Quem sou eu

Minha foto
No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Encontro marcado

Era uma sexta-feira. Ela chegou ofegante ao encontro marcado, coração a milhão e a certeza envolta numa nuvem escura. Esse jogo de esconde-esconde enlouquece uma mulher. Fazia anos da última vez que haviam se encontrado. Persistente em seus telefonemas, e-mails, torpedos, ele sempre a encontrava namorando seriamente alguém, sem nenhuma vontade de molestar o namorado. Mas sua tenacidade sempre fora um ponto de interrogação para ela. O que era aquilo? Aquele sexo casual tinha sido tão bom a ponto de ele não ter esquecido? Não. Homens não são assim... O que o prendera a ela? Sim, o sexo tinha sido ótimo. Mas ela não tinha a mínima vontade de encontrar de novo. Não queria confusão, nem repetir, apesar de ter sido delicioso. Mas no fundo no fundo aquela procura constante, de tempos em tempos, não a deixava vaidosa, não. Mas a deixava intrigada, isso sim. Durante anos foi assim. De tempos em tempos aqueles telefonemas-surpresa. Mas nada de concreto acontecia. Ela não queria. Sempre estava numa relação. Ele, ao contrário, era cidadão do mundo, solto, liberando suas doses de amor entre as mulheres -- pelo menos, era assim que ela imaginava que fosse. Depois de anos, um dia estava em férias em Londres, ela recebe um torpedo. Era ele querendo vê-la. O namorado ao lado pergunta: o que foi, algum problema? Ela não sabe mentir e responde: "Um 'cidadão do mundo' do século passado quer tomar uma cerveja comigo e depois me fazer de sobremesa... Mas do outro lado do Atlântico, fique tranquilo..." O namorado ri. Os dois riem. Passam anos, e continuam os contatos. Estranhos, imediatos, virtuais, e nada consumatórios. Mas um dia, um dia de chuva, cinza como um dia londrino, ela havia chegado do trabalho, recebeu um torpedo. Ele diz: "Esta é a última vez que lhe chamo pra sair. Se não vier em uma hora, não lhe procuro nunca mais. Estou neste endereço te esperando." Algo acendeu o sinal vermelho dentro dela... aquele descaso, aquele deixa pra depois se tornou urgente com aquela frase adeusiana "Esta é a última vez.". Pegou um casaco, a bolsa, calçou o primeiro par de sapatos que viu. Sequer retocou a maquiagem desgastada pelo dia e pelo cansaço. Uma energia estranha provocada pela adrenalina fez que ela corresse, corresse. A cidade estava um caos. Em vez de pegar um táxi, pois demoraria mais, pegou o metrô. Ela tinha agora 50 minutos para chegar a seu destino. Era agora ou nunca mais. Ela entendera bem a frase. No caminho foi pensando por que estava fazendo aquilo, por que estava obedecendo a um chamado autoritário quase? Ela não sabia; seu coração disparou, estava chegando... Desceu do metrô e seguiu em frente, trêmula, não sabia por quê. Olhou novamente o torpedo, e verificou o endereço do bar onde ele estava, faltavam 8 minutos agora. Ela correu. Garoava agora. E ela pôde ver ao longe o rosto dele, tenso, sentado à janela do bar. Ela parou um intantinho apenas para ver a diferença que o tempo esculpira no rosto dele, nos cabelos. Afinal, passaram-se anos. Havia alguns fios brancos naqueles cabelos que foram bem pretos naqueles dias de descontração e casualidade no passado; o rosto não era mais de menino descontraído, era um homem, maxilar tenso, face e pele marcadas por preocupaçoes que ela sequer imaginaria. Ela não o conhecia. Mas continuava lindo, uma beleza acima da média. Era disso que ela se lembrava, além do sexo místico e maravilhoso que haviam tido sem compromisso, sem cobranças durante alguns dias. Depois, apenas ela desapareceu, e ele não lhe cobrou nada. Quatro minutos, ela apressou o passo, e entrou no bar. Ao vê-la, o rosto dele destensionou, e ele sorriu com aqueles dentes brancos