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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Em seus domínios

Lá vai ela de novo... Prensada numa porta de mercearia fechada na calada da noite. O barulho do seu corpo batendo no metal soa como assalto ao trem pagador. De repente, jogada na traseira de qualquer automóvel estacionado. É madrugada. O sereno, essa palavra antiga, de mães temerosas de resfriados, de febres, de pneumonias incuráveis, vai descendo. Faz frio, mas seu corpo está quente, sua alma está quente, seu desejo é uma fornalha gulosa e ansiosa como a boca do demônio, que quer mais almas, mais almas em seus domínios. Uma amálgama toma conta de sua vida neste exato momento.
De repente, surge uma alma penada na escuridão da rua. Sua cor é cinza, seus olhos, esgazeados, brilham ainda assim. Caminha rápido, mas não tem destino. Seu fado é a próxima pedra. Faz muito frio nesta calada de noite, mas suas roupas são trapos finos e rasgados, sujos, que mal lhe cobrem o corpo macérrimo, está quase nu. Ela, distraída, está lá, aos beijos e mãos e tentáculos e enguias e sereias e galeões e marujos e capitães e maremotos naquela rua escura prensada num carro qualquer. Qual a marca? Ela não sabe. Ele não sabe. Nem querem saber. Ali é uma turbulência, uma tempestade, um acidente contra um iceberg. Tudo é grandioso, mas é um instante, um átimo. No calor intenso dessa junção deliciosa entre dois seres que se desejam, ouve-se a pergunta vinda de uma voz que está por um fio: "Uma moeda...". Ela cai na real. Poderia morrer ali naquela escuridão, um assalto, uma faca, um revólver, entre beijos e tentáculos e icebergs acidentais. Dá um pulo tão instintivo quanto fatal. O noia se desculpa e dá um passo atrás. Ela esfria, gela. Ouve então ele dizer -- as mãos não deixam o corpo dela, como dizendo: não saia daqui --: "Meu bom, ta perdendo seu tempo, a gente não tem nada aqui..." Ela pensa, em meio a sustos, corações disparados: 'meu bom' é um bom marcador conversacional... cria intimidade, certo afeto, estabelece relação e vínculo que soam verdadeiros caso um dia eu seja assaltada... O pensamento vai embora. Um prolongamento a atrai de volta a seu lugar de origem. E ela sente algo crescer.
A alma penada vê que, dali, só levará calor, tentáculos, galeões, tempestades, sede de viver. Uma sandice estar ali de olhos fechados. Mas esses momentos apaixonados têm dessas incongruências com o bom senso. O corpo cinza desaparece na noite. Confunde-se com o breu da madrugada. Refeitos do susto, apenas um segundo. Os tentáculos retomam sua cor violácea e sua energia de capitão do mar, agarram com força o objeto do desejo como se fosse um timão, tudo volta a ser quente -- quente, quente, quente. Onde estão? Não sabem. Para onde vão? Também não. Mas vão. Isso é certo.
Ela não aprende...
Nem eu.

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