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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Rota 99

"A Orgia e a Morte são duas jovens graciosas,
Fartas de beijos e de frêmito incontido, (...)"
(Charles Baudelaire, "As duas boas irmãs", in As flores do mal)

Rota 99 entrou com tudo num fim de tarde - águas de março. Um calor úmido e insuportável fazia crescer o tiquetaque do desejo rumo noroeste. Cristais tilintavam, paredes estremeciam e raios atingiam em cheio a terra molhada.
Tambores soavam numa selva desconhecida, anunciando. A pedra, o poço, o transe, uma civilização perdida; sacrifício humano jorrando sangue sagrado e profano.
Sedução, e a razão, entorpecida, o corpo murmura: sim, sim, sim.
Num tempo irreversível. Controlado, personalizado, estudado, ao alcance da mão, medo da surpresa e da dor. Medo de se achar fora do papel milimetrado, e surpreender-se: tigre, em círculos, acuando a presa, devorando-a, despedaçando-a.
Perder o controle, profanar o obelisco quente e latejante e tornar-se vítima sagrada - toda à mostra, os músculos em prontidão, a carne viva, fluidos se interpenetrando, escambos na paixão instantânea.
Insinuar, burlar, apostar na surpresa e no desconhecido. Um tempo sem volta. Mas ali, um rocambole negro e futuro, desenrolando-se rapidamente, alta velocidade, rota 99.
Os faróis cegam e a vontade acelerada do fogo e do asfalto: febre superando medo, conduzindo rápido ao destino: rota 99.
"Let's get lost."
Ponto de encontro sinalizando, o ápice viria, era certo. O rosto mediterrâneo, os olhos sorrindo, assentindo. Ao tocar o perfume, pensei: vou me perder. As horas futuras, intermináveis, selaram-se ali, na escuridão da rota 99. Vênus descontrolando as marés. O tambor dentro de mim - tuntum, tuntum. Esta noite ou nunca.
O selo supremo. Nada mais importa. A seta indica um porto feliz. Os tambores rugindo, o tigre antecipando o desencarne. Sacrifício. O corpo estanca e escorrega fundo. Peço, ensandecida, e um vulcão agiliza a poção sagrada do amor. Uma, duas, outras vezes. Cansaço, alívio e prazer percorrem os sentidos.
A morte instantânea anuncia: renovado, o corpo em sacrifício percorrerá o caminho de volta na rota 99.
Uma civilização se resgata. O tigre desliza saciado. Os tambores estão silenciosos. Nenhum som na floresta.
Nem é preciso perdão. O melhor ainda virá.

(Este meu texto foi publicado na revista eletrônica Ocaixote, n. 20: http://www.ocaixote.com.br/caixote20/contos20_SandraB.htm. Agradeço por isso a Xico Santos, que encaminhou a trilogia - da qual este texto faz parte -, e a Lizete Mercadante Machado, editora do caixote. Beijo aos dois bonitos...)

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