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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

sábado, 14 de abril de 2012

A biblioteca do Chacrinha... Hoje vamos recebeeerrrr: Maria Lúcia Dal Farra

A beleza dos pêssegos e das beringelas e das alcachofras -- e de Van Gogh e Gustav Klimt -- no Livro dos possuídos...

Foto de Clovis Rossi

Apresento a poeta Maria Lucia dal Farra e o Livro dos possuídos (São Paulo: Iluminuras, 2002.)



Alcachofra

Não é em altura que seu arbusto
se ombreia com o pinheiro:
é pela fruta.
Íntima amiga da geometria,
do pinho tão só se distancia
pela recusa à agreste armadura.
Nenhum lampejo de indiferença
machuca-lhe a vestimenta:
antes a luz emprega no fabrico da alma
tenra (que lateja),
parente do alegre bem-me-quer,
do espelhante girassol.

Pertença da floricultura e da boa
mesa, ornamenta o paladar
com a lembrança das nascentes:
não são de lâmina as escamas,
mas (degustáveis) dádivas mediterrâneas
dispostas no coração em tranca.
Apenas pequenas setas mantém
(em íntima contenda)
a provocar torneios entre língua e dentes.

– Cota de cavaleiro andante,
em que terna demanda atuas?


O pêssego
Na textura da fruta
afundo minha unha:
estará madura?

Desponta na abaulada penugem
a meia lua
impressão digital do meu gesto
indeciso
entre afeto e arranhadura.

Que sente a fruta?

Do poço da sua seiva
um calafrio perplexo me reconhece
na gota que se liberta.
Transpira o pêssego o pensamento mais denso
(o último)
porque
entrementes
(e ainda úmido de queixa)
tudo deixa contra o brilho dos meus dentes.


Descansa comigo
sobre a folhagem nova!
Tenho frutas maduras, castanhas assadas,
fartura de queijo.
Ao longe um telhado fumega.

Nem de arbustos e tamarindos
os poemas se fazem.
É certo que assim verdejam
mas também em cinza se convertem.
Elevemos o canto: falemos da grande ordem,
da totalidade das coisas,
dos anéis de Saturno
do menino que há pouco nasceu.

Os meses correm:
úmido mel destilam as mangueiras,
heras vicejam sobre o mato,
vermelhos pendem dos espinhais incultos.

As Parcas os seus fusos correm
e a lã não mais imitará a cor:
o próprio carneiro, no prado,
vai transformar seu velo em púrpura
ou dourado açafrão;
já dispensam foices as videiras.

Alcêmo-nos para as grandes honrarias!
Um século há de vir em que o alento
torne o mundo poesia.






