabalho de Sergio Bianchi. Me lembro do tempo em que ele teve dificuldade de dar continuidade a seu trabalho, anos 90 (?), fiquei angustiada ao ver suas entrevistas na TV e nos jornais. Ele dizia que estava vendendo seus móveis art déco para sobreviver.
Alguém talentoso, cheio de ideias e que não consegue dar andamento a seu trabalho num país que não respeita seus artistas e seu cinema (como era na época), vê seu trabalho bloqueado por tecnocratas e uma faixa de público que não valoriza a vanguarda, como era o caso de Bianchi naquele momento.
Um dia, início dos anos 90, fui com 3 amigos ao MIS (Museu da Imagem e do Som) assistir a um filme numa mostra. Faltava tempo para a sessão, então fomos tomar um café ali mesmo. Numa mesa ao lado, nosso ídolo: Sergio Bianchi, acompanhado de algumas pessoas. Meus amigos eram, além de muito interessantes, muito bonitos, na mais tenra idade, cerca de 22-23 anos. Eu era a mais velha do grupo, tinha 28, quase 29, talvez por isso eles gostassem de minha companhia. Falávamos de política, e de sonhos, do PT no poder, de como o mundo seria melhor e mais justo, de nossas expectativas na vida, de nossos amores, desamores, sonhos pessoais. Falávamos de arte, filmes, livros, línguas, literatura. Em minutos, trocávamos de assunto. Era muito assunto para pouco tempo. Não tínhamos tempo a perder. Assim é a juventude. Eles faziam ciências sociais na USP e eu vinha das letras e acabara de entrar no mestrado em sociolinguística da mesma faculdade. Conclusão: o mundo era apenas um portal.
Eu tinha uma filha de 4 anos, que deixara delicadamente dormindo com a babá. Num hiato da conversa, me lembrava dela, e no meio daquela minha juventude efervescente, recém-separada de um casamento longo, às vezes me dava vontade de correr para casa e apenas ser mãe de Isadora, e olhar seu sono tranquilo e não perdê-la, não perder sua infância. Mas os apelos da juventude em mim eram maiores, e eu tinha que correr.
Sergio Bianchi estava numa mesa ao lado com um grupo da ECA. Ele passou a observar nossa mesa com atenção, e, para nossa surpresa, ele me observava muito diretamente. Os meninos me disseram entredentes: "Tuntum, ele está olhando você". Eu disse:"vocês estão loucos!" Cinco minutos e Sergio estava na nossa mesa, conversando, contando casos, coisas pessoais, onde morava, das dificuldades do cinema, do seu cinema naqueles tempos difíceis. Das negociações que andava fazendo para sobreviver. Essa parte foi triste pra mim...
Apesar de tudo, daquela fala melancólica às vezes, havia aquela dignidade daquele homem grande, traços europeus, perfil nórdico, gestos que me lembravam Oscar Wilde. Não havia nada de trágico, havia certo humor, uma ironia fina na narrativa de sua leve tragédia pessoal daquele momento...
De repente, ele começou a contar um desencanto amoroso recente, os olhos ficaram tristes, aqueles olhos lindos, claros, inteligentes, até então brilhantes e moleques, foram longe e pareciam um mar recuado. Ele parou, fez um gesto oscarwildiano, chique, longo, delicado, tragou o cigarro profundamente, soltou a fumaça como um lorde, olhou para meus amigos e aí me mirou nos olhos, não vou esquecer. Ele disse: "por que, me digam, por que não me apaixono por uma mulher? Uma mulher assim como você? Eu estava te olhando da outra mesa e pensei comigo: 'se eu me apaixonasse por uma mulher, como aquela da mesa ao lado, talvez eu fosse mais feliz...'"
Nós éramos muito jovens, e entendemos aquilo como uma piada, ou um sei lá o quê. Caímos no riso, e Sergio saiu daquela profunda depressão momentânea e riu também. E falou: "é... infelizmente você não tem o que eu gosto..." E gargalhamos juntos. Foi uma festa. Sergio retomou seus olhos de menino-Oscar Wilde pronto para ser selvagem. Adoramos sua companhia. Um dos momentos mais engraçados e cheios de histórias que já tive. Um cineasta, um grande contador de histórias...
Assisti a seu filme Cronicamente inviável algumas vezes. Aquela sensação de gastura.

Há uma obra em pleno andamento ao lado do meu prédio, um grande empreendimento imobiliário. Todos os dias eles tentam adiantar o cronograma iniciando o trabalho às 7h da manhã e concluindo às 20h. Todos os dias da semana, exceto domingo.
Acordo às 7h com o barulho da escavadeira na parede de meu apartamento. Minha cabeça dói logo cedo. A poeira sobe e tudo fica rubro na minha janela. Penso que será pior quando o prédio subir (não terei mais: pôr de sol, montanhas, Pico do Jaraguá, céu azul, céu, nada... Só terei um vizinho que pagou 1,8 milhão de reais por um apê, escovando os dentes e tomando banho diante de mim...).
A escavadeira grita e não cessa, um só minuto, o dia todo. A cidade me fica insuportável. Quero fugir. O cantinho delicioso da minha casa, que montei com toda delicadeza, meu escritório, se tornou algo inviável, cronicamente inviável. Os desmandos do capital, do dinheiro, de gente que nem sabe o que é respeito, leis, horários, barulho, desgaste. Os desmandos de quem tem o poder.
Por isso a lembrança do elegante Sergio Bianchi, seus gestos delicados e finos. Seus móveis art déco. Sua resistência aos desmandos da ignorância. (Ouço agora, além da escavadeira, algo mais contudente batendo fundo na terra... e repetitivo. Quero correr.)
Todo meu respeito ao cineasta de Cronicamente inviável, Sergio Bianchi.

Sobre a obra de Sergio Bianchi, encontrei um apanhado no blogue de Rubens Ewald Filho (* mas confesso que vou procurar outras referências para incluir aqui também de outros críticos... :-( ):
http://noticias.r7.com/blogs/rubens-ewald-filho/2010/02/21/os-filmes-de-sergio-bianchi/

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