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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

domingo, 5 de agosto de 2012

Caminhos paralelos

Ele estava sentado e fazendo sua refeição. Era um fim de semana, o dia estava friozinho e ele decidira, em vez do ar livre, encerrar-se em algum lugar, comida, vinho. No dia anterior, assistira a um filme. Mas os amigos mais próximos estavam ou namorando ou casados, preferiu não fazer convites e ir sozinho.
Sem namorada naquele momento, apesar de ser um espécime Y (cuja ilusão feminina é de que não sentem falta de uma companhia exceto para o sexo), desde que se separara da última namorada, fazia algum tempo, sentia falta daquela companhia constante do corpo na cama no sábado pela manhã, de viagens juntos e trocas, da conversa e do jantar depois do cinema, das conversas nos cafés, dos desabafos dos problemas de trabalho. E depois desse depois, o sexo conhecido com aquele corpo com química desejada e com um perfume que somente ele reconhecia como seu. Seu território. Coisas "Y". Mulheres não pensam assim...
Mas ele estava em pleno gole de vinho, atalhando esses pensamentos, quando viu do outro lado, atravessando o olhar pelo vidro da vitrine, uma mulher que escolhia uns sapatos. Ele garfou mais um bocado de sua massa deliciosa, tomates vermelhos e manjericão fresco, sabor dos deuses! Entre sabores e pensamentos, pensou que ela era bem bonita. E só. Virou o rostou indiferente para o outro lado. Pensou no que faria mais tarde, depois daquela refeição deliciosa.
Mas a indiferença foi varrida dali; a moça da loja tinha uma força no andar pelo espaço que o atraía mesmo sem que ele olhasse. Ele teve que a observar de novo. Mesmo sem ouvir, ele podia ver que ela ria com a vendedora, e falava coisas que pareciam alegres, pegando agora uma sandália colorida que previa o verão. Ela usava um vestido com motivos verdes e fundo branco, discreto, que ao se sentar deixava entrever parte de suas coxas. Brancas como neve, lembravam a pele do papel-arroz. Ele teve uma leve ereção diante dessa visão. Tentou esquecer e interrompeu com vinho. Chamou o garçom e pediu mais meia garrafa daquele que era seu preferido. A comida ainda estava quente, e o espetáculo naquela vidraça estava só começando...
A vendedora então ajudou-a com a sandália, ela estava com dificuldades de colocar. Apesar da distância, ele pôde ver que os gestos simpáticos que ela distribuía na loja. A cliente mais jovem a seu lado fez-lhe alguma pergunta ou observação. Ela respondeu sorrindo e tirou algo da bolsa -- o celular e mostrou-lhe a tela sorrindo e orgulhosa. Devia ser uma foto. Um filho ou filha talvez? Um cachorrinho(a)? Ele não sabia, mas ela distribuía atenção naquele gesto e abertura de sentidos ao mostrar aquilo à jovem. Sandálias colocadas, ela passeou pela loja, olhou pelos espelhos, girou para cá e para lá.
O garçom chegou e abriu o vinho diante dele -- o que foi péssimo, estragou sua visão, e ele teve que jogar o corpo para a direita para não perdê-la de vista. O garçom perguntou se ele queria experimentar, rapidamente ele disse não e ponto final.
Ele percebeu que ela levaria as sandálias cor de damasco, ele conseguia ver dali -- que olhos de lince ele tinha! E pôde perceber que ela não pintava as unhas dos pés, apesar de as unhas das mãs estarem coloridas, apesar de ele não conseguir distinguir a cor da distância que estava. Feliz, ela entregou as sandálias à vendedora, ia levá-las. Andou mais um pouco pela loja, parando um pouco aqui, ali. Ele estava perto, por isso podia ver com riqueza de detalhes, mas ela não podia vê-lo. Ele garfou mais um pouco de comida, e tomou mais vinho. Enquanto isso, ela pediu à vendedora um número de uns sapatos de saltos redondos grossos e altos. Sentou-se para esperar, olhou o celular, clicou as teclas (uma mensagem talvez?) e o gerente, um rapaz vestido de um jeito moderno, de uns 30 e poucos anos, veio conversar com ela. Ela educadamente declinou do celular para ouvi-lo. A loja estava vazia agora. Ela sorriu para ele, respondendo alguma coisa e fazendo gestos com os braços e os dedos longos. Ele sorria para ela, simpático, e um tanto Dom Juan.
A vendedora chegou cortando o idílio do gerente descolado. Ela subiu nos sapatos moderninhos, desfilou uns minutos para si -- nisso, não havia nada para os outros, percebia-se. Era tudo para ela, para decidir se os queria ou não. Ela parecia ser delicada, mas podia se ver que era decidida. Uns passos sobre os sapatos, e ela já havia feito sua escolha. Ele estava se deliciando com aquele filme que ela protagonizava. Se deliciando com a comida, com aquele vinho, com aquela mulher -- uma surpresa completa para ele naquele dia frio.
A vendedora veio sorrindo e lhe ofereceu algo, ela balançou a cabeça em negativa, séria, decidida. Percebeu que ela não era de brincadeira. Ele não sabia se gostava ou não gostava disso... Mas precisava averiguar melhor... Bem, haveria tempo. Seu prato estava terminando. O vinho ainda tinha bastante.
