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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

domingo, 9 de maio de 2010

Dia das mães, e um presente sincrônico

Há muito tempo não ia ao bairro da Liberdade. Nossa, nem me lembro a última vez. Mas preciso urgente de um secador. Perguntei pra pessoa que cuida do meu cabelo qual modelo e onde comprar. Munida das informações, lá fui eu sábado à tarde de metrô à Liberdade. Ikesaki era o destino.
Bem, como típica mulher que sou, claro que não pude me ater apenas ao objetivo da minha ida até lá. Meus olhos brilharam quando viram inúmeros produtos, para os mais variados objetivos. Mas eu tinha que escolher, então, me encostei no balcão da Loreal. Preciso de um batom novo e bom. Andei comprando alguns pelo preço, e eles não duram uma hora nos lábios. Resolvi que queria investir num melhor.
A vendedora e demonstradora dessa marca, olhos pintadíssimos, rosto aveludado pelos pancakes, derruba as prateleiras -- percebeu que potencialmente posso ser uma compradora por impulso. Vai me mostrando batons, gloss, rimel, delineador, iluminadores, sombras... e eu vou sendo encantada, como se ela tivesse o canto da sereia e eu fosse um pescador. Quando dei por mim, o dorso das minhas mãos estava todo cheio de glitter, coberto por várias cores, brilhos, enfim...
Percebo que preciso muuuuuuuuuuiiiiiiito de tudo aquilo, há uma ordem em mim que me diz: você precisa de tudo isso, você precisa, você precisa...
Bom, peço então que ela feche minha conta. Ela soma tudo, um valor alto. Eu dou um passo atrás. O bom senso adormecido em mim acorda, e penso que tenho outras coisas importantes pra comprar pra casa, pra Isadora, e até mesmo para mim. Tive que desapontar a moça de olhos sombreados em demasia. Peço que vá tirando alguns itens até chegar ao valor que não doerá no meu orçamento mensal. Já tenho o secador, então posso viver com um batom e dois gloss. Vou ao caixa. Vejo que as mulheres carregam cestas pesadas de produtos. Me sinto menos mal por meu impulso inicial. Nós mulheres somos assim... (pelo menos, a maioria de nós, diríamos.)
Como sou mãe, e nunca volto pra casa com algo pra mim sem trazer algo pra Isadora, pesquisei o que poderia lhe agradar: ela adora cremes para o rosto, para as mãos. Pego um que acho que ela vai gostar.
Estamos a um dia do dia das mães, ganho dois presentes: um nécessaire da Loreal e um pingente em forma de coração vazado (acho que banhado a ouro) pendurado de lado, bem bonitinho, de uma parceria entre Ikesaki e uma joalheria.
De novo fora da Ikesaki, na praça da Liberdade, vou lembrando algumas coisas que esta região me traz. Muitas vezes eu vinha visitar meu pai no trabalho, o Fórum, ali do lado, na praça João Mendes. Vinha buscar minha mesada, quando adolescente, ou simplesmente ligava pra ele: “Pai, posso subir pra te dar oi...”. Também me lembro que um dos meus cursinhos pré-vestibular era ali perto, estação São Joaquim. Eu estudava pra passar em medicina. A gente às vezes ‘cabulava’ aula, quando não aguentávamos mais aquelas fórmulas, e íamos numa choperia ali perto da praça da Liberdade. Anos 80, falávamos de política, de música, de chico buarque, de namoros, de futuro, de possibilidades, de tudo enfim. Havia uma garra subliminar em todos nós, uma vontade de futuro, de estudar, de crescer, amadurecer, ganhar as escadarias do mundo, subir nelas.
O metrô Sé, naqueles tempos, era ponto de encontro pra muita gente. Não havia esse mar de gente circulando por lá e era fácil encontrar um amigo, amiga, namorado, rolo. Me lembro que algumas vezes marquei encontro com um ex-rolo ali (naquele tempo o termo técnico era ‘amizade colorida’). Meus pais nem sabiam onde eu ia, eu só dizia: vou sair com um amigo. E diferentemente de hoje, eles não se preocupavam se eu seria raptada, se desapareceria sem deixar rastro, se seria assaltada, se sofreria algum tipo de mal. Eram tempos diferentes. Havia outros problemas, mas violência era raro.
Decido ver se ainda existe o prédio onde ficava o cinema japonês, praça Carlos Gomes. Ando alguns passos, e já sinto a decrepitude. Lixo, sujeira, sei lá: festa estranha, gente esquisita. Encontro o prédio exatamente como era há mais de 30 anos, apenas a cor é diferente. Mas a decepção cala fundo: agora o 'meu' cinema japonês é uma igreja evangélica.
Me atiro na rua dos Estudantes, só pra ver como está. Tento ir a uma igreja antiga que tem numa travessa, mas, além de decadente, arruinada, ela está fechada. Meu coração dá um pontadinha de dor, sempre sinto isso quando vejo minha cidade da infância e da adolescência ser carcomida pelo descaso ou pela destruição para subir mais um arranha-céu. A rua é um beco, e a fachada da igreja fecha o final da rua. Ali na frente misturam-se umas vendedoras que acabam de sair de uma loja e um sem-teto, enrolado num cobertor, talvez esperando a loja fechar totalmente para retomar sua “casa” noturna. Meu estômago embrulha.
