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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Sob o domínio de Sade

Sob o domínio de Sade

(...) A sepultura e a alcova, em blasfêmias fecundas,
Nos dão de quando em vez, como boas irmãs,
Os prazeres do horror e as carícias malsãs.(...)
Charles Baudelaire, "As duas boas irmãs"


Há urgência neste apelo.
Uma dor ecoa nesse chamado.
Uma ordem requere sua chegada.
Hermes, apresse sua porção alada.
Preparo-me, impaciente, diante de um toucador imaginário.
Nove minutos e noventa passos distanciam-nos da consumação.
Determino data, hora, local para que se realize o meu capricho. Minha ânsia atroz.
Descomponho o outro, atiço-lhe o orgulho como se remexe uma fogueira. Quero que lhe doam essas ínfimas brasas. A pele marcada por pequenos sinais, souvenirs do sinistro prazer.
Ordeno que venha rápido. O sofrimento e as agruras da minha pressa e determinação.
Demarco todos os meus desejos e caprichos na ponta de um salto agudo imaginário, que perfura dolorosamente o seu receio, a fazer da fera bicho manso e dócil. Medo de cometer um erro sequer e perder-se na minha lâmina pensante. Impossível atravessar o roteiro traçado de viés. A mera miragem de perder a presa no momento de fúria faz da sua vontade músculos e movimento a reagir.
Imprimo-lhe a dor urgente do meu estímulo, a requerer, iminente, que algo atravesse meus sentidos, contundente, preciso, doloroso, brevíssimo. Perfurar, pungir, mortificar até que eu desfaleça. O prazer inoculado nessa transgressão.
O outro a exalar um medo animal, corre, selvagem. O odor alquímico a lhe atrair a esse domínio feminino. Na desabalada, o reflexo ardente de um cristal atinge-lhe em cheio o olhar, lembrando a ampulheta no aparador a escoar seus últimos grãos de areia. Mais um minuto apenas. O desespero impinge ao corpo, então, as torturas mais cruéis: atravessa espaços sinistros e inóspitos, farpas perfuram-lhe o corpo. A gravidade, dolorosa, a sugar-lhe um rio vermelho. Consigo carrega nada além do poder que, ao fim, nos libertará.
Pressinto sua chegada. O calor que sobe em vapores etílicos entorpece a determinação de lhe negar três vezes.
Uma voz poderosa brada que se abram as portas deste reino. A ponte levadiça desiste de oferecer resistência. Cavalariços abrem caminho a ele que chega. Cavalos, indomáveis, exalam algo indizível. As mulheres calam-se à sua passagem.
Inserido na extremidade do destino. Aplico um punhal fino na sua vontade, retalho as pretensões de seu orgulho masculino, rasgo-lhe os códigos preestabelecidos. Em gotas ferventes um unguento poderoso a arrancar-lhe a pele. Enceno um escárnio de sua indefesa condição. Deusa absoluta desse capítulo da história humana.
Premeditada, descarno por um instante a vendeta feminina. E, paradoxo, entrego-me aos braços ferozes e tirânicos. Esfolada viva, permito que lâminas finíssimas escalpem e dilacerem o que há em mim. Um prazer sórdido apodera-se de meus nervos expostos. E, do alto do meu orgulho, profetizo um mundo maldito e cruel.
E no ápice dessa tortura, algo abocanha o núcleo do amor. O poder do elixir que perpetua a espécie expande-se num silêncio bruto.
Algo congela-se num tempo histórico.
Um mundo inteiro interrompe seu curso.
Em repouso absoluto, corpos recuperam essências.
Hermes, enfim, cumpriu o prometido.

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