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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

O primeiro dia

A vida dá voltas sensatas ao redor do parafuso.
Era o primeiro dia, tudo pulsava num crescendo imaginário, e havia uma esperança no futuro, ponderada, real. Trazia vontade, uma confiança renovada. Pegar carona nessa morna felicidade, e ganhar o mundo, abocanhar a cota de alegria.
O desenho foi se traçando sem que eu percebesse, desde o dia anterior, o último dia do ano. Apenas algumas gotas, dose providencial para alçar o mundo, ganhar espaço, sentir certezas. Deitei-as garganta abaixo, como se ingere a última molécula de água num deserto, como se bebe um vinho sagrado. Eu desejava algo, sem saber o que, mas queria, e faria qualquer coisa para obter.
Acordei preguiçosa, lânguida, intuitiva, mas o desejo pronto e atiçado de ser uma fogueira neste mundo.
Indicados os sinais, esperei com calma, sem pressa. O cosmo providenciaria sua resposta. As gotas faziam seus túneis por dentro, e escavavam o melhor em mim. Leve, muito leve, fui sentindo o líquido dourado tomando conta e acendendo minhas dúvidas, esclarecendo minhas paixões, pontuando minha intenção. Guiada por essa sábia alquimia, me permiti.
A tarde foi ascendendo, criando vida, oportunidades, expondo uma caixa de pandora ao avesso. Declinando do que não queria, à francesa do que não me interessava, esperei, como Penélope. Algo que trouxesse fúria, carne-viva, um duelo em que eu pudesse ser um dos titãs. Sem subserviência, esperei, como se aguarda o inesperado.
A tarde foi latejando, quente e pesada, brincando com sua astúcia de enganar. A paciência de quem trama durante o dia para desfazer à noite. Fui tecendo, e uma certeza absoluta cerrou meus portões, e pude estar quieta, a esperar e esperar. Como numa promessa, atrevi-me na trama bem feita de pontos imaginários. Numa vertente feminina, escarneci o que me pretendia, e me mantive intacta para essa vinda. Usando os fios de lã mais coloridos e deliciosos ao tato enfrentei, determinada, vontades e fraquezas; fui inserindo ponto por ponto todo o meu desejo de mulher. Esperar, sim.
O relógio foi rodopiando as horas desse primeiro dia, e a cada minuto me senti mais dona do que aconteceria. Desde cedo, eu sabia.
Eram 3 horas da tarde quando um vento leve anunciou sua chegada. À distância enviou mensagens delicadas e líricas, encharcadas de testosterona. Prometeu considerar estrelas, e se necessário, fazer chuva. O mundo feminino em dúvida e medo, mas atento a cada sentido. Uma confiança ganha à custa de suor, mormaço, umidade e oferendas literárias, cinematográficas. Com esforço e tato, conquistou o tempo e a história, essa história miúda, que é a de todos nós.
Demarcou seu lugar na geografia de estrelas, superfícies brancas, reentrâncias, saliências, um jogo de revelar e esconder. A certeza ereta, a colcha foi deixada de lado. Me coloquei à janela, sorvendo cada mínimo avanço dessa nau.
As palavras eram o melhor em suas manobras de navegante. Pontuava de forma lúdica ao que viria, muito claras as intenções. Narrou tímido suas façanhas. Mostrou-se e desnudou-se − ainda assim, reservado, a parte mais encantadora de tudo. Em vez de recebê-lo em minha morada, adentrei a sua. Uma nau cravejada de um aroma delicioso, um perfume delicado, inigualável. Pisei leve e à vontade aquele chão ancorado no espaço, claro e limpo, povoado das coisas de que mais gosto neste mundo − objetos de desejo. Uma dança de sedução mútua, tímida e discreta teve lugar ali − e confesso que aí residia grande parte da beleza. Para desfecho, uma isca seria lançada e marcaria meus olhos para sempre: o poeta pisando trôpego o beco e suas garrafas, letras sobre papel esvoaçavam arrastando a poesia cotidiana, morta no corpo, viva no pensamento. Repeat, repeat, repeat...
Ainda com os olhos banhados nessa imagem, fui tocada por dedos delicados, que me chamavam para aquilo que mais queríamos, desde o começo. Mas numa metamorfose transformou-se em fúria, descarnou um beijo wildiano, e então sucumbi como tomba uma árvore à mercê do lenhador. A cumplicidade e o grito da vontade, veladas até então, restaram ali, quietos agora, apenas expectadores, pois a carne sangrava ao ser lacerada e hematomas surgiam diante da crueza e da voragem. Não havia mais volta. Percorrida em todos os sentidos, de um jeito intenso. Tocada e beijada das formas que mais gosto – rosebud –, fui subindo o Olimpo, numa noite inventada.
Tamanha era a alegria da entrega, quis oferecer essa alegria também. Blow up. Então, um meteoro intenso surgiu no meu horizonte, palpável, prestes já a arrancar de dentro o que de melhor a alma humana tem a oferecer. Mas houve um milissegundo de ternura, e as mãos se colaram, como quem não quer perder o outro quando a terra escancara uma fenda em um terremoto. Para em seguida uma promessa se cumprir: o céu abotoado de nuvens foi pontuando as estrelinhas, e desabou sobre elas. Tornou mais agudas minhas vontades. Uma cena doce teve seu momento, e os beijos agora eram menos tormenta, e mais chuva fina a fazer palco em nossa boca. A loucura e a força de toda essa história caminhavam para seu desfecho, enfim.
A prata oculta nos profundos, personagem principal dessa odisséia, já tamborilava lá dentro, fervia aflita, pronta para ser arrancada como ouro negro. Felicidade de mulher saciada, assim, aos borbotões texanos.
Sons primitivos preencheram esse lugar encantado. Lá fora, anoitecia. Ninguém poderia imaginar que um céu pode prometer e cumprir se assim for preciso... E alheia a todas essas coisas belas e insanas a Terra percorria tranquila em elipse seu primeiro dia de translação.
A vida também, assim como a Terra, dá voltas sensatas ao redor do parafuso.

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