Eu tinha 29 anos quando conheci a poesia de Maria Lúcia. E trechos súbitos de sua biografia também.
Faz então 20 anos...
Assim como Orides Fontela me veio pelas mãos de Davi Arrigucci e aquele seu jeito de quem conta algo muito simples, um caso da vida, não algo grandioso, visceral, uma arte entranhada e digna de ser destrinchada a ferro... assim foi com Maria Lúcia. E outros poetas também.
Mas Maria Lúcia e Orides me arrebataram de um jeito, que passei a rastrear os sebos, desmontar livrarias, fazer pedidos a livreiros da USP (onde eu fazia o mestrado). Orides já foi apresentada aqui numa seção anterior da Biblioteca do Chacrinha e foi aplaudida por muita gente aqui no blogue.
Agora vou apresentar Dal Farra.
Quando Davi me mostrou alguns de seus poemas, eu era muito jovem, mas já sabia o que era bom, e já tinha lido bastante e já tinha lido muitos e bons poetas (e ruins também... até para ter a régua). No primeiro poema lembro que me deu um tranco: sua profissão de manejar palavras e provocar sentimentos estava ali diante de mim. Nunca mais esqueci Maria Lúcia. Maria Lùcia e suas palavras de tatuagem.
Bem, eu também soube de seu grande amor, assim, de repente, "amor expresso" que virou duradouro pelo escritor Francisco Dantas, que era pra ser duradouro ao que parece. Eu nunca disse isso a ninguém apesar de saber há 20 anos, mas agora que li isso escarrado na internet, e vou postar o texto aqui devidamente creditado, claro, acho que posso dizer que naquela época, que tinha 29 anos e não tinha muita certeza do que estava fazendo -- fazia 2 anos que eu estava separada depois de 8 anos de casamento, por vontade própria, e decidido assim, na ponta do laço e fazendo malas e deixando coisas no apartamento. Pois quem pede a separação é quem deixa a casa, a mobília, o legado, a herança... pois fiz tudo isso, e tinha dúvidas às vezes se esta supermulher que eu parecia ter sido não naufragaria, ou se isso não era uma grande mentira. Se isso de ser forte e de se ter opinião e desejo de liberdade era verdade, ou era tudo uma ilusão minha... Eu não sabia. Eu estava era perdida em minha atitudes e comportamentos. Apesar de, de alguma forma, saber que estava fazendo as coisas certas para mim e minha filha. E mais: sendo honesta com os outros e o mais importante -- comigo e com meus sentimentos.
Bem, quando eu soube que Da Farra deixara tudo: posto na universidade, um longo casamento, família, amigos e fora rumo a esse grande amor que estava no Nordeste, eu pensei: então, acho que estou fazendo tudo certo em minha vida. Uma grande mulher cuida de buscar sua felcidade, mesmo que para isso tenha que fazer uma curva muito fechada, ou tenha que redesenhar seu caminho. Ali, fechei a mala de meus anseios. Eu apenas olhei para o futuro, meu e de minha filha. Investi nisso, segui em frente. Esse foi o grande amor que escolhi para cuidar e zelar e compor e construir. Então, deixei para trás todas as dúvidas.
Às vezes, uma mulher tem que destruir um castelo, e tem que sair da cidadela. E tem que começar tudo de novo. Isso aconteceu a Dal Farra em seu alumbramento pelo escritor de Alagoas. Isso aconteceu comigo quando descobri que queria ser uma mulher livre mãe de Isadora.
Pois os poemas de Maria Lúcia me acompanharam ao longo desses 20 anos, e seus livros são marcados pelo manuseio. Tanto os leio e releio. E empresto e peço de volta! Sim, Peço. Neste exato momento meu Livro dos possuídos está emprestado a alguém que gosta muito de poesia. Está em boas mãos, mas por isso estou um pouco restrita quanto a transcrever os poemas aqui... Não achei muito coisa num formato que eu pudesse copiar e coplar aqui. e Não tive tempo de copiar o que inha em jpg na internet. Peço aos leitores que vão ao google books, e acessem o Livro dos possuídos disponível lá e refestelem-se (palavra antiga, mas precisa!).
Hoje, não sei por que, hoje, me deu vontade apresentá-la a vocês, de dividir a beleza de seus poemas delicados, de seus poemas sofisticas-simples sobre legumes e frutas do Livros dos possuídos -- que também reservam outrs sofisticações: Klimt e Van Gogh --, um cotidiano que se torna onírico e que transcende a banca de beringelas e simplesmente manchará de roxo o seu olhar.
Um de seus livros, O livro dos possuídos, é o que vou apresentar aqui. É meu preferido. E espero que ele possua o leitor do blogue. Assim como me possuiu, com sua beleza de tomates, beringelas e alcachofras... Uma epifania de legumes. Um desvendar de Van Goghs e Klimts.


A seguir um texto sobre Maria Lúcia e seus textos, da revista Veja seção Livros e Um estudo crítico sobre sua obra poética - Revista Estudos Feministas - A razão construtiva e o rendilhado poético de Maria Lúcia Dal Farra, em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2005000300005.


