Quem sou eu

Minha foto
No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

A felicidade não se compra

Um crônica aleggro, ma non troppo, mas com final feliz

Encontro. Apaixonado, integrado e sintônico, ambos prontos para viver um grande amor. Na literatura − ela tem certeza −, isso se chamaria alumbramento − sopro criador, revelação, inspiração, estado de quem se deslumbra, maravilhamento. O grande Encontro, aquele que todos aguardam durante a vida e apenas alguns eleitos têm a sorte, a fortuna de encontrar. Eles conseguiram.
Como num dia de pesca, Iemanjá adorou seus presentes, enviou uma boa maré, e a rede enlaçou seus destinos − o dele, o dela. As canções a partir de então têm outros tons, a arte apresenta-se em outras cores e nova e receptiva estética, a paisagem da urbe até faz algum sentido de belo e encantador apesar de toda desordem. As árvores estão mais verdes, o caminho para o trabalho é menos aterrador; o trânsito – há trânsito por estes dias?... O caos ao redor acaba sendo filtrado por este grande sentimento que invade, e fim, Djavan diria (e ela nem gosta de Djavan). O futuro parece uma pipa no céu, colorida, possível, leve, flutuante. Cada vez mais se dá linha, e ela sobe, sobe, ganha o céu, as nuvens, o ar mais rarefeito e levíssimo. Seu colorido vai atingir algo lá na frente, levando o pensamento a tudo que é possível nesse Universo, agora, a dois. Um círculo de giz imaginário os circunscreve e define como casal apaixonado e que se ama. E eles vão conduzindo seus sonhos e suas esperanças agarrados nessa pipa que sobrevoa, futura, colorida, leve, linda, despretensiosa, imaginária.
No fundo, apesar de todo desamor e de toda ausência e de toda falta afetiva que se vive neste mundo pós-moderno, somos todos caçadores de pipas no amor. Na verdade, estamos em busca de um grande amor, o nosso par, o grande sentimento, o grande destino a que estamos arremessados na alquimia do tempo.
Mas nem tudo são flores nesta vida a dois. Por vezes, Iemanjá devolve feroz e irascível os presentes que lhes são oferecidos, a tempestade revolve então as águas e as ondas fazem estragos nos barcos de pesca. Maré ruim...
Então, dentro do círculo de giz, tudo parece bem. O amor nunca voou alto, nunca alcançou nuvens tão delicadas, nunca viu a Terra tão longe de seus pés. A cada dia, o amor acolchoa mais e mais o sentimento, e é algo tão confortante ouvir a voz; no encontro, o coração dispara, alegre. Ah... e as pequenas surpresas, os presentes, as fotos lindas que vão construindo visualmente a nossa pequena história cotidiana. Mas a maré ruim faz a terra tremer − pedregulho que invade nosso suave acolchoado amoroso. Ela tem a síndrome do esquilo, e pensa às vezes em fugir como aqueles pequeninos no Central Park. Ele é ponderado e tem uma rede de caçar borboletas, como um Jacques Tati meio atrapalhado, e, em plena fuga, ele vem calmo e a resgata rapidamente para seus braços.
Claro, ele também carrega a neurose nossa de cada dia, mas ela entende que de perto ninguém é normal, e assim como ela é um esquilo, pode também ser mansa e complacente como uma ovelha, e esperar que tudo se resolva, cada dia de uma vez.
Essa narrativa me levou ao filme de Frank Capra, A felicidade não se compra. Podemos imaginar a vida de muitas formas se nos destacarmos dela e a virmos lá de cima, como se estivéssemos atados àquela pipa imaginária que mencionei. Se ela tivesse porventura partido, ou se ele tivesse partido, o que teria sido da vida de ambos? Ou se eles não tivessem sequer se encontrado? Ou se ele não tivesse tido coragem de abordá-la pela primeira vez com uma frase que deixava clara sua intenção e sua disposição? E se ela não tivesse tivesse respondido diretamente a seu chamado? E se agora, diante de tantos problemas vindos de fora, e somente de fora − pois dentro do círculo imaginário que criaram são felizes e arrebatados, entregues e apaixonados −, eles tivessem fraquejado e quebrado o grande vínculo que os sustenta, e que é tão claro: eles foram feitos um para o outro...
Lembrando Frank Capra, o cinema me ensinou mais esta lição. De que é preciso em alguns momentos de crise nos agarrarmos à nossa pipa imaginária. Estar lá em cima, flanar, sempre que houver algo que nos pressiona de fora, olhar o que queremos com calma, não nos abalar com a dor momentânea que nos impele parece para a destruição daquilo que mais queremos e desejamos. É preciso às vezes subir aos céus e morrer metaforicamente por alguns instantes para poder vislumbrar a importância da vida. Tudo o que queremos, o que podemos perder e o quanto aqueles que amamos podem perder nessa linha tênue que divide o impulso e a sensatez. Grande James Stweart... A felicidade, assim como a boa maré, não se compra, nem com presentes para Iemanjá. Mas se conquista, devagar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário