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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

domingo, 11 de abril de 2010

É tudo verdade

Vou buscar em Vinícius: "(...) Impossível fugir a essa dura realidade/ Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios/ Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas/ Todos os maridos estão funcionando regularmente/
Todas as mulheres estão atentas/ Porque hoje é sábado.(...)"
O sábado foi promissor. Muito melhor do que eu esperava. Na verdade, tudo começou na sexta-feira.
Estava trabalhando duro, e me avisam que terei de sair mais tarde. Já são 20h. A noite vai se dura, imaginei... Eu e meu companheiro de trabalho nos debruçamos sobre o que nos foi legado fazer, para abreviar o processo. Meu celular toca. Não reconheço o número. Atendo. Uma voz reconhecida e serena me chama do outro lado: Oi,tudo bem? Eu pergunto quem é. Oi, sou eu..., liguei pra saber se você se está bem.
Na última postagem eu disse que aceitar ser cuidado é uma arte. E eu me vejo esta semana sendo cuidada de vários pontos.
Você ainda está brava comigo? Eu disparo uma gargalhada, solta e alegre. Não, não estou. Ele diz: saudade. Eu respondo que também. Vamos nos ver? Sim.
Estava garoando, pouca gente na rua quando saí. Ouvi meus passos trotando nas calçadas cheias de quebraduras de Perdizes. Estou exausta depois de um dia que começou às 9h e está finalizando às 23h.
Nos falamos ao telefone. Impossível encontrar agora. Muito tarde para mister-embaixo-das-cobertas, e eu na verdade estou exaurida, sem energia mesmo. Vou pra casa, querendo banho e cama. Está friozinho, do jeito que o diabo gosta para aqueles que estão se amando. Garoa lá fora, edredom e carinho aqui dentro.
Acordo tarde e o dia passa preguiçosamente. Faço uma programação light com minha filha. Volto pro meu chatô. O sol está se pondo, douradão sob minha mira atenta. Neste exato momento recebo um telefonema. Ele quer tomar conta do meu território. Que bom, eu penso. Retomo minha alegria conhecida, e me permito pôr mais uma pá de terra nas coisas que desfalecem. Será isso o remédio do tempo? Ouço alguns segredos, desvendo alguns mistérios. Acho que estou nos trilhos de novo. Rédeas bem presas nas mãos.
Aí chega o domingo. Acordo serelepe depois de um sábado bom, gentil e generoso comigo. Resolvo coisas práticas da minha vida e da minha casa. E a tarde será só minha. Recebo mais um telefonema. Um cálido cuidado me chega do outro lado do fone. Pareço uma aquarela delicada, pronta pra se desmanchar. Retribuo o carinho. Me sinto uma flor tocada pela brisa.
Quero ir ao "É tudo verdade", e decido por um documentário holandês sobre a viagem de 21 dias do Zepellin, em 1929. Me animo, me arrumo, e parto para o Centro Cultural Banco do Brasil.
Sem carro, pego um ônibus e em menos de 10 minutos estou na rua Xavier de Toledo, a rua da minha infância. Desço e caminho até a esquina do antigo Mappin, de frente pro Teatro Municipal. Uma imagem aparece: anos 60, minha mãe envolvida num casaco chique de lã negra até os joelhos, meias de seda e sapatos de saltos finos, bolsa de mão. Ela pega firme na minha mão e fala que vamos fazer compras no Mappin. Eu também estou bem arrumada para a ocasião. Sempre que íamos ao Centro, ela me vestia com esmero. O Centro requisitava esse tipo de cuidado. Eu era muito pequena, mas achava lindo o Municipal, à minha direita, aquela imponência sobre a escadaria. Havia um relógio no Mappin, e eu sempre perguntava: Mãe, que horas são? O Mappin fazia parte da minha vida. Significava que ia passear de ônibus elétrico e brincar de correr, pular entre mobílias, eletrodomésticos, bonecas e afins. Depois de tudo, ela me levava para lanchar, e eu pedia um sanduíche americano.
