Quem sou eu

Minha foto
No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

domingo, 29 de janeiro de 2012

"O bricoler", de Lizete Mercadante (a RedCat)

"O bricoler


Estranho que de uma convivência de trinta anos, tenham restado dele apenas duas imagens superpostas. Eu muito pequena, cabendo inteira no espaço de seu abraço. A barba por fazer me raspa o rosto, é a primeira vez que experimento essa sensação ao mesmo tempo desconfortável e de intenso prazer. Ali, naquele refúgio, nada poderia me colocar em risco.
Depois, essa barba cresce, é branca e longa, até que um dia ele a corta e seu rosto fica macio e liso. É assim que me lembro dele nos últimos anos de sua vida. Chapéu, sempre, óculos escuros, terno, a inseparável bengala.
Todas as manhãs ele desce os dez degraus que levam à rua e dá sua caminhada pelos lixos. Com a ponta da bengala apalpa e separa, lançando o olhar experiente aos tesouros que vai descobrindo e recolhendo com gestos rápidos. Pequenos objetos somem dentro da sacola de plástico cuidadosamente montada e costurada com os saquinhos que sobraram do leite. Ou uma outra qualquer roubada de alguma loja.
Depois dessa triunfante expedição, ele retorna ao apartamento, fecha-se em seu quarto onde já há muitos anos dorme sozinho, troca o terno pela camisa de flanela xadrez, dobra com cuidado o lenço de seda branca que usou no pescoço, e então senta-se ante uma infinidade de vidros e latas de todos os tamanhos, cada qual contendo o fruto de sua coleta diária.
São caixas vazias de fósforos, pedaços de fio e de barbante coloridos, latas, pedaços de tecido e de couro, botões, parafusos e pregos, restos de arame, restos de brinquedos, de madeiras, de vidros, e os mais estranhos objetos: porta-retratos quebrados, canetas esferográficas vazias, brincos sem par, tampinhas de garrafas, restos de papelão.
Quando morreu, enchi mais de trinta sacos grandes de lixo com o conteúdo de seus vidros e estantes. Enquanto as lágrimas escorriam por meu rosto, lembro-me de que pensava na festa que alguém como ele faria se pudesse encontrar em alguma esquina aqueles despojos.
Hesitei antes de enfiar no saco seus apitos e as varinhas de todos os tamanhos, com pedaços de pano amarrados à ponta, que ele usava para espantar moscas. Deitado, media a distância do inseto e escolhia sem pestanejar aquela que se adequasse ao alvo. Pouco errava. Ele tinha uma prática de anos.
E os apitos eram para chamar minha mãe.
Durante meus dez anos de análise percebi todos os esforços que fez meu analista para que eu invertesse o espelho de olhar o passado. Diversas vezes entendi, por trás de sua cuidadosa sutileza, a pergunta embutida: não vê que foi a sua mãe que coube a parte mais dura?
Sim, eu via.
Foi minha mãe quem carregou sozinha a barra de conduzir a família quando ele desistiu de tudo, trancou-se naquele quarto coalhado de lixo e ali viveu por quinze anos, até morrer, falando com suas mulheres — ela e eu — apenas o trivial. E assim mesmo havia o apito, para economizar o chamado que obrigatóriamente o faria pronunciar o nome dela.
Recusando-se a compreender as leis que regiam as coisas, ele nunca tinha pago aposentadoria, nem se preocupado em legalizar seus negócios. Ao fugir do convívio social, acreditara que o dinheiro recebido pela venda da última casa de comércio que possuíra — aquele armazém que para mim foi o primeiro parque de diversões — seria suficiente para nos manter, a ele e a nós duas, até o final dos tempos.
Não foi. Em menos de dois anos minha mãe se matava vendendo roupas, pegando bicos de costura, desfazendo-se de suas jóias e eletrodomésticos, recorrendo a empréstimos e à boa vontade de parentes.
Sim, eu via.
No entanto, jamais consegui inverter o curso de minhas sensações.
Aqui dentro, na região mais secreta de meu ser, onde as coisas doem ou deixam de doer depois que cicatrizam, o que ressoa sempre, o que me sustenta em momentos de profunda solidão, é sua voz erguendo-se de repente, calando a ladainha com que minha mãe sistematicamente me torturava, por horas a fio, ora criticando minhas amizades, ora se opondo a meus planos de fazer isso ou aquilo, ora num carrossel de lamentos e angústias e cobranças que me arrasavam e me faziam pensar em querer morrer. Era sua voz que a mim se estendia, que me envolvia como um casulo de solidariedade, que me ensinava o sentido da cumplicidade. "Chega, ela já entendeu." Só isso. E bastava para que cessasse aquele círculo de ferro em minha volta, para que eu de novo pudesse respirar, para que a esperança ressurgisse.
Em seu obstinado silêncio, em sua desistência do mundo, meu pai jamais deixou de ter sobre mim um olhar atento. Não se importou muito com minha sobrevivência física — ele jamais quis saber se havia ou não comida em casa, se o dinheiro seria ou não suficiente — mas soube, sempre, quando me faltava o ar.
Entre esse menino e esta menina nunca houve distância nem estranheza."


(A filha do Bricoler também guarda seus sacos de afetos, lembranças, cenas, pedras, conchas, títulos sem uso, bijuteria quebrada, cartões-postais, fotos rasgadas, pedaços de palavras ouvidas, pedaços de palavras nunca ditas, pedaços. De vez em quando junta tudo e deixa que água & sal lave e leve.
Texto de Liz Mercadante redcat@ocaixote.com.br)

(* A foto acompanha o texto originalmente publicado em ocaixote.com.br, revista eletrônica de literatura.)

Um comentário:

  1. Ah!... Assim, num dia qualquer de janeiro?
    Como é possível? Como assim? Lá fora, a neblina que tudo embaça, insiste em me fazer crer que é junho.
    Ah, o novelo da memória!

    Beijos!
    xico santos

    ResponderExcluir