Veja Livros
Carlos Graieb
Os frutos do bem

Atenção para o nome de Maria Lúcia Dal Farra: ninguém no Brasil é melhor poeta do que ela

No interior de Sergipe, a Fazenda Lajes Velha desfruta de bastante fama. Sua sede, das mais antigas, remonta à época colonial. Ela é, dizem, assombrada por um fantasma, cujos passos ressoam noite adentro. Também abriga 150 gatos, todos eles descendentes de uma mesma antepassada. Finalmente, a fazenda é o lar de um casal de escritores. Francisco Dantas, dono do lugar, escreve austeros romances regionalistas, como Coivara da Memória. Enquanto isso, sua mulher, Maria Lúcia Dal Farra, vai registrando seu nome no rol das melhores poetas brasileiras. Sua estréia, Livro de Auras, data de 1994. Na semana passada, ela lançou Livro de Possuídos (Iluminuras; 144 páginas; 24 reais) e confirmou que é dona de uma voz poética altamente original e depurada.

Talvez a melhor maneira de compreender o que há de especial na poesia de Maria Lúcia seja compará-la à da já consagrada Adélia Prado. Em boa parte, o universo de ambas coincide: a casa e seus afazeres, a vida de província, o erotismo no âmbito do casamento, a família. São autoras que tematizam a "condição feminina". Maria Lúcia, contudo, tem uma disposição analítica que está ausente em Adélia. "Ela se aproxima de seus temas com o olhar de um ensaísta", observa o crítico José Miguel Wisnik. Isso se torna claro na segunda – e notável – seção de Livro de Possuídos. São poemas com títulos como Melancia, Maçã ou Espinafre. Eles não expressam somente o contato de uma mulher (e de uma cozinheira) com as frutas e os vegetais, mas o pensamento de alguém capaz de retroceder até Plínio, o Velho, no século I, para buscar informações sobre história natural e incorporá-las ao poema. Maria Lúcia é também dona de um ouvido privilegiado. Poucos autores mostram um domínio comparável do ritmo do verso livre. Quanto às suas referências, são das mais variadas: há algo dos surrealistas e de Federico García Lorca nas imagens que compõe, um pouco da aspereza de João Cabral de Melo Neto e da doçura de Cecília Meireles em seus versos. Mas são sempre ecos, que não prejudicam a independência da autora.


Embora esse Livro de Possuídos seja apenas sua segunda obra, a paulista Maria Lúcia não é uma novata no trato com a poesia. Ela tem 57 anos e aposentou-se há quatro, como professora de literatura. Tem estudos importantes sobre poetas portugueses, como Florbela Espanca e Herberto Helder, além de uma tese sobre as relações entre o pensamento esotérico e a poesia de autores franceses do século XIX, como Charles Baudelaire, autor de As Flores do Mal. Redigida no começo dos anos 80, a tese permanece inédita. "Quando pensei em publicá-la, a reação da universidade foi negativa", conta ela. "Estávamos na ditadura e os colegas me tacharam de alienada."

Amigo da escritora, assim como leitor de sua obra, José Miguel Wisnik acredita que a palavra extravagante se aplica bem a ela. "Extravagância significa sair dos trilhos. Isso é algo que Maria Lúcia sempre teve coragem de fazer", diz Wisnik. O desvio mais importante certamente aconteceu em 1983, quando ela deixou seu posto na Unicamp e foi morar no Nordeste. O episódio, da maneira como Maria Lúcia o relata, teve algo de folhetinesco. Durante um seminário em Aracaju, ela foi apresentada a Francisco Dantas. Antes mesmo de trocar as primeiras palavras, concluiu que, dali em diante, só seria feliz ao lado dele. No dia seguinte, ela confessou ao marido, com quem estava casada havia treze anos, que se apaixonara por um outro homem. Dois dias depois, telefonou a Dantas para confessar-lhe o seu arrebatamento. O sentimento era recíproco. "Francisco é belo e áspero", diz, enlevada. "Exatamente como o cáctus do poema de Manuel Bandeira." Maria Lúcia Dal Farra é uma poeta em tempo integral. (Disponível em: http://veja.abril.com.br/140802/p_114.html)


Revista Verbo 21
Cultura e literatura (disponível em: http://www.verbo21.com.br/v1/index.php?option=com_content&view=article&id=288:sob-o-signo-da-posse-ivo-falc&catid=126:resenhas-e-ensaios-fevereiro2009&Itemid=129)

Sob o signo da posse - Ivo Falcão PDF Imprimir E-mail
Sáb, 14 de Fevereiro de 2009 19:00

Sob o signo da posse

Por Ivo Falcão


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Perceber um mundo inaugural permeado de cores, ou mesmo experimentar sinestesicamente por meio dos seus versos o exalar das frutas que brotam em um quintal, é a experiência que a poeta Maria Lúcia Dal Farra nos proporcionará no seu Livro de Possuídos (2002). O seu olhar arguto a perscrutar a natureza e a arte pictórica se dá sob o signo da possessão. Mútua posse: deter o objeto em si e transformar em poesia e, ao mesmo tempo , ser possuída pelo objeto transmutado em lírica.

