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No blogue escrevo meus próprios textos (contos, crônicas, poemas, prosa poética) e também sobre os mais variados assuntos: literatura, cinema, viagens, gastronomia, amenidades, humanidades, música. Tudo que me toca. E que possa tocar os leitores.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Um dia só para mim e "Saudade", de Almeida Júnior

Ontem foi dia de volta ao trabalho depois do feriado prolongado.
Meu dia começou cedo, com telefonemas, demandas, arquivos em pdf chegando por e-mail, em jpg que não abriam, editores me ligando para pedir que eu liberasse rapidamente o material para que pudesse mandar para a gráfica... Mas como liberar se o arquivo não abre? É preciso pedir ao artista gráfico que faça em outro formato... Que posso fazer? Quer dizer: meu dia começou quente, apesar do friozinho que imperava na manhã de 4a feira.
Eu sou conhecida por ser muito responsável nessas coisas de trabalho: comprometida, dou retorno rápido, se possível libero rapidamente um arquivo. Só quando me pedem coisas de última hora e estou fazendo outro projeto tenho que pedir para que esperem, do contrário, não embaço. Mas ontem, esses arquivos chegando e não abrindo.... e depois, quando consegui abrir ele não davam leitura dos textos... e eu tinha que ir buscar dois livros na Pinacoteca que tinha pedido para reservar para mim.
Acabei deixando a equipe se batendo para ver como resolver a questão do tal arquivo "zicado", e fui à Pinacoteca buscar minhas preciosidades: dois exemplares do catálogo de Saul Steinberg: As
aventuras da linha, catálogo do Instituto Moreira Salles em que tive o prazer de trabalhar no texto. Tinha um exemplar, que ganhei do Instituto, mas acabei dando de presente a uma amiga que adora arte. Então, ontem foi dia de recuperar novamente o belíssimo catálogo. Chegando lá, naquele friozinho que me lembrou São Paulo da garoa, não pude deixar de me lembrar da Semana de 22. A arte, a literatura, toda a efervescência jorrando aqui nesta cidade... Era elitista, era. Mas essa é discussão para outro post...
Entrei e pisei naquele prédio belíssimo. Um farfalhar passou na minha memória. Quando eu era uma menina de 18 anos, esse prédio abrigava a Faculdade de Belas-Artes, e eu fui ali prestar vestibular de arquitetura, paralelamente a meus outros vestibulares de medicina. Eu estava perdida, não sabia bem o que queria... Mas sempre adorei as linhas da arquitetura, e achei que seria um bom caminho a prancheta, caso eu não conseguisse chegar ao bisturi. Passei no vestibular de arquitetura em 10o lugar, foi uma surpresa pra mim, que nem sei desenhar direito! Mas a vida me levou para a psicologia, e depois para a medicina, e depois, enfim, para as letras, onde sosseguei o facho.
Lembranças...
Pois fiz uma curva à esquerda no prédio para procurar a livraria, e vi que estava tudo meio diferente, houve uma reforma e mudaram o acervo de lugar... Me deu um nó na garganta. Onde está meu quadro preferido? Que eu sabia de cor onde encontrar?
Tirei esta ponta da mente, e entrei na livraria. Enfim, peguei com gosto meus dois exemplares de Steinberg. Mas como amante de livros fui salpicando outros sobre o balcão... Um livro sobre a obra de Almeida Júnior -- criador de imaginários, e outro sobre os fotógrafos lambe-lambe que clicavam os passantes do Parque da Luz, Saudade pela ausência -- Fotógrafos Lambe-lambes no Jardim da Luz, 1915-1935. O interesssante deste livro é que, no aparador da sala aqui de casa há uma foto de minha avó paterna, linda, sorridente, aos 18 anos, uma flor da gola do casaquinho, clicada por um deles no Jardim da Luz. Ela havia marcado um encontro com meu avô, seu noivo na época, e o lambe-lambe a convenceu a fazer uma foto e dar de presente a ele... Ela parecia radiante...
Livros comprados. Estrada.
Mas uma Sandra mais tranquila me chama com seu canto de sereia: você está na Pinacoteca, é dona de sua empresa, pode ficar mais um pouquinho e ao menos ver o piso 2 e suas esculturas, que você adora, e o quadro de Almeida Júnior, seu preferido, Saudade.
Sou abduzida por esse canto mavioso, e hipnoticamente sou levada por uma força ao elevador, aperto o andar 2, e me delicio entre as esculturas... como se fossem novas a meu olhar...
Vejo um funcionário e pergunto: "Só tenho tempo para ver um quadro, o que mais gosto, você me indica a sala, porque tudo mudou aqui..." Ele me pergunta qual e eu digo sem pestanejar: "Saudade, de Almeida Júnior".
Ele sorri, diz que muitas pessoas procuram este quadro. E me leva à sala 7, seu novo nicho.
Ele abre a porta para mim, e me diz: "Aproveite sua visita". Nem acredito. Estamos no Brasil mesmo?
Ponho minhas sacolas sobre um banco e fico em silêncio como numa catedral para ir me aproximando daquela imagem que é pura saudade, dor, lembrança, ternura, luto. As lágrimas, a foto, objeto da saudade, a mulher de uma beleza exótica e simples sob aquela luz da janela. Agora, estou ali, e faço parte daquela cena.
Eu mesma tenho saudade: daquele prédio que abrigava a faculdade, dos passeios com meus pais pelo Jardim da Luz -- meu pai me levava à gruta e dizia que era um lugar de se esconder... Eu adorava... Saudade de minha avó e seu sorriso belíssimo de dentes muito brancos naquela foto dedicada a meu avô, saudade de mim, de minha infância no bairro do Pari e da igreja Santa Rita de Cássia onde ia com minha mãe. Saudade das viúvas portuguesas do Belenzinho, todas de negro, com duas alianças na mão esquerda a entoar baixinho aves-marias no portão de casa às seis horas da tarde...
Saudade do meu pai, jovem, trazendo os minibalõezinhos japoneses em junho para nós (naquela época, isso não era considerado politicamente incorreto, e fazíamos...). Ele trazia também estrelinhas, que coloriam o quintal de diversas cores quando girávamos. Claro que tudo sob o olhar atento de seu Heitor Brazil, cioso dos perigos desses brinquedos juninos. Ele dizia que tudo isso era muito perigoso, que não se devia brincar com eles sem ter um adulto perto. E ao longo da vida acabei sempre tendo medo dessas "bagaças" juninas mesmo...
E fazia frio, minha mãe punha quentão e comidas juninas deliciosas que só ela sabia fazer, e no quintal do bairro do Pari víamos os balõezinhos subir, subir, branquinhos, pequeníssimos, a cara de seus artesãos da terra do Sol nascente... E eles iam longe, e minha imaginação, já ampla, ia com eles para não sei onde.
Beng! Hora de voltar ao mundo dos homens. Preciso abrir aquele arquivo. Digo adeus à minha querida do quadro saudade. Agora, como tenho o livro, a terei comigo sempre que quiser vê-la.
Me sinto a mulher mais livre do mundo, eu, em plena 4a feira, com meus livros, na Pinacoteca, tendo visto o quadro Saudade e tendo podido, fora da roda do trabalho que massacra e exaure e extenua, me dar o luxo de me deitar no rio das minhas lembranças com calma e ternura...
Uma saudade boa toma conta de mim. É muito bom ter uma vida como a que tive e a que tenho.