Faço o caminho de volta e entro numa Bakery, não sei mais se japonesa ou chinesa, mas muito boa, à qual já fui várias vezes. Esqueço a dor da igreja e do mendigo. Como de hábito, peço pão feito no vapor, recheio de frango. Sempre peço isso quando vou até lá. Sei que sou óbvia, mas gosto de ir aos mesmos lugares e pedir as mesmas coisas. Coisa de sagitariano, eu acho. Meu pai também é assim. Novidade não é com ele.
Me sento lá, e fico pensando um pouco tristonha na decadência que sinto no bairro da Liberdade em relação ao tempo em que o conheci, há mais de 25 anos. Ali era o próprio Japão. Hoje não sei direito quem são seus habitantes e comerciantes. Era tudo muito limpo e aquelas lanternas japonesas no alto das ruas estavam sempre bem cuidadas. Vi ontem que elas estão muito sujas, maltratadas, sem qualquer manutenção. Pena.
Vejo uma criança e algo cutuca minha memória. Não sei bem por quê. Mas lembro diretinho de uma cena com um amigo de adolescência, e penso que não nos vemos faz tantos anos. Me pergunto por que o passar do tempo, em vez de aprofundar as relações, muitas vezes nos separa de quem gostamos. Num segundo já esqueci do meu amigo e acelero sem rumo.
Volto para casa, trazendo umas flores dentro do metrô, que comprei pra minha mãe ali mesmo na Liberdade pra lhe dar de dia das mães. Era uma barraca de japoneses e as flores estavam muito bonitas e frescas. Havia todo o tipo: crista de galo, begônias, minirrosas, rosas, gerânios, crisântemos, rosas, flores do campo, e outras tantas que eu sequer conhecia. Pego um vaso de begônias, estão lindas na sua cor laranja. Um flash na minha mente me lembra uma barraca parecida que vi em Londres quando fui encontrar com minha filha num restaurante natural no centro, perto de Oxford street. O flashback me fez lembrar que eu achava lindas aquelas barracas de flores em meio à turba de pessoas no horário do almoço. Mas, na praça da Liberdade, a barraca de flores era a única coisa bonita, colorida e alegre no entorno.
No metrô, lotado para um sábado, entro com uma sacola grande numa mão, um vaso na outra, e, nem acredito, um homem logo se levanta e me diz pra eu me sentar. Eu fiquei envergonhada, peço que ele não faça isso, não é preciso, mas ele faz questão, dizendo que estou com pacotes, e se mantém de pé, firme. Bom, nessa altura, todas as pessoas ao nosso redor estão nos olhando. Na atualidade, infelizmente esta é uma cena incomum, ninguém dá o lugar, nem para uma mulher, nem para um idoso, nem para uma mãe com crianças. Eles só são salvos pelos bancos destinados a eles, caso contrário, morrerão de pé até a última estação.
Chego em casa, e me lembro que tenho um jantar de aniversário de uma grande amiga. Separo roupa e sapatos, dou uma arrumada nos cabelos com meu secador novo. Feito isso, vou abrir meus e-mails. Apenas pra constar que os abri hoje. Vou sem vontade lendo e jogando no lixo as propagandas virtuais. Respondo aos amigos, neste caso, sempre com carinho e muita vontade. Há um e-mail de trabalho, não respondo. Trabalho, agora, só na 2ª feira. Mas lá no final da lista do dia, um e-mail chama minha atenção. Sincronicidade é a surpresa do tempo. Não é?
Abro e uma sensação boa se abate sobre mim. Depois de quase 20 anos sem notícias, o amigo da adolescência no qual pensei hoje à tarde me escreve. Reencontro nos bits e bytes da vida. Nas palavras dele, “caso eu seja a Sandra Brazil que ele conheceu”.... Sim, sou eu. Eu tinha 15 anos quando o conheci numas férias, nos correspondíamos, inúmeras cartas, dúvidas, perguntas, o mundo chegando a nós como um barco chega no porto, deslocando muita água; o que seríamos no futuro, como nossos pais, será? Depois nos reencontramos na faculdade. Depois nos perdemos. Depois, reencontro trabalhando juntos. Depois, silêncio. Na verdade, lembrar nossa trajetória me refrescou a inocência que um dia já houve em mim – um tempo sem atritos, sem pré-julgamentos, um corpo mais disponível, sem a tensões da antecipação. Eu era toda lânguida à espera do que a vida me traria.
Receber as palavras doces de um amigo de tanto tempo está para a barraca de flores que embeleza o entorno na Liberdade. Elas vêm a calhar e embelezam a mim também. Afinal, é dia das mães, e eu mereço um lindo presente.

Um comentário:

  1. flores de 'cores de Frida Kahlo'.

    consegui sentir os cheiros, ver as cores, escutar os barulhos da Liberdade com teu texto 'lindona' [ como você mesma diz ].

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