Quem sou eu

Minha foto
No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

terça-feira, 28 de junho de 2011

O tempo e as segundas-feiras

As segundas são dias de recuperação para mim. Preciso de um tempo para digerir o fim de semana. Na segunda, procuro uma organização estranha, que normalmente não tenho, num movimento em marcha a ré. Lavo o carro, compro frutas e legumes, compro algum item de supermercado que está faltando, levo as roupas na lavanderia, compro os itens de toucador que estão acabando -- cremes, xampu, hidratantes --; organizo mentalmente meu tempo da semana: que trabalhos tenho que entregar, quanto tempo levarei por dia em cada um deles, como encaixarei os compromissos no meio do trabalho (que em geral é muito).
Sou uma Sandra Brazil antiquada, mãe, dona de casa, secretária de mim mesma nessas segundas. Mas quando chega a meia-noite, adentro a terça, e uma cinderela esquisita e canhestra perde o pé e volta a ser a Sandra mezzo desorganizada, mezzo louca, imprevisível, sem horários, sem rotina preestabelecida. É como se houvesse uma fada-madrinha, que nas segundas ajuda a centrar meu universo familiar e doméstico. Quando ela vai embora, leva consigo uma bússola da organização e um pouco da convenção, além de retirar de mim as vestes cuidadas e esmeradas, o brilho da abóbora-carro, o centro no que se deve fazer. Volto à loucura. Posso voltar.
Ontem foi segunda, e me vi refazendo esse percurso esquisito. Mas a preocupação dessa vez era outra. Inconscientemente fui subindo e descendo as ladeiras íngremes de Perdizes. Fui ao banco e não gostei do que vi em minha conta corrente; pronto, corri pra apagar esse incêndio. Conta reestabelecida, fui em busca do que faltava na casa. Não era muita coisa dessa vez. Voltei pra casa e pensei que poderia enfim me sentar para trabalhar então, mais cedo do que o normal às segundas. Mas ao fechar a porta, na segunda volta da chave vi um relógio que estava sobre o bifê. Fazia semanas que ele estava lá, agonizante, mas eu não tinha tempo de acompanhar sua recuperação. Ele me olhava de soslaio, pedindo pra que eu tomasse conta do seu tempo, que expirava dia a dia. Ele precisava de uma bateria nova, apesar de ser um relógio quase novo. Mas eu nunca tinha tempo pra fazer isso. Pensei assim que o vi que precisava recortar um tempo no meu tempo pra recuperar o tempo daquele relógio. Queria ouvir de novo o tique-taque marcando meus dias e noites. O tempo recuperado naquele relógio faria que ele remoçasse, o tempo recuperado o tornaria vigoroso de novo, sinalizando o meu tempo dedicado aos outros e a mim. Peguei delicadamente o marca-tempo e o coloquei num necessaire em minha bolsa. Ao abaixar para pegar uma chave que caiu, vi sobre a mesa de centro, em meio às máscaras e peças de que gosto tanto, um tique-taquezinho pequenino: era o relógio que minha mãe me deu, presente do meu avô a ela quando tinha 10 anos. O relógio portanto tem 65 anos... Uma ornamento delicado e retrô, como eu gosto, sempre.
Abri o necessaire, e incluí aquele pequeno mimo no meu roteiro dessa 2a feira: eu iria recobrar o tempo das minhas coisas, tempo que ficou perdido naquele lapso de tempo.
Cheguei na relojoaria, uma loja de rua. Isso é um luxo hoje em São Paulo. As lojas de rua de minha infância não sobrevivem ao ar condicionado e às vagas de estacionamento dos shoppings. Mas eu sou de duma geração que comprava linha e botões e fitas de seda e novelos de lã para as mães nos bazares e lojas de armarinhos do bairro. Portanto, enquanto houver uma loja de rua em pé, estarei lá prestigiando sua luta contra a fúria do tempo e do progresso da metrópole.
Entrei na relojoaria e confesso que fiquei meio sem-graça de mostrar um relógio tão antigo a um jovem tão jovem, que me atendeu. Eu até perguntei: "Vocês consertam relógios de corda assim tão antigos". De relance, vi o relojoeiro no fundo da loja, e isso me aliviou. Ele deve ter minha idade, então, pensei, deve saber o que estou sentindo em relação a lojas de rua e relógios antigos de corda e em relação ao tempo.
O rapazinho perguntou meu nome duas vezes e me disse que sim, eles revisam e consertam relógios de corda. Aliás, depois que entrei vi que havia inúmeros relógios de mesa e carrilhão muito antigos no fundo da loja. perguntei: "É para vender". Não, são todos pra conserto. Eram belíssimos e iguais aos relógios que via nas casas da minha infância.
O relógio novo foi rapidamente recuperado e sua agonia terminou apenas com a troca da bateria. nele, o tempo voltaria a pulsar seu tique-taque monótono e cotidiano. O reloginho retrô precisará de alguns dias de internação: é preciso polir, abrir a caixa de funcionamento, trocar o mecanismo de corda. Só então, ele poderá dar as mãos para o tempo novamente e marcar silencioso e pequenino aquilo que se esvai rapidamente, a olhos vistos: o tempo.
Na sincronia dessa segunda-feira, me vi restaurando e cuidando de algo que, aos 48 anos, me é tão caro: os grãos de areia de uma ampulheta. Silencioso, ele me trouxe até aqui, e eu sequer percebi. Quando vi, a ampulheta já marcava quase metade do que tenho direito nesta vida. Olhei para ela e gostei do que vi: nos grãos de areia que me acompanharam até aqui foram registradas marcas que o tempo não vai apagar. São marcas sólidas, belas e inspiradoras para mim. Na segunda metade da ampulheta, elas serão como o farol que orienta os marinheiros, quero tê-las comigo. Olho para trás. Gostei do que vi.
E esta foi só uma segunda-feira...

Um comentário:

  1. Sandra, é ótimo ler suas linhas... Que bom vê-la de volta.
    Sabe? O tempo é uma ficção sacana.

    ResponderExcluir