De repente os olhos dela brilharam, ele pôde ver. Ela acelerou rumo ao outro lado da loja e pegou uma bolsa. Olhou no espelho várias vezes, de várias formas: a bolsa de lado, a bolsa com a alça cruzada no corpo, como os jovens usam, a bolsa com a alça bem curtinha, como bolsa de mão. Fez vários testes diante do espelho. A vendedora muda, só olhava, percebera enfim que sua cliente sabia o que queria, sabia o que fazia, não era necessário interferir. Aliás não era bom interferir. Era o tipo de mulher que não gostava de interferência, ele percebeu. Gostou daquilo, e isso lhe deu vontade de tomar outro gole de vinho. Havia terminado seu prato, o garçom pediu se podia retirar, ele fez um gesto rápido com a mão que sim.
Rapidamente, ela deu a bolsa à vendedora, e pegou a sua própria. Movimentou-se em direção ao balcão da loja. Ele percebeu que ela iria sair. O vinho estava agora na última taça. Chamou rápido o garçom, pediu que ele acelerasse a conta. Em sua mente pensou se não poderia ver se ela usava uma aliança, se ela sustentaria uma abordagem, e, se sustentasse, onde chegariam. Isso era coisas de filme ou podia acontecer de verdade?
O garçom trouxe a conta. Ele pagou, rápido.
Mas continuou sentado, terminando sua taça de vinho.
A vendedora, podia se ver, tentava convencê-la a levar outra bolsa, agora da cor dos sapatos. Ela decididamente não quis. Levou apenas a da cor que havia escolhido. Mulher tinhosa aquela! Ele pensou. Não levava gato por lebre...
O gerente moderninho fez caras e sorrisos para ela na hora de pagar a conta de sapatos e bolsa, mas agora ela estava virada de costas, ele não podia ver nada de sua mesa. Não pôde ver se ela gostava ou não da sedução do gerente-de-30 anos, se sorria ou não de volta para ele. Atrevido aquele gerente!
A vendedora arrumou tudo em uma bela sacola, mas ela pediu algo, a vendedora piscou, não entendendo. Depois entendeu. Pegou uma sacola menor e ajeitou as peças. Ah... ela não gostava de andar com pacotes grandes... Ele entendeu assim... Sacolas pequenas, menos desperdício. Talvez? Ou simplesmente menor tamanho para se carregar? Não importa.
Ela começou a deslizar pela loja para sair, a vendedora acompanhando, sacola em punho. Ele acelerou o término do vinho, ia se levantar e ver onde dava aquilo tudo. Segui-la? Talvez. Iríamos ver.
Ela saiu, mas ele logo viu que ela entrou na loja do lado. Então, mal se levantou, sentou-se novamente. Tinha que esperar. E ali era o melhor reduto de espionagem que ele tinha. Podia ver bem e passar despercebido. Era uma loja de perfumes.
Na loja de sapatos e bolsas, ele gostara do que ela comprara. Portanto, gostara do gosto que ela tinha. Sem dúvida, pensou, ela devia usar um perfume delicado, como era sua aparência, mas algo de estilo marcante, como era seu comportamento, como vira em alguns momentos na loja quando declinou quando a vendedora tentara lhe dissuadir ou lhe empurrar coisas.
Ao pensar no perfume dela, novamente uma ereção bateu à sua porta, e ele teve que se conter e pensar em escaladas, trilhas, enduros, e tudo que havia feito antes que lhe sujara de barro e poeira. Sossegou.
Ela ficou em dúvida entre dois perfumes. Pediu à vendedora o pote com grãos de café e mais uma vez sentiu os aromas. Quando ela se movimentava, ele via as pernas dela a distância entre os botões do vestido. Também via os pulsos finos e o jeito que ela fazia com as mãos. O pescoço longo sobre o tronco fino e o sorriso. Este era marcante e era capaz de dobrar um mercador. Ela se decidiu por um deles e pegou um papel com a vendedora para pagar. Ele então ficou a postos para se levantar e tentar dar um jeito de abordá-la de forma delicada, não sem antes ver se ela usava algum anel ou aliança. Ele tinha quase certeza de que ela era uma mulher livre, pelo jeito livre que ela transitava e se colocava no mundo. Veríamos.
Mas a fila do caixa da loja tinha muitas pessoas naquele momento, e ela teve que esperar. Ele também teve então. Ele a viu de costas agora mais vivamente. As pernas sobre os saltos altos eram como ele gostava, e a postura dela era despojada, mas ao mesmo tempo um pouco elegante, uma mistura de educação e descompromisso. Isso o instigou. Ela andou um pouquinho com a fila. Ele achou graça no jeito dela. Não era convencional, sem dúvida. Ficou pensando se poderia conhecê-la melhor, estava gostando dela antes mesmo de saber quem ela era. Nunca havia abordado ninguém daquele jeito, mas sempre havia uma primeira vez para tudo... Nisso uma leva de gente saiu do elevador à sua esquerda fazendo um barulho ensurdecedor e uma algazarra sem-fim. "Uma horda", ele pensou. "Gente deseducada. Detesto." Isso o irritou e bagunçou seus pensamentos. Resolveu se levantar e ir mais perto da loja de perfumes e esperá-la no meio do caminho. Mas estava na direção e sua vista turvou, teve um choque, um susto. Ela não estava mais lá...
Seu coração deu um pequeno salto. Como? Ele se virara e se distraíra por segundos... E ela desaparecera? Olhou dentro da loja com mais atenção. Nada. Olhou para a direita e para a esquerda no corredor cheio de gente àquela hora. Tentou procurar pelo que era mais marcante nela: as pernas claras, torneadas, brancas como neve. Mas só o que viu foi a mesmice de jeans, sapatos padronizados e gente andando rápido ou algo muito diferente do que ele procurava. Correu no corredor e dobrou à esquerda. Nada.
Ela não estava mais lá.
É como se ela nunca tivesse existido.

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