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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Uma nova seção: A Biblioteca do Chacrinha -- Hoje, vamos receber: Raymond Carver

Vou inaugurar hoje uma seção mensal aqui do blogue.
Vai se chamar "A biblioteca do Chacrinha" e como subtítulo, o nome do autor a ser indicado. Quem tem mais de 40 anos sem dúvida se lembra da Discoteca do Chacrinha, aquele programa do comunicador de massas que até hoje é lembrado e estudado, e cultuado, um fenômeno da comunicação de massas, polêmico e de gosto duvidoso. "Roda, roda, roda e avisa, um minuto de comercial! Alô, alô, Terezinha! Meu filho, vocês querem bacalhau?"
Mas por que chamar uma seção de literatura com o nome de Chacrinha... Parece de gosto duvidoso e canhestro.
Bem, na verdade, assim como o título de meu blogue é uma dupla homenagem: à poeta de que mais gosto (Safo, a grega) e a minha filha (a quem, quando pequena, eu chamava de minha pequena Cleis -- alusão ao poema de Safo dedicado a sua filha Cleïs, a quem nesse poema ela chamava de "tesouro"), esta seção é dedicada a meu pai, Heitor Brazil, homem das letras, discreto, redator de processos difíceis e tortuosos, conhecedor exímio de gramática e textos forenses, consultor dos juízes do Fórum para assuntos aleatórios, leitor de entrelinhas e contador de histórias dos melhores. Na nossa infância, eu e meus irmãos jamais íamos dormir sem que ele nos contasse uma história de sua própria invenção... Até que um dia, ele resolveu inventar a história do circo, mas nesta havia um pouco de terror, e apareciam mulas-sem-cabeça à noite no picadeiro... Pronto! A partir disso, todos os dias meu irmão o obrigava a contar a mesma história, só que o personagem de terror tinha que mudar: saci-pererê, vampiro etc.
A leitura foi ele quem nos incentivou sempre.
Mas o que meu pai tem que ver com o Chacrinha? Bem... Ele é megablaster discreto. Gosta de entrar mudo e sair à francesa sem ser visto aos lugares que vai. Um tímido! Fala baixinho, e sempre pede às pessoas: "cá entre nós, não comente com ninguém..." Pois um dia, na juventude, ele resolveu ir averiguar a plateia do tal Chacrinha... Discretamente, claro. Pediram para que se sentassem lá na frente, já que ele era bem galã. Disse à meia-voz: "Me desculpe, vou me sentar na última fileira". Insistiram, mas ele é firme. Sentou-escondido atrás de um pilar. Para não ser sequer filmado num descuido. Tanto cuidado também era porque era noivo de minha mãe e ela não podia saber dessa traquinagem... Bem, o programa pegava fogo, e ele ia afundando na cadeira de vergonha, ele me contou, pensando: o que estou fazendo aqui! Lá pelas tantas: "Vocês querem bacalhau????" Pois adivinhem qual foi o número sorteado para ir lá no palco pegar o bacalhau: o do senhor Heitor Brazil. Quando ele viu o número que tinha nas mãos, amassou e e escondeu. Chacrinha gritava bem alto: "Número tal, venha buscar seu bacalhau!" E os assistentes de palco corriam as fileiras tentando achar o felizardo. E meu pai, vermelho, se denunciando... Resolveram então sortear outro número e tudo voltou à paz para Heitor Brazil na Discoteca do Chacrinha...
Misturei estas facetas do meu pai, o tímido, o leitor, o culto, o atrapalhado que foi ao Chacrinha incógnito, o engraçado contando sua própria história tragicômica de se esconder do Chacrinha. Imagine se um juiz o visse recebendo um bacalhau no palco, o que seria de sua imagem no Fórum na 2a feira? Tudo isso se transformou na Biblioteca do Chacrinha, em homenagem ao seu Heitor Tiepolo Brazil Júnior, homem que me ensinou as letras, mas também a coragem, a virtude e a suavidade.


Na metade de cada mês, vou indicar textos, artigos, ensaios, críticas, contos, livros, poemas, autores, lançamentos que eu tenha lido e gostado. Quem não gostar, pula!
Caso eu tenha o texto comigo, colo aqui mesmo no blogue. Caso contrário, indico título, autor e fonte e os leitores que se interessarem pela dica têm de ir atrás...
Bom, por inspiração de conversas inspiradoras sobre literatura, poesia, autores e tantas outras coisas que foram uma brisa nesses dias de Satyrianas, hoje a dica é um conto do escritor norte-americano Raymond Carver, "Me telefone se precisar", incluído em 68 contos, da editora Companhia das Letras.
Na imagem, Robert Carver em seu escritório.

Tive acesso a este texto há mais de dois anos, ao trabalhar na preparação da revista serrote n. 2, do Instituto Moreira Salles. É belíssimo. E na revista há um bônus, pois Carver é conhecido por seus contos, não por sua produção poética: na sequência do conto há um poema de Carver que transcrevo aqui para deleite de meus leitores que gostam desse gênero. E preparem-se aqueles que tiverem acesso ao conto: conto e poema tratam da mesma temática...

Tarde da noite com névoa e cavalos

Estavam na sala. Dizendo
adeus. A perda ressoando nos ouvidos.
Tinham vivido uma coisa juntos, porém agora
não podiam dar nem mais um passo. Além disso,
ele tinha outra pessoa. Lágrimas caíam
quando um cavalo pisou fora da névoa
no jardim da frente. Depois mais um, e
mais um. Ela saiu da casa e disse:
"De onde vocês vieram, cavalinhos?".
E avançou por entre eles, chorando,
tocando seus dorsos. Os cavalos começaram
a pastar no jardim da frente.
Ele fez duas ligações: uma foi direto
para a polícia: "Os cavalos de alguém estão soltos".
Mas teve a outra chamada também.
Então se juntou à esposa na frente,
no jardim, onde os dois falaram e murmuraram
com os cavalos. (O que estava
acontecendo, acontecia em outro tempo.)
Os cavalos podavam a grama do jardim
aquela noite. Uma luz vermelha de emergência
brilhou quando um sedã veio rastejando pela névoa.
Vozes atravessaram a neblina.
Ao final daquela noite comprida,
quando finalmente puseram os braços em volta
um do outro, seu abraço estava cheio de
paixão e lembrança. Um evocava
a juventude do outro. Alguma coisa chegara ao fim,
outra vinha entrando com força para tomar o lugar.
Chegou a hora da despedida.
"Adeus, vá em frente", ela disse,
E o distanciamento.
Muito depois,
o homem lembrava de um telefonema desastroso.
Um que ficara ecoando, ecoando,
feito maldição. No final das contas
foi o que sobrou. O resto de sua vida.
Maldição.

(Poema de Raymond Carver. Revista serrote, n. 2, jul./2009)



Ao meu pai, que me ensinou toda delicadeza e generosidade deste mundo, que sabe todos os nomes de flor e de passarinhos e à sua destreza com as palavras e para contar histórias, dedico esta seção.

Fontes: Para o conto "Me telefone se precisar" e o poema "Tarde da noite com névoa e cavalos": Revista serrote n. 2, jul. 2009, São Paulo, Instituto Moreira Salles.
Para o conto "Me telefone se precisar": 68 contos. São Paulo: Companhia das Letras.

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