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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Depois da chuva

25/3/2010. 14h59. Chove em São Paulo, cats and dogs, a cântaros.
A rua onde moro se torna uma torrente que desce, selvagem, do alto do bairro. Da janela vejo as sarjetas desaparecidas por baixo de um manto de água que desce, arrastando tudo. Lixo, muito lixo: copos de plástico, garrafas plásticas, papel de toda espécie, sacos de lixo, embalagens, caixas de papelão. Daqui do alto, isso tudo parece um circo macabro dos restos que descarta a população. Por que as pessoas jogam o lixo nas ruas? Não sei responder. Na minha família, desde crianças, sempre fomos ensinados a pôr o papel de bala no bolso ou na bolsa, e só descartá-lo na lixeira de casa. Faço isso até hoje, sejam balas, papéis de cartão de crédito, pequenas embalagens -- que em geral prefiro nem pegar e trazer o produto nas mãos mesmo, sem sacolinas ou sacos de papel --, ponho tudo na bolsa, me lembrando sempre que minha mãe, há 40 anos, já dizia: 'as pessoas jogam lixo nas ruas, não percebem que entopem os bueiros?' Sabedoria é bom, e eu gosto.
O trânsito começa a ficar inviável: buzinaços de vários lados chegam a meus ouvidos, os semáforos estão desligados, um caos se instala nos cruzamentos. Alguns carros sofrem pane por conta do excesso de água e simplesmente param atravessados no meio da rua, tornando ainda pior o que já não está nada bom.
Um rapaz tenta atravessar a rua (provavelmente está atrasado pra algum compromisso que não pode adiar: uma consulta médica, uma entrevista de emprego, um encontro marcado há dias), mas a água da sarjeta desce veloz, molhando seu jeans até a altura da canela. Ele corre, determinado, e se refugia embaixo do toldo da padaria. Agoniado, olha o relógio diversas vezes, mas está impossibilitado de seguir em frente: a chuva o mantém refém por algum tempo.
Eu interrompo meu trabalho num livro que estou copidescando para fazer um recorte no tempo, nesse tempo urbano que gira veloz e atroz, e me dou a oportunidade de perceber a chuva, os estragos, os fatos, as pessoas e seus pequenos dramas lá embaixo.
Enquanto vou de uma janela a outra da casa, observando e fotografando tudo mentalmente, vários pensamentos me chegam: existe um rapaz refém da chuva, em agonia para cumprir seu compromisso. Mas nada ele pode fazer. À minha direita na cidade, direção norte, o casal Nardoni presta seu depoimento ao júri, tentando provar inocência. A mãe da pequena Isabela segue 'confinada' no fórum, incomunicável. Uma angústia me toma ao pensar que, além da dor da sua perda, ela agora se vê refém de quatro paredes, provavelmente sem janelas, apenas a luz artificial, o barulho de uma torneira que goteja, devagar e lentamente, a sensação de sufocamento e de alienação imposta. Leio na UOL o texto do jornalista Rogerio Pagan, testemunha do caso, sobre as condições do confinamento. Eu, que sou claustrofóbica, me agonio...
Helicópteros começam a cruzar mais intensamente o céu, aqui perto. Será apenas a chuva?
À minha esquerda, penso na minha filha que está na faculdade neste momento. Apavorada com raios e trovões, imagino que ela esteja em maus lençóis. Nesses momentos de chuva, minha avó falava em voz alta: "Santa Bárbara!" Quando ela não queria que chovesse, colocava um ovo no quintal pra Santa Clara e, segundo ela, a chuva não vinha...
No final do dilúvio, há estragos na cidade toda: ruas alagadas, carros arrastados, queda de árvores, caos no trânsito, pessoas molhadas da cabeça aos pés, gente que não conseguiu chegar onde queria, gente que levará horas para chegar em casa.
Tenho terapia nesse dia. No final da tarde, saio apressada da garagem. Paro na locadora para entregar um filme, molho meus sapatos nas poças da calçada. Sigo adiante em meu caminho em direção ao dia da semana que me salva, me conforta, que me recompõe depois de tudo.
Depois da chuva, me sento e olho nos olhos do alívio para minhas dores. Me sinto acolhida como nunca, ganho confiança, deixo lá fora a casca dura da proteção que me salva do que é difícil. Ali, estou nua, apenas as minhas ideias e sentimentos a girar. Enfim posso ser Sandra Brazil, carne e nervos expostos. A chuva passou completamente. Parece que um deus sereno se instala dentro de mim. Ali, me deito, e posso então chorar.

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