Jogo uma toalha fria na memória e quebro à direita no viaduto do Chá. O dourado do outono bate forte nessa espécie de mito paulistano. Minha avó me contava que muitas pessoas se atiravam dali quando ela era mocinha, e que ela costumava frequentar as casas de chá com as amigas na rua Líbero Badaró. Ao longe vejo a obra polêmica da praça Patriarca. Me sentia mais à vontade com aqueles terminais de ônibus anos 50, era familiar para mim, que sempre vinha com minha mãe e descia as escadarias da galeria Prestes Maia para comprar livros do MEC. Certa vez, anos 80, eu era recém-casada e havia um bar em um hotel ali na esquina. Meu ex-marido me convidou pra tomarmos algo lá. Nos encontramos na porta, como só os apaixonados o fazem. Beijos e abraços de saudade depois de apenas 10 horas separados. Havia meia-luz lá dentro, uma sensação de aconchego. Depois, fomos ao restaurante de frente à faculdade São Francisco, a uma quadra dali. Jantamos como deuses, sob a mira daqueles garçons que ainda vestiam terno branco com gravata-borboleta.
Sacudo de novo as lembranças, e me embrenho pela rua da Quitanda, que dá acesso ao CCBB. Está vazia, só alguns gatos pingados às 16h30. As portas do comércio estão pichadas com coisas ininteligíveis, o calçadão está sujo e há um forte cheiro de urina... Apesar daqueles prédios lindos, arquitetonicamente históricos da minha cidade, apresso o passo para fugir desse tom de decadência e falta de cuidado do setor público.
Chego ao meu lugar de destino, e consigo um ingresso facilmente para minha sessão. A moça da bilheteria é educada e atenciosa, e penso que estou tendo sorte esta semana. Estão me embalando nessa onda de cuidado. Tento comprar um ingresso também para a peça de Clarice Lispector, e ela me ajuda a encontrar um bom lugar. Me diz que pessoalmente, em certos espetáculos, gosta de ver do mezzanino. Vou na dela e compro meus ingressos. Nem acredito que no meu caminho só tem surgido gente de carne e osso nesses últimos dias. Pergunto qual é o atalho menos pior para ir embora dali mais tarde, no escuro, evitando possíveis assaltos. Ela me pergunta se não prefiro ir de vã até a Consolação. Eu estou sem carro, mas nada impede que eu vá com as pessoas que estacionaram o carro lá. Penso um pouco, agradeço o cuidado, mas declino. Prefiro ver as luzes do viaduto do Chá depois do escurecer. Ela diz que não será perigoso, mas que eu fique apenas 'atenta'. Ok. Got it!
Há bastante gente nessa sessão. Pelo que percebo, a maior parte está sozinha. A moça ao meu lado parece ser bem interessante, e vejo que comprou títulos qna livraria. Ao lado dela, duas cadeiras à direita, há um moço bem bonito, descolado, meio perdido. Seu olhar estaciona no meu, e ele baixa os olhos e finge que não está ali. Rio intimamente. Que bom, não sou só eu que sou tímida assim...
Filme terminado, me aconhego um pouquinho no café, e bato em retirada. Ao caminhar pelo viaduto do Chá, meu coração para de remar, abrupto. De súbito me lembra que faz pouco ele flanou ali, saltitando como um coelhinho sobre as pedrinhas cor de terra. Cenário de uma peça que poucos têm a chance de escrever ao longo da vida. Bar do Estadão e seus ossinhos de dinossauro, uma fauna exuberante. 4h da manhã, a avenida São Luiz traçada de uma margem à outra, como se fosse um rio. O fog de inverno congela, mas ali no círculo de giz é verão. Embaixo do letreiro que corre, um rodopio planta a coreografia da alegria. Um universo de estrelinhas orquestra os olhos que cavalgam querendo ir longe. Confirmam que ali se configura uma nova história, essa micro-história que compõe a história de tudo. Sinos soam dizendo que algo novo nasceu. Pode ser Paris, Londres, Rio, Madri, São Paulo: tanto faz. Ali se fez o instante-luz. Assim como você, eu sei.
Estou já no largo do Paissandu, e a decadência agora se mostra nos bares sórdidos, sujos e de frequência duvidosa (confesso que gosto deles, mas não ouso entrar desacompanhada e me sentar no balcão). Alcanço o ponto de ônibus. Vejo que diante dele há um cinepornô. Me distraio um segundo e quando percebo um homem saiu rapidamente de lá de dentro, e, não satisfeito com tudo o que assistira lá, olha direto para meu vão livre e passa a língua nos lábios. Me arrependo amargamente de estar de jeans justo. Mudo de lugar, ele desiste. Uma fauna toma conta da São João. Dá pra fazer um filme.
Pego o ônibus e em menos de 10 minutos estou na esquina de casa. Satisfeita com meu final de semana. Cuidada como uma orquídea.
Isso tudo não é história de pescador.
Eu juro.
É tudo verdade.

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