e bonitos, mais uma boa lembrança. Ele se levantou e ela caminhou em sua direção. Abraçaram-se. Um minuto, dois, três. Não soube dizer. Ela pediu vinho, ele, um destilado qualquer. Ficaram se olhando por um tempo, para se reconhecer. Ele achou que ela não viria, foi a frase que disse. Ela balançou a cabeça sorrindo. Deram-se as mãos sobre a mesa e algo aconteceu: aquela chama antiga, como fênix, renasceu ali. Não puderam esperar. Pediram a conta. "No meu ou no seu?" De repente ela entrava no apartamento dele. Mais uma vez transaram ao som de um requiem. Fora assim no passado, ela se lembrava. Ele a jogou no tapete da sala, e sob uma leve tortura, extraiu o máximo prazer para si e para ela. Ela teve de se manter numa posição estranha, mas gostou; mas de repente seus olhos se projetaram para uma parede cheia de quadros e telas. Ela viu um desenho de Anita Malfatti, e isso desviou sua atenção do sexo. Ele sentiu, e virou seu rosto para ele. Tudo retomado, ela pôde recobrar aquele prazer de tanto tempo. Por que ela fugira dele, por que não queria se aproximar dele? Bem, estava ali. Carpe diem. Eles se consumiram aquela noite, aquela madrugada. Dormiram pouco, e na manhã seguinte estavam novamente dispostos a lanhar a carne e deixá-la exposta, sangrá-la, tanto era o prazer que sentiam um com o outro. Não conversavam, não trocavam impressões, não falavam do passado, não faziam perguntas. Não saíram para comer. Ele mesmo peparou ali as refeições e o café da manhã. Estavam em êxtase, amalgamados, atraídos como ímãs, dispostos a esfolar a pele em sacrifício, num rito, numa entrega. Ela estava entregue naquele ritual. Ela estava solta, linda, e num momento de descontração total interpretou para ele, de brincadeira, cenas de dança de Isadora Duncan. Nua, ela percorria aquele apartamento enorme, povoado de esculturas caríssimas. Ela fazia sua coreografia à la Isadora, e ele a fotografou naquela sem-cerimônia: nua, gestos delicados, leves giros, rodopiando, rodopiando para se apoiar numa obra qualquer com bastante delicadeza. Movimentos diferenciados do balé tradicional. Foram revelar as fotos juntos. Ela não sabia fazê-lo, ele sim. E ficaram encantados com o resultado. Ela parecia uma deusa do Olimpo naquela gestualística inventada de brincadeira. Ele pediu a ela se podia expor aquelas fotos em sua próxima exposição. Ele chamaria essa seção de Universo de Isadora Duncan. Ela estava feliz, radiante. Ele também. Ele pensou o quanto gostava daquele corpo, tão diferente do corpo das mulheres que passaram por sua vida. Foi além e pensou: "Eu poderia me apaixonar por ela." Já era fim de tarde de domingo, o sol dourado de outono se punha devagar e eles ficaram deitados e abraçados. Escureceu. Num salto ela se levantou e disse: "Preciso ir, trabalho amanhã". Ela se arrumou, e ele ficou andando sem jeito pelo apartamento. Sentou-se no sofá e acariciou a gata Piaf, que se aninhou em seu colo. Ele se sentiu confortável por tê-la ali. Uma bolinha de pelos quentinha e fofa. Ela se despediu então, ele a beijou segurando seu rosto com as duas mãos e abraçou-a com um carinho de séculos... Piaf se enroscou entre os dois, enciumada. Ela abriu a porta, porque ele estava com dificuldade de deixá-la ir. Saiu e lhe acenou da porta do elevador. Ele ficou parado com Piaf no colo, acenando para ela, como se ele fosse o cais, e ela, um navio. Na calçada, pensou que tinha sido incrível seu fim de semana, talvez o melhor dos últimos anos. Mas saída agora do idílio, trazida para a realidade da rua e do ar, algo naquele homem a deixava reticente. Ao pensar nisso, seu celular vibrou na bolsa. Ela viu na tela um torpedo. Era ele. A mensagem dizia: "Não me procure mais."

Nenhum comentário:

Postar um comentário