O Livro de Possuídos é seccionado em três eixos: Van Gogh, Vergilianas e Klimt. Nestes, observaremos a apropriação de telas dos pintores supracitados e também do universo bucólico de Vergílio: flores, frutas e árvores.

A possessão ocorre no respectivo livro de Maria Lúcia por meio da assimilação de diferentes objetos. Instiga a maneira como a poeta elabora o seu discurso lírico: parte de elementos concretos para através destes compor a sua poesia. Segundo depoimento de Dal Farra, a pretensão inicial era “possuir” estes objetos através da palavra, contudo, ao final deparou-se com um fato: foi ela a possuída por eles, se tornando desta maneira, um depósito para que as telas dos pintores eleitos, frutas e legumes marcassem presença no seu corpo.

Na seção Van Gogh, a poeta remonta as pinturas do artista holandês Vincent Van Gogh através das diferentes fases da arte deste pintor. Encontra-se neste bloco de poesias diferentes telas de Vincent: “Primeiras pinturas”, “Saint Rémy” e “Arles”. Na poesia intitulada, Auto-retrato com cachimbo, Dal Farra consegue captar as sensações do pintor transpostos na tela. Leiamos a poesia:

Já agora está perdido

de si mesmo

Vem ou vai a um país de neve

(a Mongólia, talvez?)

- distante,

olhos forasteiros

orelha mutilada por baixo da gaze,

alheio,

ruína aquecida apenas

pelo halo da pipa

- esta (sim) viva na sua chama.

(DAL FARRA, 2002, p.42)



Já no eixo Klimt, rememora-se as pinturas do austríaco Gustav Klimt. O universo pictórico deste artista está centrado fundamentalmente na figura do feminino. As variadas multifaces da mulher das telas de Klimt são utilizadas por Dal Farra: figuras burguesas, fêmeas e eróticas.

A poesia Danaé se comunica com a pintura do mesmo nome de Gustav. Neste poema, constata-se a presença de uma mulher introspectiva, recolhida no seu corpo de fêmea. Mergulhada no seu universo particular é acompanhada somente de uma torrente de ouro. Remete a mulher que encontra o prazer sozinha, sem a presença da figura masculina. Vejamos, “Ela se abre para se recolher/ lábios atentos/ olhos fechados/perscruta-se a si mesma” (DAL FARRA, 2002, p.131).

Nos poemas – Vergilianas, verificamos a interlocução com as poesias de Vergílio. Diferente dos outros eixos do Livro de Possuídos que dialoga com a linguagem pictórica, neste constataremos a apropriação das temáticas bucólicas utilizadas por Vergílio. Encontraremos nesta seção, poesias como Maçã, Maracujá e Orquídea.

Os sentidos de Dal Farra estão aguçados para perceber e transformar em poesias – os aromas, as texturas e sabor das mangas, pêssegos e romãs. O contato do corpo com o alimento é a relação basilar para que surjam nestes versos o desabrochar das percepções mais íntimas entre os rebentos do pomar e a poeta.

Portanto, observa-se que Maria Lúcia ultrapassa a simples descrição dos objetos possuídos e, com a possibilidade de introduzir no seu íntimo tais elementos, estes saíram em forma de versos contaminados (ou possuídos) pela atmosfera que a poeta se inspira. Deparamo-nos finalmente, diante de um convite ou constatação: ser possuído pela voz poética surpreendente de Maria Lúcia Dal Farra.

(Referência: DAL FARRA, Maria Lúcia. Livro de Possuídos. 1ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2002.)

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