Quem sou eu

Minha foto
No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Trilogia maldita


"O homem só pode pretender felicidade
servindo-se de todos os caprichos da imaginação."
Marquês de Sade, in Os 120 dias de Sodoma



Rota 99


A Orgia e a Morte são duas jovens graciosas,
Fartas de beijos e de frêmito incontido, (...)
Baudelaire, "As duas boas irmãs", in As flores do mal


Rota 99 entrou com tudo num fim de tarde - águas de março. Um calor úmido e insuportável fazia crescer o tiquetaque do desejo rumo noroeste. Cristais tilintavam, paredes estremeciam e raios atingiam em cheio a terra molhada.
Tambores soavam numa selva desconhecida, anunciando. A pedra, o poço, o transe, uma civilização perdida; sacrifício humano jorrando sangue sagrado e profano.
Sedução, e a razão, entorpecida, o corpo murmura: sim, sim, sim.
Num tempo irreversível. Controlado, personalizado, estudado, ao alcance da mão, medo da surpresa e da dor. Medo de se achar fora do papel milimetrado, e surpreender-se: tigre, em círculos, acuando a presa, devorando-a, despedaçando-a.
Perder o controle, profanar o obelisco quente e latejante e tornar-se vítima sagrada - toda à mostra, os músculos em prontidão, a carne viva, fluidos se interpenetrando, escambos na paixão instantânea.
Insinuar, burlar, apostar na surpresa e no desconhecido. Um tempo sem volta. Mas ali, um rocambole negro e futuro, desenrolando-se rapidamente, alta velocidade, rota 99.
Os faróis cegam e a vontade acelerada do fogo e do asfalto: febre superando medo, conduzindo rápido ao destino: rota 99.
"Let's get lost."
Ponto de encontro sinalizando, o ápice viria, era certo. O rosto mediterrâneo, os olhos sorrindo, assentindo. Ao tocar o perfume, pensei: vou me perder. As horas futuras, intermináveis, selaram-se ali, na escuridão da rota 99. Vênus descontrolando as marés. O tambor dentro de mim - tuntum, tuntum. Esta noite ou nunca.
O selo supremo. Nada mais importa. A seta indica um porto feliz. Os tambores rugindo, o tigre antecipando o desencarne. Sacrifício. O corpo estanca e escorrega fundo. Peço, ensandecida, e um vulcão agiliza a poção sagrada do amor. Uma, duas, outras vezes. Cansaço, alívio e prazer percorrem os sentidos.
A morte instantânea anuncia: renovado, o corpo em sacrifício percorrerá o caminho de volta na rota 99.
Uma civilização se resgata. O tigre desliza saciado. Os tambores estão silenciosos. Nenhum som na floresta.
Nem é preciso perdão. O melhor ainda virá.



Sob o domínio de Sade


(...) A sepultura e a alcova, em blasfêmias fecundas,
Nos dão de quando em vez, como boas irmãs,
Os prazeres do horror e as carícias malsãs.(...)
Charles Baudelaire, "As duas boas irmãs", in As flores do mal


Há urgência neste apelo.
Uma dor ecoa nesse chamado.
Uma ordem requere sua chegada.
Hermes, apresse sua porção alada.
Preparo-me, impaciente, diante de um toucador imaginário.
Nove minutos e noventa passos distanciam-nos da consumação.
Determino data, hora, local para que se realize o meu capricho. Minha ânsia atroz.
Descomponho o outro, atiço-lhe o orgulho como se remexe uma fogueira. Quero que lhe doam essas ínfimas brasas. A pele marcada por pequenos sinais, souvenirs do sinistro prazer.
Ordeno que venha rápido. O sofrimento e as agruras da minha pressa e determinação.
Demarco todos os meus desejos e caprichos na ponta de um salto agudo imaginário, que perfura dolorosamente o seu receio, a fazer da fera bicho manso e dócil. Medo de cometer um erro sequer e perder-se na minha lâmina pensante. Impossível atravessar o roteiro traçado de viés. A mera miragem de perder a presa no momento de fúria faz da sua vontade músculos e movimento a reagir.
Imprimo-lhe a dor urgente do meu estímulo, a requerer, iminente, que algo atravesse meus sentidos, contundente, preciso, doloroso, brevíssimo. Perfurar, pungir, mortificar até que eu desfaleça. O prazer inoculado nessa transgressão.
O outro a exalar um medo animal, corre, selvagem. O odor alquímico a lhe atrair a esse domínio feminino. Na desabalada, o reflexo ardente de um cristal atinge-lhe em cheio o olhar, lembrando a ampulheta no aparador a escoar seus últimos grãos de areia. Mais um minuto apenas. O desespero impinge ao corpo, então, as torturas mais cruéis: atravessa espaços sinistros e inóspitos, farpas perfuram-lhe o corpo. A gravidade, dolorosa, a sugar-lhe um rio vermelho. Consigo carrega nada além do poder que, ao fim, nos libertará.
Pressinto sua chegada. O calor que sobe em vapores etílicos entorpece a determinação de lhe negar três vezes.
Uma voz poderosa brada que se abram as portas deste reino. A ponte levadiça desiste de oferecer resistência. Cavalariços abrem caminho a ele que chega. Cavalos, indomáveis, exalam algo indizível. As mulheres calam-se à sua passagem.
Inserido na extremidade do destino. Aplico um punhal fino na sua vontade, retalho as pretensões de seu orgulho masculino, rasgo-lhe os códigos preestabelecidos. Em gotas ferventes um ungüento poderoso a arrancar-lhe a pele. Enceno um escárnio de sua indefesa condição. Deusa absoluta desse capítulo da história humana.
Premeditada, descarno por um instante a vendeta feminina. E, paradoxo, entrego-me aos braços ferozes e tirânicos. Esfolada viva, permito que lâminas finíssimas escalpem e dilacerem o que há em mim. Um prazer sórdido apodera-se de meus nervos expostos. E, do alto do meu orgulho, profetizo um mundo maldito e cruel.
E no ápice dessa tortura, algo abocanha o núcleo do amor. O poder do elixir que perpetua a espécie expande-se num silêncio bruto.
Algo congela-se num tempo histórico.
Um mundo inteiro interrompe seu curso.
Em repouso absoluto, corpos recuperam essências.
Hermes, enfim, cumpriu o prometido.


