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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Hoje é dia de Biblioteca do Chacrinha! Vamos receberrrrrr: Orides Fontela!

Orides Fontela, a poeta selvagem

Foto de Juan Esteves

Orides Fontela é como um felino: semeia as palavras devagar, argutamente, olhar de tigre. De repente, nos damos conta, ela armou o bote e caímos em seu desfecho cruel.

Carta
Da
vida
não se espera resposta.

As trocas
Um fruto por um
ácido
um sol por um
sigilo
o oceano por um
núcleo

o espaço por um
silêncio

-- riquezas por uma
nudez

[Orides Fontela. "Carta" e "As trocas". In: Poesia reuinda. 7 Letras/Cosac Naify. 2006. (Coleção Ás de Colete).]


Conheci a poesia de Orides Fontela nos início dos anos 90, na época, por meio de meu amigo Davi Arrigucci, que me foi apresentado por meu outro amigo Osvaldo Ceschin, ambos professores da USP.
Davi então me apresentou aos poemas de Cacaso e Orides. Foi uma descoberta. Ele me contou histórias pessoais, biográficas de Orides. Algumas estão contadas nas biografias da própria, outras são histórias da amizade de ambos que não revelo aqui.
Sei que me apaixonei pela felina e selvagem poesia de Orides, a outsider Orides, suas complicações e seu gênio difícil que a faziam criar casos, se indispor com todos, inclusive seus amigos mais íntimos, e que geravam histórias tristes e desfechos melancólicos, e algumas vezes histórias cômicas e muito engraçadas, por ser trágicas, se tornavam cômicas.
NO entanto, sua poesia é de uma força incontestável. Orides constrói o corpo lírico mirando certo escárnio ao final, como se estivesse já espreitando atrás da porta a reação adversa do leitor. Tudo isso vem embalado num rio lexical sem grandes pretensões, em que Orides vai disseminando seu talento poético sem pressa, porque parece saber muito bem onde quer chegar. O desfecho, o bote armado. A armadilha onde Orides deposita todo seu engenho. Por isso selvagem. Por isso felina.
Sua obra reunida foi publicada em 2006 na Coleção Ás de Colete pela CosacNaify/7 Letras. Uma edição caprichada, impressa em papel pólen soft 80g (um charme), capa dura envolta em tecido e com ilustração colada na primeira capa, como nos livros da minha infância; uma guarda de folhas duplas com fundo texturizado abre e fecha a preciosa edição dessa coleção. Eu garanti meu exemplar. Vocês não vão garantir o seu? Nem que seja num sebo (caso não haja mais nas livrarias) e ter uma pérola como esta na sua estante:

Mão única

-- é proibido
voltar atrás
e chorar.


Então, leitores, eu os convenci?


A seguir, dois textos da Revista Agulha de literatura (disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/of.html#inicio)

Um pouco de Orides

Orides de Lourdes Teixeira Fontela nasceu em São João da Boa Vista, interior de São Paulo, em 21 de abril de 1940. Começou a escrever poemas aos sete anos de idade. Como ela mesma dizia, sua família "não tinha base cultural, meu pai era operário analfabeto, de modo que a cultura que peguei foi na base do ginásio, escola normal e leitura". Aos 27 anos, deixou sua cidade e veio morar em São Paulo, com dois sonhos em mente: estudar na USP e publicar um livro. Conseguiu realizar ambos: estudou Filosofia e publicou seu primeiro livro, Transposição, com a ajuda do professor de literatura brasileira Davi Arrigucci Jr., seu conterrâneo.
Depois de formada, foi professora do primário e bibliotecária em escolas da rede estadual de ensino. Publicou ainda Helianto (1973), Alba (1983), Rosácea (1986), Trevo 1969-1988 (1988) e Teia (1996). Com Alba, recebeu o prêmio Jabuti de Poesia, em 1983; e com Teia, recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1996. Sempre com dificuldades financeiras, no final da vida, indo viver com sua amiga Gerda na Casa do Estudante**, um velho prédio na Avenida São João. De personalidade difícil, Orides muitas vezes se indispôs com seus melhores amigos. Faleceu em Campos de Jordão, aos 58 anos. (Texto adaptado.)

(** Gerda Scröder vive até hoje na Casa do Estudante e tem registrado seu depoimento em Elevado 3.5, disponível em: http://www.elevadotrespontocinco.com.br/elevado35/category/personagem/guerda/)

A felicidade feroz

(Ensaio escrito por Maurício Santana Dias, professor de literatura italiana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Folha de São Paulo, 07 de maio de 2005.)


Aclamada por um círculo restrito, mas fiel, a escritora Orides Fontela tem lançada sua "Poesia Reunida"


Faz exatamente dez anos que o último livro de Orides Fontela (1940-98) foi publicado. De lá para cá, a autora morreu na miséria e as edições de seus poemas sumiram das livrarias, inclusive "Trevo" (ed. Duas Cidades, 1988), que reunia até então toda a obra poética. No entanto a escritora continuou sendo comentada por um círculo restrito de poetas, leitores de poesia e críticos.
Agora as editoras 7 Letras e Cosacnaify lançam o primoroso volume "Poesia Reunida - 1969-1996" (376 págs., R$ 55), que certamente será fundamental para o reposicionamento e a reavaliação de Orides dentro do quadro da poesia brasileira da segunda metade do século 20.