Um comentário:

  1. Ufa!... Achei. Será que posso? Vou tentar, qq coisa vc corta.


    Deixa te contar:

    Sabe essa coisa da “Força da Beleza”... Da “Porrada da Beleza” onde a Elisa Lucinda é magistral?

    Então...

    Naqueles anos verdes... enquanto crescia e via o mundo... aquele mundinho de menino... aquelas pequenas coisas todas...

    Havia algo diferente... que eu não sabia... mas que era diferente!

    Umas figuras...

    Todos os anos (que àquela época demoravam de fato 365 dias!), a gente ganhava uma “Folhinha de Ano Novo”... Todo ano!

    Não mudavam as figuras... elas eram sempre as mesmas... ano após ano, acompanhando minha trajetória de menino pra rapaz... aqueles dias tão iguais...

    Aquelas figuras!

    Aquela de que mais gostava, não parava de ler o nome... ali... tipograficamente... manchando o papel de baixa qualidade:

    Caipira picando fumo Almeida Jr.

    Impregnada em minha memória, aquela imagem fazia parte integral e absoluta dos meus dias... da minha vida simples!

    Passaram-se os anos... e, embora não goste muito, o outono chegou... trouxe com ele muitas coisas boas, eu sei, estou sendo ingrato...

    Ganhei até uma Pinacoteca, reformadinha...

    Fui vê-la no primeiro dia de sua reabertura... por motivos que não devo contar aqui... pelo menos, agora.

    Entramos... eu e minha companheira... e lá estava “aquilo” – Meu Deus!

    Pendia desde o teto, segura por grossas cordas (dessas com que se prendem navios!)... a minha figurinha de infância!

    Enorme!... Majestosa!... Indescritivelmente bela!... Quase divina!

    A minha figurinha de infância!

    Meu Deus! Eu gritei... assustei minha companheira... e chorei... e chorei... e chorei...

    Quando consegui me recompor, descobri com espanto, que ao meu redor havia uma dúzia de pessoas que também choravam...

    Minha companheira me abraçou com carinho e perguntou: “– O que foi isso?”... Não respondi... porque não sabia.

    Hoje, de repente, lhe diria com paz no coração:

    “A porrada da beleza!”
    xico santos

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