A queda do Segundo Templo


Ó monstros, ó vestais, ó mártires sombrias,
Espíritos nos quais o real sucumbe aos mitos, (...)
Baudelaire, "Mulheres malditas", in As flores do mal

Um muro sagrado impõe-se. Pedras gigantescas encaixam-se e reencaixam-se, coesas e indissolúveis; nem um fio perpassa por essa fortaleza que recobre e defende como uma cidadela.
Quando por ventura ameaçados por forças externas, os gigantes de pedra colocam-se, alertas, armando-se contra o possível inimigo. Como soldados em prontidão, encenam um escudo poderoso.
Por vezes, não avisto Tito aproximar-se, nem percebo seus exércitos avizinharem-se da minha fortaleza. A terra então claudica, como se um terremoto chegasse trazido no som longínquo e aterrorizante da marcha dos soldados, às centenas, aos milhares. Pés guerreiros ganham passo a passo o chão, o retinir das peças e das lâminas corta o ar como um grande machado ritmado. O som ensurdecedor da guerra se aproxima. Estremeço ao sentir: serei vencida.
Ouço - mas a ilusão me cega - os gritos bravios dos homens em fúria. Ouço à distância Tito ordenar, gritar, comandar. Um objetivo único: a destruição completa dessas muralhas. Mas, sádico, manterá intacto um único trecho, para que se reconheça por meio dessa visão seu poder feroz. A profanação desse território sagrado, sua absoluta rendição.
A terra treme mais forte sob o impacto da marcha determinada e coordenada do comboio humano. Mas a ilusão desmedida de que nada destruirá essa proteção calcária. Essa estátua circular que rodeia, voraz, como uróboru. Cada vez mais próximos os gritos e a fúria do exército, que sinto, em pouco, me dizimará. Por fim, a voz de Tito incita o ataque.
A ilusão escoa por entre as fendas da terra craquelada. Inerte, presencio cenas enlouquecidas, homens buscam, kamizaze, a vitória a todo custo, muitos deles pisoteados, outros a destruir partes dessa morada, outros feridos entre os escombros, outros reverberam a força de sua predestinação. Adentram com fúria e sede de conquista o terreno delicado e róseo, mucosa exposta como ferida recente. Não há cena de mais vigor e poder do que essa massa obstinada a caminho da vitória.
Sem que eu perceba, Tito impõe-se, triunfante, diante de mim. Um esgar sela o que ele sabe, o que eu sei. As fissuras por fim aguardam seu breve destino.
Eis que o estrangeiro se aproxima. Um som metálico antecipa: aço puro adentrará o meu corpo, eu sei. Uma gota fria corre, rápida, por meu rosto. Tito conduzirá esse momento.
Tento não pensar no que virá, submeter-me a quem vence. Em meus últimos instantes vejo o que me acompanhará a lembrança: uma fronte ainda quente lateja nas mãos de Tito, os soldados urram a sua glória, lanças e espadas repicam sobre os escudos, o som final dessa batalha. Porções de terra são atiradas sobre mim. Em camadas, desapareço pouco a pouco. Tito deleita-se, algolagnia de minha condição. E, como derradeira imagem para meus olhos, o muro das lamentações surge. Inevitável, titã que se impõe, fendido, semidestruído, testemunha para sempre da minha capitulação.


Nenhum comentário:

Postar um comentário