Orides está entre os raros escritores que têm força suficiente para trans-formar o ato de leitura de seus textos numa experiência poética e existencial

Contudo não se trata de fazer o elogio póstumo e compensatório de alguém que sempre viveu e fez questão de viver à sombra -mas sem água fresca. Desde já, é preciso dizer que nem tudo o que ela escreveu é excepcional ou excelente. Porém, depois de lido o livro, não resta dúvida de que Orides está entre aqueles raríssimos escritores que alcançam força suficiente para transformar o ato de leitura de seus textos numa experiência poética e existencial.
As razões para isso são muitas, e a citação de uns poucos versos seus será suficiente para dar uma idéia de sua grandeza.
Exemplo: "O fim/ limite íntimo/ nada é além de si mesmo/ ponto último.// A saída/ é a volta" (versos finais do poema "Caramujo"). Por aí já se vê o diálogo cerrado que a poeta estabelece com a "tradição moderna", daqui e de fora (Drummond, Bandeira, Cabral, Murilo, Rilke, Pessoa, Mallarmé).
Como nota o crítico Davi Arrigucci Jr., leitor e amigo de primeira hora, "o senso de transcendência é óbvio em sua poesia, assim como a reflexão sobre o ser, a busca da essência das coisas". Mas "transcendência vazia", circular e sem centro, típica da lírica moderna.
Nesse sentido, é muito reveladora a aproximação que Flora Sussekind faz entre Murilo Mendes e Orides: "Parece acontecer, no percurso poético de Orides Fontela, coisa semelhante à que descreve um poema de Murilo Mendes dos anos 40, "Idéias Rosas': "Minhas idéias abstratas/ De tanto as tocar, tornaram-se concretas/ São rosas familiares". E, como no texto de Murilo, essa poesia também se deixa percorrer por uma espécie de nostalgia da abstração. Os últimos versos de "Idéias Rosas" poderiam mesmo ser lidos como motes secretos do processo de criação literária de Orides: "Rosas! Rosas!/ Quem me dera que houvesse/ Rosas abstratas para mim'" (do livro "Papéis Colados", ed. UFRJ, 1993).
Há em Orides Fontela um permanente sentimento de insatisfação com as coisas, as palavras, a vida. Insatisfação que não se traduz em melodrama ou derramamento verbal, mas numa concisão extremada, que ela partilha com outros poetas contemporâneos seus, como Sebastião Uchoa Leite e Francisco Alvim, embora o humor destes seja substituído, na poesia de Orides, por algo entre a decepção e o espanto.

Deslocamento do "topos"

Trabalhando com um repertório extremamente reduzido -flor, pássaro, espelho, pedra, fogo, tempo-, esquiva-se do lugar-comum deslocando essas imagens de seu "topos" tradicional. É o que se vê, por exemplo, nas sete seqüências do "Poema do Leque", em que a poeta flerta com o conceptismo barroco: "Cultiva-se (cultua-se)/ em ato extremo/ a anti-rosa/ esplêndida/ apresenta-se (apreende-se)/ o árido ápice/ luz vertical/ extrema" (poema cinco).
Como observou Antonio Candido, a realidade concreta, natural e histórica, é a matéria que informa seus versos. Mas tudo é progressivamente arrastado num redemoinho de abstração que anula os objetos e estilhaça a forma:

"Os pássaros
retornam
sempre e
sempre.//
O tempo cumpre-se. Constrói-se
a evanescente forma
ser
e
ritmo.//
Os pássaros
retornam. Sempre os
pássaros.//
A infância volta devagarinho".

Outro aspecto forte de sua lírica que não pode deixar de ser mencionado aqui, ainda que de passagem, está na relação estreita com as artes plásticas, flagrante no poema "Composição". Nele os adjetivos circulam de um substantivo a outro como as tintas numa tela: "Cavalo branco em campo verde/ parado/ sereno/ branco corcel ao longe/ realidade e miragem.// (...) numa viagem branca, através/ de todos os verdes/ a forma se tornava/ em ritmo, delírio/ de forças desatadas/ impulso leve e forte/ que saltava horizontes/ que rasgava as tormentas/ e as dores...// Mas agora, parado,/ o ser cristalizou-se/ na imagem de si mesmo/ realidade lúcida/ e plácida miragem./...............".
O desencanto lúcido de sua poesia é também a espera de uma felicidade que não se cumpre, mas que persiste mesmo nas passagens mais desesperadas; ainda que seja uma felicidade feroz e terrível, como nos versos finais de "Fera": "O perigo da fera: falsa ausência no desarmado silêncio.// Intensa fera. De súbito, na selva o medo salta! Mas aparece o sentido".

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