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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Em Elizabeth Bishop, a sábia arte (de saber perder)

Vão-se os anéis, ficam os dedos. Ouvi sempre minha mãe dizer. Que deve ter ouvido de sua mãe. Que num efeito myse-en-abyme deve ter ouvido da sua, e ouvido e ouvido... uma história sem fim. Acreditei nisso. Me fiei nisso.
Sempre que perdia algo, fosse material, não fosse, me lembrava desse ditado.
Mas depois que cresci, eu conheci a literatura, os autores, os textos, os poemas. Em Emily Dickinson, por exemplo, sofri muito ao ler a tradução de Haroldo de Campos:

Tive uma joia nos meus dedos —
E adormeci —
Quente era o dia, tédio os ventos —
"É minha", eu disse —

Acordo — e os meus honestos dedos
(Foi-se a Gema) censuro —
Uma saudade de Ametista
É o que eu possuo —

Há sempre uma saudade na perda, seja ela qual for... Uma gema se vai, e olhar os dedos significa lembrar-se dela, a ametista a brilhar em nossa memória marcando sua falta. Apesar da beleza, sempre me dói ler este poema. É belíssimo, mas não sei lidar com a saudade, presumo. Não sei enfrentar minhas faltas. A falta da gema. A saudade da ametista. Anos de terapia não solucionaram (ainda) esses pedaços da minha existência.
Há ametistas em mim que brilham e sinalizam ausências. Como boas ametistas, são discretas e delicadas, mas seu brilho chega à carne e a dor emerge.
Acordo preguiçosa, como Emily, achando que tudo está bem. De repente, a ametista se foi. Um carimbo marca para sempre minha saudade de pedra preciosa.
Mas conhecer a literatura, conhecer os autores, garimpar novos poemas tem seu lado ótimo também. Garimpando Elizabeth Bishop, já faz algum tempo, encontrei um poema seu sobre a sábia arte de saber perder...
Depois de anos sofrendo a perda de ametistas e gemas e dedos doloridos de saudades dickinsonianas, abro meus olhos sagitarianos melancólicos e sonhadores para um mundo mais real e prático da vida, afinal, eu disse no meu aniversário, aqui neste blogue, em dezembro, que queria mudar. Eis que estou mudando...
Saber perder é uma arte. E como toda arte, sábios chineses, demora-se a se absorver sua engenhosidade, sua prática, seu passo a passo. É preciso muito tempo e paciência de chineses para aprender a saber perder -- com dignidade, sem dor, sem tristeza, sem travo no coração, com desapego.
Eu, já faz algum tempo, ando perdendo coisas: chaves, livros, esquecendo roupas em hotéis quando viajo, objetos desaparecem sem a mínima explicação, perco pessoas de vista ou da minha vida. Isso, no passado, seria motivo de desespero, para alguém que tem uma vida tão controlado como eu, tudo num quadrado que construía diariamente para não me perder... Recentemente ando perdendo tudo: perdi recentemente um avião e a viagem, não liguei. A chave de casa, não mandei fazer outra. Perdi minha carteira com documentos na França, dinheiro e cartões. Foda-se! A caneta chiquérrima que minha mãe me deu de aniversário se foi nessa mesma perda... Deixei um par de brincos de pérola num hotel, jamais vou encontrá-los... Perdi alguns amigos ao longo dos últimos anos -- por intolerância minha, por intolerância deles, ou por ambas ao mesmo tempo. Perdi grandes amores (porque sempre vivo grandes amores, sou assim) -- por intolerância minha, por intolerância deles, ou por ambas ao mesmo tempo. Minha filha ficou adulta, estou "perdendo" sua presença na minha vida da forma como era antigamente -- constante, cotidiana, infantil, entregue; estou perdendo, e sei que faz parte da vida isso... E há outras perdas, que não convém dizer num blogue, apesar desse blogue ter um tom confessional...
Mas certas coisas são só nossas, como aquelas anáguas que nossas mães usavam anos 60 -- nós sabíamos que elas usavam, mas jamais elas ficavam à mostra. Sempre debaixo do vestido, escondidas.
Como se pode ver, ando perdendo bastante...
O grande ganho é que, fosse no passado, eu não aceitaria estas perdas, e lutaria contra a maré para manter, e sofreria para buscar meu par de pérolas custasse o que fosse, e manteria tudo como estava apenas pelo prazer de "ter" -- a posse de meus objetos, a presença das pessoas.
Que inocente eu era. Nós não temos nada. Nunca. Passamos pela vida tocando objetos, pessoas, situações, tão rápido que sequer nos damos conta.
Hoje posso perder minhas chaves. O mundo não desmoronará por isso.
Sábia Elizabeth Bishop e sua arte, a arte de saber perder. Perder faz parte da vida. Precisamos nos acostumar a isso também.


Elizabeth Bishop

Uma arte

“A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subsequente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério.“

(Tradução de Paulo Henriques Britto)

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One Art

The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

-Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

(Elizabeth Bishop)

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