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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Recordar é viver

Ontem foi Dia dos Pais. Resolvi fazer algo que queria fazia tempo. O restaurante Presidente, famoso por seu bacalhau desde meados do século passado, fica pertíssimo da casa dos meus pais. Mas nunca fomos, não sei bem por quê. Fomos ontem lá comemorar o domingão.
Meu pai que anda meio desanimado de tudo, ficou animado com a caipirinha, cerveja e depois com aquele bacalhau, cuja ciência desembarcou aqui no Brasil nos idos de 1950.
O escritor Walcyr Carrasco (sim, e autor de novelas também) escreve um texto que abre o site do restaurante, e conta brevemente a história do estabelecimento. Era um restaurante comum, servia a cada dia um prato diferente, mas o bacalhau fez tanto sucesso, que os sócios resolveram mudar de sede e só servir bacalhau. O nome do restaurante mudou para Presidente, que era uma homenagem ao presidente bossa-nova da época, o Juscelino Kubitscheck. Acabou ficando Presidente, que é seu nome até hoje.
Eles reformaram recentemente, mas é aquela coisa antiga de portugueses, que eu adoro, confesso: boa comida, encaixotada num lugar com mesas simples, com toalhas limpas, garçons de ternos limpos, nada de luxo, muito azulejo... infelizmente não os azulejos portugueses. Mas como diz o próprio Walcyr em seu texto no site, aquela antiga ideia que havia de cozinha em São Paulo: boa comida sem essa ideia atual de luxo, e a conta astronômica em que se paga a grife (chef + arquiteto).
A conta no Presidente é cara, pois estamos falando de bacalhau. Mas fosse num restaurante estrelado, dobraria, no mínimo.
Sei que meu pai, o homenageado do dia, ficou bem contente, como eu não via fazia muito tempo. Ele encontrou um garçom conhecido de outro restaurante, fazia alguns anos que bão se viam. O garçom lhe fez uma boa festa, e acho que isso lhe fez um bem melhor ainda: uma pessoa aos 78 anos de vida fica feliz ao ser reconhecida na rua, num bar, num restaurante. Num mundo que valoriza só jovens e endinheirados, imagino que meu pai tenha ficado feliz de aquele garçom ter feito questão de ter lhe dado o endereço de sua lanchonete na Vila Maria (ele agora é um proprietário nos dias da semana) e convidado para ir visitar seu "estabelecimento". Ele prometeu fazer a mesma batidinha de limão que meu pai vive elogiando, sempre, dizendo não ter outra igual.
Bem, terminado o almoço, eu ia para casa trabalhar, estava atrasada com um trabalho. Mas minha mãe ofereceu café e bolo. Eu nunca nego um café, muito menos bolo, que só minha mãe sabe fazer. Fomos para a casa deles, ali pertinho.
Mas acho que o bacalhau, a caipirinha, a cervejinha fizeram tão bem a meu pai em seu dia, que ele desatou o nó das lembranças, algo que ele vem perdendo. Ele, que anda tão desmemoriado, perdendo pelo caminho aquilo que mais preza: o fio da sua vida. Ele foi falando, daquele jeito que só ele sabe; começou devagarzinho, de mansinho, contando uma coisinha aqui, outra ali. Minha mãe sentou-se de frente pra ele. Dava um toque aqui e outro ali nas lembranças.
Eu estava com a bolsa no colo, pronta pra ir embora. Mas estava tão bom estar ali, ouvir aquelas histórias da minha família contadas de mansinho. Ele tem andado tão mudo, tão calado no último ano. Esta era uma boa chance de ouvir e de deixar ele dizer. Fiquei, muda. Eram umas duas e meia da tarde.
Ele ia lá pra dentro e foi trazendo fotos, recortes. Trouxe documentos do meu avô. Da minha avó. Coisas que eu jamais havia visto. Carteiras de trabalho de ambos, carteirinhas de hospital!
Soube melhor da primeira visita de meu pai a meu avô no Rio de Janeiro. A primeira vez que se viram depois de 28 anos de ausência de meu avô. Um encontro de estranhos, meu pai disse, mas com um detalhe: meu avô, sentado numa praça do Rio, puxou a calça até a altura do joelho. Meu pai olhou e reconheceu o seu próprio no dele. Foi estranho para ele, pois depois de tantos anos sem ver o pai, foi como uma espécie de teste de DNA para ele. Ele me falou: a única coisa que me dizia que aquele homem era meu pai, depois de tantos anos que havia nos deixado crianças ainda, era aquele joelho igual ao meu... Me deu uma apontada de sofrimento. Eu, que tive um pai tão presente na minha vida, me levando e me buscando em todas as festas, pagando minhas mesadas, preocupado como nossa febre, como nosso seguro-saúde. Ele inventou um modelo de pai para ser um superpai para nós, apesar da falta que o seu próprio lhe fez. Um prêmio para ele!
Também contou algo que eu não sabia: ele lia para minha bisavó Carolina A voz de Potugal, um jornal que entregavam na casa deles, na zserra de Araraquara, uma rua tranquila de terra, que hoje é a infernal Radial Leste. Ele conta que ela vibrava com as conquistas portuguesas, novos presidentes, histórias de aldeias. Depois de tantos anos no Brasil, ela não esquecera a sua terra. Ela, que jamais fez uma viagem sequer de visita a seus parentes do Porto.
Vi a foto de meu avô em sua carteira de trabalho. Ele aparentava mais idade do que realmente tinha. Minha avó, como sempre, muito bontita e vaidosa, inclusive nas fotos. Mas talvez sua excessiva vaidade tenha feito seu próprio sofrimento, seu próprio destino, não sei. Eu sei que adorava minha avó, ela me ensinava coisas erradas e pedia pra eu não contar nem repetir: palavrões portugueses, cantigas portuguesas, brincadeiras com um palavrão no final e com susto... eu não repetia, mas até hoje me lembro bem que foi ela que me ensinou, por exemplo, "vaca amarela, (...) na panela, quem falar primeiro...". Eu guardava tudinho na memória, mas não contava nem pras amiguinhas, porque elas podiam contar pra mãe e aí...
Quando dei por mim, eram 19h30. Eu estava com as fotos do casarão português da rua serra de Araraquara nas mãos, e que seria de minha avó depois. Tantas histórias eu vi e ouvi ali, naquela casa. Mas agora eu precisava ir.
Olhei para o meu pai, ele tinha vestido a polo que eu havia presenteado para ver se servia. Ficara bem nele, apesar de ser bem moderna.
Eu disse em um texto anterior que a felicidade tem um dosador-referência. Ontem eu fiquei bem feliz. Ver meu pai animado, desfiando memórias, querendo reviver encheu meu dosador de alegria. Esses dias de pais, mães, em geral são bem chatos, eu costumo achar (eu que sou mãe), mas ontem, foi um dia especial.
Tem um filme com Al Pacino que se chama Um dia para não esquecer. Acho que podemos recortar a tarde e o almoço de ontem e colocá-lo no título: Um dia para não esquecer.

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