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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

sábado, 5 de novembro de 2011

Inversão

Oito e meia da manhã.
Baixaram a porta de um bar qualquer.
Expulsa da boca do lobo. Impossibilitada de continuar a circular nos anéis formados pela lava de um vulcão no qual me atirei e me retirei sem êxito, frito agora a consciência nessa longa e sinuosa descida incandescente. A lava me escalpela, estou em bolhas, e em seguida derreto: pele, músculos, ossos, órgãos internos, vísceras, meu sangue oxigenado se mescla à brasa mortífera que desce veloz ao sopé do terrível. Meus cabelos se desitegram, assim como todos os pelos deste corpo que uma vez foi moreno e sadio e de certo modo sedutor. Os olhos vazaram seu líquido que um dia deixaram ver tudo, observar a vida e ter as memórias que me levaram a ser o que sou, a escrever o que escrevi. O coração, o último a ser atingido, o que resistiu até os extertores, suspira seu último grito de guerra. Ele que viu o mundo com a serenidade de quem quer chegar a todos o lugares, olhar todas as pessoas com o sentimento, acreditar nelas, mesmo que para depois se desiludir. Ele ferve na lava de temperatura altíssima. Já não é mais.
O Sol está gritante para quem é um vampiro recente. Ponho os óculos escuros e caminho na calçada vazia de uma manhãzinha de um sábado comum. As pessoas se dividem bem em minha observação: são as que vão trabalhar, cheirosas, vindas do banho, e cenho franzido, preocupadas com o dia duro que têm pela frente; e são aquelas como eu, que estão pálidas, óculos escuros para evitar a estaca no coração, leve ressaca de noite não dormida, ou ressaca enorme, tanto faz, o cheiro é de noite -- cigarro, bar, danceteria, inferninho, what ever, aquele aroma de quem esteve circulando à procura de sangue.
Caminho alguns passos numa calçada semizavia. O céu é de um azul claro como vi só quando criança e ia para a escola logo cedo... Um carro passa. O condutor me vê em roupas de noite, minissaia, botas ar de noturna criatura, óculos escuros pra esconder minha condição. Me confunde com não sei o quê. Para o carro, e me segue devagar. Não olho para o lado. Quero minha cama, minha casa deliciosa de lençóis perfumados e livros e Cds, e DVDs e fotos de família no aparador. Apresso o passo. "O senhor, definitivamente, não me conhece, meu caro." Quebro na esquina de uma das casas mais conhecidas de meninas, strippers, sexo e shows e pajelanças do Centro. Sou uma não viking perdida naquele mundo de embarcações.
Vejo a alguns metros algo inusitado e antigo, coisa de infância e decadância: um neon vermelho escreve em letras bonitas a palavra conhecida Hotel -- símbolo de lençóis sujos, luxúria, pecado a ser transgredido.
Há gente na rua tentando pegar ainda o que sobra àquela hora. Vou correr dali. Me posto numa esquina em que seja possível pegar um táxi. E rápido. Vejo dois noias se aproximando devagar. Também um homem que vem com dentes de lobo e baba de dinossauro. Ele quer me comer. Há um branco virando uma eaquina lá embaixo, levanto minha mão direita a ponto de a minissaia subir muito e as coxas ficarem à mostra. Tudo o que eu não queria nessa situação ali, exposta à fauna do restolho da noite. Foda-se. O branco estaciona pertinho da guia. Fácil. Ele me conduz para aquilo que mais gosto: a paz e o calor da minha casa.
Nessa inversão de valores e de cultos e de viradeiras, já vou sendo outra mulher, não aquela dos óculos escuros, vampira do bar, mas a mulher-mãe-que-cuida-da-casa-e-trabalha. O taxista me conta sua vida toda em 10 minutos (eles me adoram, e sempre me contam seus dramas e me pedem conselhos. Sequer imaginam que estou sem condições inclusive de ajudar a mim mesma...). Digo a ele três máximas universais, e ele fica feliz com minha atenção a seu sofrimento.
Pago, deixo um trocado como sempre, e estou no melhor lugar da cidade: a minha casa. Um bom banho retira todos os males do mundo. O rosto, agora sem maquiagem, revela uma mulher delicada e telúrica, pés firmes no chão, pronta para dar uma dormida e trabalhar no novo livro que está sobre sua bancada no escritório. Sou outra.
Me enfio embaixo dos lençóis delicadamente perfumados e do edredom quetinho nessa manhã fria. Um, dois, três, o sono vem. E sonho que estou numa floresta belíssima recebendo flores de alguém cujo rosto não consigo ver, mas que é de uma delicadeza ímpar comigo.
Acordo, e xícara de espresso nas mãos, olho pela janela lá longe. Penso: decididamente, nós podemos ser muitos.

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